Um clone no pantanal da América

Chico Anysio diz que crítica de TV é a coisa mais idiota do mundo.

Ele explica. A função da crítica é servir de guia. Ela serve para você decidir se vai ver aquela peça de teatro que ficará um mês em cartaz, se vai comprar aquele livro que continuará nas estantes da livraria.

Não haveria sentido em criticar, por exemplo, um episódio de Chico City, porque esse episódio passou, não será repetido. Criticar o passado é perda de tempo.

Ah, sim: tem as novelas, você diz.

Mas criticar novelas me parece ainda mais idiota. Porque é uma obra aberta, porque tem seus rumos definidos não pela crítica, mas pelo Ibope. Novelas são a coisa menos infensa à crítica que existe em televisão. Novelas são a caravana que passa enquanto os críticos falam palavras difíceis.

E ainda mais inúteis.

***

Mesmo sabendo de tudo isso, não dá para evitar comentar “América”, a novela da Globo

O pau comendo entre Glória Perez e Jayme Monjardim pode ter chegado às ruas mas, decididamente, não é a razão pelo fracasso de audiência.

Não que Monjardim não tenha culpa no cartório. Sua direção é catastrófica. O produto que ele levou ao ar é um pastiche de produções passadas que poderia ser mais apropriadamente chamado de “O Clone no Pantanal da América”. Os atores, com poucas exceções, são uma espécie de quem-é-quem da má representação. Os gemidos de Deborah Secco seriam muito apreciados em outro lugar e em outra situação; a inexpressão de Murilo Benício, nem isso.

Mas o verdadeiro problema não está na direção. Está na concepção e no roteiro da novela.

O interior de São Paulo pode ser rico, mas ao resto do Brasil interessa pouco ou nada. É um mundo à parte, repleto de elementos que o Brasil urbano olha com escárnio, como chapéus, fivelas escandalosas e peões de boiadeiro.

Mas há algo muito pior, provavelmente o principal problema da novela: o núcleo cucaracho.

Nós que costumamos reclamar de filmes americanos que mostram brasileiros falando inglês ou espanhol — ou de Mickey Rourke indo de Salvador ao Rio em 45 minutos, em “Orquídea Selvagem”– deveríamos ter vergonha dos mexicanos da novela de Glória Perez.

Esse recurso “multinacional” já foi muito usado nos primeiros tempos das telenovelas brasileiras, em que tudo era amadorístico. Hoje soa apenas falso, amador. E se as novelas são um produto criativo ruim, elas não podem ultrapassar o limite do real, do crível.

Glória Perez juntou em “América” todos as suas características: a celebração de uma carioquice que o medo destruiu, como o boteco da dona Jura e um bairro que não existe (ninguém mora no Andaraí. Pode verificar. Nego sempre puxa uma, duas ruas e diz que mora na Tijuca ou no Grajaú); um elemento qualquer sobre o qual fazer uma campanha politicamente correta, como o vício em drogas ou transplante de coração; e algo que pareça exótico (a cigana Dara, a Internet, o Marrocos). Mas dessa vez a mistura foi tão indigesta que nem mesmo o cigano Ígor poderia agüentar.

