Diário de Berlim

Meio por acaso, me bati com o “Diário de Berlim”, livro de William Shirer, autor de um dos maiores clássicos sobre a II Guerra Mundial, “Ascensão e Queda do III Reich”.

O livro não está mais em catálogo no Brasil. Não dá para saber que edição é essa: apenas que a editora foi a Record e que quando ele foi lançado a Guanabara ainda existia.

“Diário de Berlim” conta a experiência de Shirer como correspondente estrangeiro em Berlim. Obviamente não pode oferecer uma visão ampla das coisas, em uma época em que a censura era quase absoluta, em que o Voelkische Beobachter, o jornal de Hitler, publicava notícias que pareciam saídas do Planeta Diário e em que todos os países diziam mentiras atrás de mentiras sobre seus inimigos.

Mas, em compensação, dá algo que os livros de história costumam perder: o frescor da notícia recente, o estupor diante da evolução dos fatos. As análises e previsões feitas, mesmo quando equivocadas, dão uma idéia clara e precisa de como se pensava naquela época. O livro ajuda a entender melhor a II Guerra Mundial, e principalmente o nazismo, porque oferece uma sensação de humanidade que a peripécia e a análise fria costumam expulsar dos livros de história.

“Diário de Berlim” ajuda a colocar algumas coisas em perspectiva. A atitude covarde da Inglaterra de Chamberlain é bem lembrada, e a figura de Churchill, solitário em suas denúncias de Hitler antes de quaisquer outros, cresce assustadoramente — assim como a de Roosevelt nos Estados Unidos, embora de maneira menos clara.

Nesse aspecto, o que realmente impressiona quando mostrada assim, a quente, é a indignidade da postura francesa. Não há explicação para a maneira covarde como a França reagiu diante de Hitler, nem mesmo a decadência da III República. Até quando a Alemanha invadiu a Polônia e as intenções alemãs já eram mais que claras, a França ainda insistia na paz. A única coisa decente que a França fez, em meio a sua tibieza, foi declarar Paris cidade aberta quando as tropas alemãs marcharam em direção a ela. Podem não ter mantido sua dignidade, mas pelo menos preservaram a melhor cidade do mundo.

À medida que o diário vai sendo escrito, a história vai acontecendo. A tomada da Renânia, o Anchluss da Áustria, a Tchecoslováquia entregue por Daladier e Chamberlain. O livro mostra que a data de 1o de setembro de 1939 só é lembrada como o início da II Guerra Mundial porque foi quando a Inglaterra e a França declararam guerra à Alemanha. Mas demoraria ainda mais de 8 meses até os três países entrarem de fato em guerra, com ataques a seus respectivos solos; enquanto isso Hitler ia tomando a Dinamarca, a Noruega, o Benelux.

O livro mostra também o impacto do pacto Ribbentrop-Molotov, primeira parte de uma estratégia acertada de Hitler — o segundo viria a ser o Pacto Tripartite, feito para intimidar os Estados Unidos mas que acabaria justificando sua entrada na guerra na Europa. Se a Europa vinha permitindo o crescimento militar de Hitler, é porque tinha mais medo de Stalin do que do nazismo; de repente, sem que ninguém esperasse — e depois de várias tentativas de acordo entre Stalin e a Europa não-nazista — a União Soviética era deixada em paz por Hitler. Foi uma medida pragmática de Stalin; mas nem por isso aqueles que tinham lutado ao lado dos legalistas na Espanha conseguiram engolir ou compreender a atitude.

É no retrato do dia-a-dia alemão, entretanto, que está o melhor do livro. Shirer mostra como os alemães se prepararam para a guerra, vivendo numa pobreza e privações incompatíveis com o resto da Europa enquanto Hitler, em menos de dez anos, criava a mais fantástica máquina de guerra que o mundo já tinha visto.

Lendo “Diário de Berlim”, uma coisa fica clara. Claro que a esmagadora maioria dos alemães não era nazista. Mas quase todos, de modo geral, apoiavam Hitler. Aqui se confundem vários elementos, cada um importante na formação do fenômeno nazista. Um deles é sentimento de revanche depois da humilhação em Versalhes. Durante décadas, os alemães tentaram negar sua herança dizendo que foram vítimas de Hitler; o que transparece deste livro é outra coisa, é a aclamação de um grande líder, o apoio popular esmagador. Mesmo depois que as Leis de Nuremberg começaram a ser postas em ação, os alemães ainda apoiavam Hitler.

Nesse ponto o livro deixa ainda mais clara uma coisa óbvia, que vários revisionistas tentam ocultar: o anti-semitismo foi o elemento catalizador na imagem dos nazistas. Shirer mostra uma série de bons retratos de “traidores”, gente que aderiu ao nazismo e se mudou para a Alemanha. São pessoas de origens e formações diferentes. Mas todos têm um mesmo elemento em comum: o ódio aos judeus. Isso reforça a tese que Daniel Goldhagen defende em “Os Carrascos Voluntários de Hitler” e que tanta gente, até hoje, tenta desmentir.

