Morte em Veneza

Lendo na Salon um artigo sobre a nova tradução inglesa de “Morte em Veneza”, de Mann. O título é quase marrom: Just how gay is “Death in Venice?”

Essa é uma bela novela, e se tornou também um belo filme de Visconti, da sua fase esteta. Conta a história de um compositor cujo ápice já passou e sua fascinação por um garoto em férias na tal cidade. Há duas linhas de interpretação principais quanto à obra, que não deveriam ser excludentes. O trecho abaixo explica melhor:

Even today, some critical guides to “Death in Venice” explain it principally as an allegorical study of artistic creativity and its pitfalls, or as a modern interpretation of classical myth. These interpretations can be defended, but they tended to overlook the obvious fact that Aschenbach’s predicament would never have seemed so dire or his obsession so doomed if its object had been a teenage girl instead of a boy.

Infelizmente esqueceram de dizer isso ao pobre Humbert e sua desgraçada Lolita, que deram o azar de estar em outro livro, escrito por um russo heterossexual. Aschenbach ao menos morre com alguma dignidade pública; seu conflito só existe em sua cabeça, sua vergonha também. Enquanto isso Humbert é obrigado a pequenas e grandes torpezas e humilhações para conseguir sua Annabel Lee. Sua degradação moral e social talvez seja disfarçada por sua prosa brilhante, por sua inteligência; mas objetivamente sua obsessão é “condenada” desde o princípio.

A única diferença é que Aschenbach nunca chega perto de Tadzio. Sua vida amorosa existe apenas em sua cabeça, nunca chega a se concretizar. Mas Humbert tem a sua Lolita, e mesmo seu fim ignominioso é consolado pela lembrança da menina em sua cama, lembrança que nem outras, como a de Lolita chorando durante o sono, podem apagar. Aschenbach é um ser humano melhor que Humbert, infinitamente melhor; e isso independe de ser gay ou não.

Obviamente o resenhista pode estar se referindo apenas a Aschenbach, sugerindo que ele, especificamente e de acordo com sua natureza, teria mais sorte se se visse obcecado por um menina pré-púbere. Mas aí estará entrando no território escuro das hipóteses, porque é algo que nunca poderemos saber. Sua opinião, então, apenas reflete seus próprios preconceitos.

Se essa vitimização sexista ao contrário é o melhor argumento contra a interpretação de “Morte em Veneza” como uma parábola da criatividade artística — interpretação extremamente válida, por sinal, e mais importante que uma eventual discussão sobre a sexualidade de Aschenbach –, a coisa complica.

7 thoughts on “Morte em Veneza

  1. Não digo isso para parecer libertária, e muito menos para parecer erudita. Mas, justificativas já mencionadas, acho que o tal sexismo, além de outros “ismos”, jamais consegue alcançar a tal fruição (para usar um nome metido a besta) da expressão artística. Não me iludo pensando que existem cabeças soltas, livres. Para mim isso é impossível, e me incluo nessa impossibilidade. Mas não custa nada tentar. Afinal, esse é, para mim, o melhor meio de “receber” os estímulos da expressão artística. Bobagem tentar ler o pensamento dos autores, como fazem certos críticos. Afinal, críticos não são, necessariamente, telepatas. E ler o pensamento de mortos, daqueles que não têm mais cérebro, acaba sendo mais pretensioso ainda.

  2. Rafael,
    Vou repetir um comentário que havia feito em um outro blog, recentemente: Ezra Pound escreveu (ABC da Literatura) que o mau crítico se reconhece quando este critica o autor, e não a obra. Eu concordo em parte, pois saber que Roland Barthes era homossexual ou um don juan muda completamente a concepção da sua (dele) obra.
    Estive em Veneza esta semana e vou contar a experiência em um próximo post. Confesso que fiquei um pouco decepcionado. A cidade é mais bonita nos filmes.
    …E eu nunca vi tanta gente!
    Ciao.

  3. Não consigo entender os que ainda não tomaram “A Morte em Veneza” como uma obra de conteúdo homossexual. O tesão sexual de Gustav por Tadzio é tão evidente que por vezes ele tenta escapar da cidade, e cria todo um problema em cima da peste justamente para ter um motivo racional ao sair de Veneza. E por mais que o contato físico entre Gustav e Tadzio seja inexistente, apenas as oscilações comportamentais quando um está perto do outro dão mostras do tamanho do desejo sendo abafado.

  4. Túlio Moreira, wake up!
    Você realmente não conseguiu atravessar o plano da expressão lingüística ao ler Morte em Veneza, o que já denuncia um grande problema de leitura, pois é a partir do plano de expressão que podemos avançar alguns níveis e perceber que Tadzio é, na verdade, a representação da arte natural, ou seja, o grande muso do escritor que, até então, havia apenas escrito grandes obras devido à disciplina. Next time, try to think a little bit before you judge a novel, ok?

  5. Bem,adorei essa obra,só que não é o artista que passa desejo sexual para Tadzio e sim ele passa na sua expressão facil mas o contexto de que o garoto é belo,ou seja ela está a procura do belo,mas só que Tadzio que olhava para ele era mas no sentido de seduzir o artista.Adorei

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