10 thoughts on “Um clone no pantanal da América

  1. Escorregando um pouco pra falar ou ta coisa: Cara, o Brasil é mais “caipira” do que muita gente que nunca foi ao interior pensa, pegue São Paulo, Minas, Goiás, os Mato Grossos e Paraná e vc tem um grande bolsão de cultura caipira. É o nosso meio-oeste. hehehe
    Sou goiano, mas como tive uma educação apartada da cultura popular, cheguei a ser preconceituoso não só em relação a esse Brasil caipira, mas principalmente em relação a cultura nordestina e nortista. Por sorte aos 14 anos isso já tinha passado, hehehe.
    Quem acha falso, brega ou sei lá o quê esse estilo chapéu e bota, não sabe o quanto ele é autêntico e corresponde a uma repaginação de elementos arraigados na cultura interiorana a mais de século. Em Goiás, Minas, etc, os jovens realmente tem em suas disqueteiras desde tecno, rock até um cd de “Tonico e Tinoco”. E ouvem, e gostam. Em pensar que meu avô 50 anos atrás já ouvia Tonico e Tinoco.
    Essa região tem muito forte em suas origens a cultura dos tropeiros, dos boiadeiros. Esse pessoal de bota e chapéu desbravou o interior, tocando boiada, fundando cidades, abrindo fazendas e tocando viola.
    A mistura com elementos country aconteceu via cinema já nas décadas de 40/50 e casou com perfeição, já que peão e cowboy no fundo é tudo a mesma coisa, hehehe. Foi aí que entraram em cena os cinturões de cowboy e depois os jeans. Bom, chega, cansei de falar disso. hehehehe

  2. Rafael e essa sua mania de fazer a linha eclético pra agradar as massas… Tsc tsc tsc… 😛

    Eu me libertei das novelas há anos… Agora eu só preciso parar de ver o João Kleber.

    Hahahahahahahahahhahaahaa

    É brincadeira! Beijos!

  3. Eu nunca vi a tal América, mas consegui visualizar tudo o que você escreveu a respeito. Não aguento mais ver novelas, e olha que eu gostava. Glória Perez (e outros novelistas) parece ter um esquema, um formulário para elaboração de uma trama. Basta preencher com nomes e situações diferentes e lá está a história. Olha, acho que nem o Ígor aguentaria mesmo. Mesmo assim, você me convenceu a ver um capítulo para me divertir um pouco com o tosco da TV. Ah, pensando no Jaime Monjardim, claro, lembrei do seu “unha-e-carne”, o Marcus Viana (ou Vianna?). Aquele é outro que preenche formulários na hora de compor as músicas. Será que o cigano Ígor aguenta ou é surdo?

  4. Tenho que concordar com a Mônica. Essa novela é um produto de formulários preenchidos. De cabo à rabo. Tá intragável. Debora Tostada Sussurante e Murilo Malnício (que interpreta com o pé, por isso a gente não vê) principalmente. O núcleo cucaracho, só abstraindo mesmo.
    Só presta meu tio, Walter Breda (e por favor, ninguém fale mal dele, please… hehehe), mas nem pra ver ele eu tô conseguindo assistir. Ah… também gostei de Nívea Maria porque tá me lembrando uma novela boa pra danar de quando eu era criança e ela fazia papel de gêmeas.
    Mas eu gostei do Clone… rsrsrs…

  5. Quase perfeito dessa vez, Rafael, apesar de que eu também não tenha a mais solene idéia do que venha a ser América. O unico senão do seu post é: eu morei no Andaraí, tá?

  6. Rafael, leio regularmente seu blog, e salvo meu engano, é meu primeiro comentário.

    Mas você acertou em cheio, esse “núcleo cucaracha”
    é o fim da picada. Imagine, é impossível trasmitir o mínimo de realidade com aquela mexicanada com sotaque carioca. Mas não fica só nisso, é uma esteriotipação muito fraquinha.

    Minha ex-namorada mexicana rolou de rir com “esse”
    México que ela nunca viu.

  7. Eu concordo com o Roger, a cultura caipira está presente em boa parte do Brasil. Tenho parentes no interior do Paraná, amigos no interior de São Paulo, que sempre gostaram de musica sertaneja, por exemplo, mas sem deixar de gostar de rock, pagode e, mais recentemente, tecno.

    E eu, que apesar de nascido no interior do Paraná, fui criado em São José/SC, aprendi a gostar de sertanejo com meu pai, também um “filho do norte do meu Paraná”.

    Sobre as novelas, se não me engano foi Paulo Autran que disse uma vez que não iria mais fazê-las, pois só existiriam 2 tipos de roteiro: Quem-matou-quem e quem-casa-com-quem.

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