Mas eles não eram apenas anti-semitas. De vez em quando tem-se a impressão de que eles eram anti-qualquer coisa que não fosse germânica. É um sintoma do famoso hegemonismo alemão, que ali ganhava as cores feias da eugenia, como no caso da política de Gnadenstoss, golpe de misericórdia, aplicado nos deficientes mentais alemães. Se em algum momento da História mundial um povo esteve pronto para a guerra, esse povo foi o alemão, por menos que a quisesse.

Um diálogo de Shirer com uma camareira ilustra bem esse sentimento alemão:

— Por que motivo os franceses nos guerreiam? — perguntou ela.
— Por que motivo vocês guerreiam os poloneses? — perguntei também.
— Hum — disse ela — mas os franceses são seres humanos.
— E os poloneses talvez sejam também — retruquei.
— Hum — voltou a fazer outro muxoxo.

Mas mesmo anti-semitas, anti-eslavos e anti quase qualquer coisa, mesmo apoiando Hitler, os alemães não queriam a guerra. Shirer compara a ida das tropas alemãs aos fronts da Primeira Guerra — em que os soldados marchavam sob pétalas de flores — com o silêncio e apreensão demonstrada pelos alemães diante dos desfiles de suas tropas em 1939.

O livro termina em dezembro de 1940. Antes do vôo de Hess, da invasão da União Soviética, de Pearl Harbor. Publicado em 1941, e podendo ser considerado parte da pressão doméstica para que os Estados Unidos entrassem na guerra, não se pretende um documento definitivo e não nega o seu caráter profundamente partidário; mas é provavelmente aí que está sua força e o seu interesse. É um grande livro, e vale a pena ser lido.

15 thoughts on “Diário de Berlim

  1. Excelente resenha, Rafa. E, da maneira como você escreve, vale por uma aula de história. Já estou enviando o link pra minha vestibulanda.

    Gostei do novo visu, embora vá sentir falta de te ver todo dia daquele jeitinho você-sabe-como. O tom do azul ficou muito bonito.

  2. A melhor razão de querer a paz é por não ter preparado a guerra. A França não tinha preparado : quando a esquerda chegou ao poder em 1936 ela tinha até planejado um desarmamento geral (não se esqueça da Internacional comunista, e da sua ideologia pacifista). Vendo o perigo fascista, ela lançou um programa de guerra, mas que foi muito compromedito pela situação social e económica do país, as greves, as mudanças de governos. Não se deve esquecer que em 1936, com a chegada da esquerda no poder, todos os capitais e todas as riquezas tinham saido do país. Foi um período de caos social e económico grande. Nem Blum (que era judeu), nem Daladier gostavam do fascismo, e ambos entenderam muito bem o perigo, mas os sucessicos governos de coalição eram fracos demais e o país instável. Para preparar a guerra, precisa-se de uma economia forte, o que eles nunca tiveram. Eles não conseguiram restabelecer a paz social necessária. Em 1938, a França não era em situação de entrar na guerra – tinha sido suicidário, e Daladier bem o sabia. Qual governo inteligente pode lançar o seu país numa guerra por ideias nobres e românticos tendo a certeza de ser esmagado ? Certamente, ele sabia que ele ia ter que fazer a guerra, mas ele tentou ganhar tempo para preparar melhor o exército. Era suicidário em 1939 também, mais eles não podiam mais recuar – o caós geral tinha virado inelutável.
    Blum e Daladier não eram covardes, ele sempre falaram de necessária firmeza, mas mal podiam controlar o próprio país. Os Ingleses e os Franceses sabiam que mesmo juntos eles não podiam lutar, e que eles precisavam da ajuda dos Estados Unidos e dos Soviéticos, que não quiseram fazer nada (o que se pode entender, pois quem está com pressa de começar uma guerra contra um país potente como era a Alemanha nesse tempo ?). Falar da covardia dos franceses e dos ingleses é muito fácil, e evita de mencionar uma coisa ainda tabu : a inteligência psicológica e estratégica de Hitler. Ele sabia muito bem o que ele podia fazer, quando, como, e porquê, e ele o fez.
    (lindo layout !)

  3. Ótima a resenha!
    Li esse livro aos 16 anos, por intermédio de um tio que me abastecia em termos literários e foi muito importante para a minha compreensão dessas coisas todas que você apontou.

  4. Nossa, sua descrição meu deu muita vontade de ler o livro!! Realmente parece ser uma visão diferente de tudo que estamos acostumados a ver sobre a II guerra. Muito bom o texto!
    Beijos

  5. Quem tirou o blog que tava aqui ??

    Gostei. Principalmente porque você tirou sua cara feia. Mas cadê a Rachel Welch que você ia pôr no lugar ??

    Agora, aquela gravura à esquerda, eu podia jurar que já vi em algum lugar. Mas velho tem essa mania, você sabe.

  6. Houve momento em que emissarios de hitler foram os judeus dizendo que eles deveriam se despreocupar e se desarmar pois nada de mal lhes aconteceria.

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