Diário de bordo III

Quando cheguei a Fortaleza a notícia do dia era a morte de cinco integrantes de uma tal banda Líbanos. Deus sabe que eu desejaria outro tipo de aposentadoria para os músicos, mas não pude deixar de pensar que o mesmo Ceará que deu tantas contribuições à cultura deste país, gente como Capistrano de Abreu e José de Alencar, para citar apenas dois, cometeu crime de lesa-pátria ao perpetrar bandas como Mastruz com Leite, Mel com Terra e Cu com Merda.

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Em frente à Fortaleza de N. Sra. de Assunção, onde nasceu a cidade, uma estátua de D. Pedro II esculpida e forjada em Paris data de 1912, “oferecida pela pátria agradecida”. Deve ser uma das primeiras homenagens republicanas ao imperador.

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Tarde de sábado sem nada para fazer e vou passear no centro. Ao contrário do resto do Nordeste, o centro de Fortaleza existe na tarde de sábado. Na 24 de Maio, duas lojas de artigos religiosos misturam Pombagiras, Zés Pelintras, Pretos Velhos, São Jorges e Iemanjás. Misturam umbanda e quimbanda, candomblé e catolicismo. São um retrato perfeito do Brasil. E me lembram a São João em Niterói, embora esta tenha um número estupidamente superior de lojas. Niterói, como se sabe, é terra de macumbeiro. Saravá.

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Um gringo passa de mãos dadas com uma nativa. Ante meu sorriso que diz, em qualquer língua, “Aí, hein?”, ele se desconcerta e tenta soltar, instintivamente, a mão de sua nova e efêmera namorada.

Também instintivamente, ela não o deixa soltar. E segura a mão dele com força, enquanto anda altiva, olhando firme para a frente.

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Motel Stylus, portinha pouco discreta em frente a um ponto de ônibus: 7 reais com vídeo, 6 reais sem.

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Passo por um camelô e lembro que, afinal de contas, eu não tenho mais carteira. E não me sinto exatamente inclinado a pagar 50 reais por uma nova, para outro desgraçado-miserável-infeliz-amaldiçoado levar.

Será a primeira carteira que compro na vida. Minha irmã sempre conta a história de como era obrigada a comprar carteira para mim porque eu usava o que me dessem. E durante muito tempo nem mesmo isso usei: meu dinheiro ia amassado no bolso como dinheiro de bêbado.

Pego uma e o camelô dá o preço: 7 reais. Compro. Vejo outra, agora com compartimento para as moedas que vivem caindo do meu bolso, e ele avisa que é mais cara, porque é couro de verdade. Mas vale a pena: é a que ele usa. Emocionado com o referencial estético, é essa que eu levo.

Quem quiser que reclame da minha carteira de camelô. Ela vai viver encostada à minha bunda, mesmo.

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Um casal de gringos — americanos, pelo sotaque — chega ao hotel enquanto faço meu check out. O guia conversa com eles, que querem algo naquela área. Quando são informados do preço, reclamam: “Too much. Too much“.

O hotel é barato, ou eu não estaria lá. Já fiquei em todos os hotéis daquela rua, com exceção do Holiday Inn, e posso afirmar que não vão encontrar nenhum mais barato. Os gringos é que são sovinas. São um desrespeito à classe de turistas dos países desenvolvidos, que vêm a um país com câmbio de 3 por 1 e salário mínimo de 80 dólares e ainda reclamam do preço. Devem estar decepcionados por não verem macacos raivosos na rua.

Penso em sugerir a eles o Motel Stylus, 7 reais com vídeo, 6 reais sem. Mas eles não entenderiam a piada.

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Eu estou um bagaço. E com saudades.

4 thoughts on “Diário de bordo III

  1. Rafael,
    Segunda-feira depois do trabalho. Eu também estou cansado, mas morri de rir com teu post mau-humorado. Obrigado!
    Quanto ao post abaixo, eu tenho saudades dos gibis da falida Ebal (Editora Brasil América Ltda.) e do Brasinha, que era o gibi que eu mais gostava (e que aqui na Itália eles nunca ouviram falar!).
    Na edição de 25 de junho, a revista Diario (sss.diario.it) publicou uma matéria sobre a vaca louca nos EUA. Segundo a revista, nos anos noventa, no estado de Washington, 35 pessoas morreram por causa de um vírus que os americanos chamam de Cjd (Creutzfeldt-Jakob Disease). Tudo teria sido levantado por Janet Skrabek, uma mulher de negócios, que resolveu investigar a morte da amiga Carie Mahan, que trabalhava no hipódromo Garden State Race Track, em cujo restaurante outros seis clientes morreram pelo mesmo vírus Cjd, que vem a ser o vírus da vaca louca.
    Coisa de doido…
    Ciao.

  2. Rafael,

    Quer dizer que você esteve novamente em Fortaleza e passeou pelo centro da cidade? Ainda bem que não veio no fim do mês, senão estava frito.
    No fim da próxima semana e durante quatro dias nós, fortalezenses, nos deliciaremos com a maravilha do FORTAL, carnaval fora de época com carros de som imensos, bandas baianas, cantores idem, músicas(?) idibem, cordões isolando os que pagam dos que não pagam, os de dentro todos de fardinhas chamadas “abadás”.
    Nesse ambiente festivo e inocente vão rolar bebidas, bebidas, coma alcoólica, drogas, drogas, mais drogas, overdose, sujeira, lixo, sexo, sexo, adolescentes engravidando, doenças, numa verdadeira demonstração do alegre e inocente espírito carnavalesco do brasileiro.
    O percurso este ano saiu da beira-mar e se aproximou do centro.
    O Centro Dragão do Mar, local de manifestação cultural e artística por excelência, para onde hoje convergem quase todas as manifestações culturais, vai ser privilegiado com um tapume de segurança. Ninguém entra e ninguém sai. Durante esses quatro dias nada acontece do lado de dentro, até porque o FORTAL representa mais cultura do que essas besteiras de exposições, shows, teatros, cinemas, performances ao vivo, que não têm nada a ver.
    Passará também o arrastão das bandas pelo centro de coleta de órgãos para transplante da Secretaria da Saúde do Estado. Córneas, fígados, corações, rins, trodos vão pular de alegria.
    O SPU deu parecer contrário para o evento.
    O Juiz da 10ª Vara Federal foi a favor.
    O Prefeito, que no ano passado proibiu por decreto o FORTAL, meses depois editou outro permitindo.
    A CLICK Produções está adorando essa publicidade e enchendo as burras de dinheiro.
    Acho, amigo, que se viesse no fim do mês o seu passeio no centro ia ficar prejujdicado. O jeito seria se refugiar no Motel Stylus.
    Um abraço,

    Sérgio.

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