Segunda Leitura

Muito prazer, meu nome é Gilvaneide.

Como toda mulher de malandro, eu acabo voltando para quem me enche de porrada. Foi por isso que comprei a Primeira Leitura deste mês, depois de uma última experiência constrangedora.

A revista sempre foi muito próxima ao PSDB, e isso não é, necessariamente, um problema. Mas em sua penúltima edição essa proximidade ultrapassou o limite do bom jornalismo, e o resultado foi algo próximo demais de um boletim da campanha da Serra. A revista chegou ao ponto de torcer resultados para fazer crer que o PT tinha sido derrotado nas eleições e o PSDB era o grande vencedor. Até mesmo fez uma comparação de almas governadas pelo PT e pelo PSDB para mostrar que o PT só cresceu nos grotões — mesmo sabendo que foi o inverso, que o que dá a maioria de contribuintes sob governo tucano é o fato de o PSDB ter conquistado São Paulo; fora isso, o PT cresceu em cidades maiores. (Essa análise, brilhante, foi feita em um dos blogs que leio diariamente. Infelizmente, não consegui lembrar qual.)

Com tudo isso, eu tinha me desiludido da revista, que acompanhava desde os tempos em que se chamava República e tinha uma layout agradável de The Economist.

Mas eu me chamo Gilvaneide.

O novo número, no entanto, resgata a revista do abismo em que tinha caído. Agora pode-se creditar aqueles arroubos ao calor da eleição.

A revista traz uma bela matéria de capa, que deveria ser lida por todos aqueles que ainda fazem algum tipo de defesa do governo Bush. Um sujeito que assistiu quieto ao dólar cair 36% em relação ao euro em seu mandato — um movimento prejudicial para todos os países do mundo — enquanto mandava seus meninos para comer areia na Mesopotâmia não pode ser qualificado de bom em absolutamente nenhuma área. Que Bush é uma tragédia para o mundo, todo mundo já sabia. Mas é, principalmente, uma tragédia econômica para o seu país.

(Informação curiosa: o déficit americano é de 2 trilhões de dólares. 400 bilhões são de investimentos militares.)

A revista no entanto tem lá seus defeitos. Por exemplo, uma matéria fala dos “anárquicos blogs” e sua importância crescente nos Estados Unidos para ilustrar a decadência dos telejornais das grandes redes americanas. Se por um viés estritamente jornalístico faz muito sentido, já que a maioria do mundo não sabe que chongas é um blog e a matéria, assinada pelo Caio Blinder pode representar uma novidade, por outro mostra as razões pelas quais nossos confrades americanos estão minando a mídia tradicional: quem lê blogs já vem percebendo isso há muito tempo. A matéria é um claro exemplo de como comer mosca arrotando caviar. Mesmo quando notam o fenômeno, eles não percebem direito o que está acontecendo. Estão se afogando enquanto escrevem a crônica do dilúvio. Mas isso é tema para outro post.

A matéria tem equívocos sérios. Por exemplo, diz que “um marco histórico [da decadência das grandes redes tradicionais] foi na cobertura da última eleição americana. Na noite de 2 de novembro, a Fox teve mais audiência que a NBC”. Tomar isso como marco histórico de qualquer coisa é de uma temeridade absurda. É muito provável que a Fox tenha batido seus recordes por uma questão circunstancial: é uma rede de TV direitista, por acaso em uma eleição extremamente polarizada.

A revista traz ainda uma matéria sobre o nascimento do anti-semitismo moderno. A tese, presente em Les Origenes de l’Anti-sémitisme Moderne, de um sujeito chamado Arthur Herzberg, vice-presidente do Congresso Judaico Americano, “autor do célebre The Jews in America”, cronista do New York Times e professor da New York University, reza que o Iluminismo é o principal responsável pelo anti-semitismo moderno, muito mais que as necessidades teológicas cristãs. Segundo a revista, Herzberg “procura conferir credibilidade a uma certa intuição sionista de que o anti-semitismo moderno correspondia a um fenômeno contemporâneo e laico, e não ao ressurgimento de um ódio cristão e medieval”.

Herzberg é um idiota. Quanto ao “ressurgimento”, Daniel Goldhagen já mostrou, nas poucas páginas da introdução de “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, que o anti-semistimo nunca sumiu, apenas experimentou ondas de crescimento e retração, culminando no nazismo. Mas o erro principal é desconsiderar a evolução histórica da Europa. A Revolução Francesa foi a primeira a conferir igualdade jurídica ao judeus, e as convulsões revolucionárias burguesas do século XIX levaram essas conquistas para outros países da Europa.

Isso era de se esperar. Normalmente, esse pessoal cheio de credenciais de classe envereda pela fantasia sectária. Esperar deles uma análise realmente inteligente é mais ou menos como esperar do João Pedro Stédile uma análise racional do problema fundiário brasileiro. Muito mais interessante é outro livro sobre o mesmo assunto lançado na França, Le France et les Juifs — de 1789 à Nous Jours, de Michel Winock. Sem tantas credenciais, mas com algo que Herzberg não tem: juízo e inteligência.

A Primeira Leitura voltou a ser, pelo menos neste número, o que era antes. Uma bela revista, inteligente, crítica, e necessária.

Meu nome é Gilvaneide, mas estou pensando seriamente em mudá-lo para Rafael Galvão.

4 thoughts on “Segunda Leitura

  1. Putz.

    Essa escolha do “marco” para a entrada dos blogs na arena como “mídia” foi uma enorme bola fora dessa matéria da revista.

    É arquievidente ;^) que no 11 de Setembro de 2001 os blogs fizeram sua estréia como grande mídia, e foram um reação rápida à falta de estrutura dos grandes portais da net.

    Esse pessoal escreve essas matérias de ouvir os colunistas americanos falar. São leitores de jornais, não jornalistas. Falam tanto de blogs mas com certeza nunca visitaram um dos maiores do mundo, o Slashdot, só porque é “técnico”…

    Mas o Slashdot fez uma tour-de-force de informação e serviços pra seus milhares de leitores, quando todos os portais da internet do mundo (inclusive os daqui) caíram.

  2. Marcus, o post foi escrito com pressa e continha alguns erros fundamentais. A liderança da Fox foi mostrada na revista como uma das forças (blogs, cabo, etc.) que estão acabando com o noticiário tradicional americano. Revisei agora. Desculpe.

    Agora, eu nunca tinha encarado antes o Slashdot como blog; mais como uma espécie de wiki. Essa visão é interessante. Merece aprofundamento. 🙂

  3. Eu nunca li, mas sei que não gosto dessa revista. Não dá pra levar a sério uma revista parcial, que estampa “verdades” pra lá de discutíveis até nas capas. Porcaria por porcaria, melhor a Caras, he he he…
    Quanto ao Bush, esse segundo mandato amedronta ainda mais, pois desta vez ele não enfrentará as urnas ao fim desses quatro anos. O louco vai poder fazer tudo que der na telha…

  4. Eu penso nele como um blog pela forma como são mostradas as matérias, por uma certa informalidade e também pela ênfase nos links externos (coisa para a qual muitos blogs brasileiros, por sinal, não ligam muito). Um blog coletivo, talvez, onde os sub-threads fazem às vezes de comments…

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