O santo e o filósofo

Vi que a Companhia das Letras relançou “O Julgamento de Sócrates” de I. F. Stone, agora em edição de bolso, mais barata.

É um belo livro, principalmente por desmistificar alguns dos mitos que rodeiam o filósofo grego. Ao longo de 2500 anos, e dependendo de cada época, várias versões sobre as razões de sua morte circularam com uma certa desenvoltura, baseadas, é verdade, nas alegações da acusação. Uma diz que foi condenado a tomar cicuta por pregar contra os deuses gregos. Outra — versão mais corrente em tempos mais puritanos — dizia que “corrupção dos jovens atenienses” era apenas um eufemismo para o fato de ele ser “um velho sodomita que atacava jovens indefesos”.

O que o livro de Stone mostra é que os motivos para a morte de Sócrates foram políticos, não religiosos ou sexuais. Os gregos não podiam ligar menos para os seus deuses, uma comunidade heterogênea de assassinos, ladrões, cornos, ninfomaníacas e tarados. Pregar contra eles não significava muita coisa, e essa tradição de tolerância era tão forte que séculos mais tarde, decadente e em ruínas, Atenas recebeu São Paulo de maneira bem diferente das outras, onde era invariavelmente aplaudido ou expulso: simplesmente riu dele.

A taça de cicuta tampouco se deve ao prazer com Sócrates se deleitava com seus discípulos. A pederastia era, mais que aceita, incentivada pelos gregos, e a tradição cretense do harpaghè — o rapto ritualizado de um jovem por um homem mais velho — é uma prova disso, embora possa-se levar em conta o fato de que a civilização minóica era bastante diferente da ateniense; nesse caso pode-se citar a velha e boa Esparta e seus soldados amantes. Em todo caso, o que Sócrates fazia da sua bunda não era da conta de ninguém e ele certamente não teria que prestar contas por isso.

Mas os atenienses tinham muito orgulho de sua democracia. Além de uma experiência política brilhante, era esse sistema que possibilitava o crescimento intelectual e artístico da cidade-estado. O que Stone demonstra em seu livro é que o crime de Sócrates foi investir justamente contra essa democracia. E isso era intolerável.

O caso de Sócrates lembra outro, o de Santo Estêvão, o primeiro mártir cristão. Um dos sete primeiros diáconos escolhidos entre judeus de língua grega, tinha um ardor cristão tão grande — esse ardor revolucionário que costuma vaporizar o juízo dos fanáticos — que o fez declarar que o judaísmo deveria desaparecer para dar lugar ao cristianismo, então apenas uma seita judaica. É a falta de tolerância típica do cristianismo (ironicamente herdada do judaísmo e aprimorada), que mais tarde evoluiria e tentaria fazer o mesmo com praticamente todas as outras religiões com que tivesse contato. O cristianismo é uma cortesã bela e fútil que não admite concorrência.

Estevão foi levado ao sinédrio. Considerando-se que esse mesmo sinédrio já tinha dado fim a outro barbudinho, um tal de Jesus, condenar um zé-ninguém chamado Estevão sei-lá-das-quantas era moleza. Como o governador romano não estava em Jerusalém, o povo com pressa se encarregou do caso e tacou pedra nos cornos de Estevão. Entre os presentes ao apedrejamento estava um jovem fariseu chamado Saulo de Tarso, que mais tarde seria ofuscado por uma luz esquisita na estrada de Damasco.

Há um paralelo interessante entre as mortes de Sócrates e de Santo Estevão. Ambos foram mortos pelo regime em que viviam, que lhes possibilitava a formação de um sistema de pensamento próprio e livre e que preferiam ver extinto. Nos dois casos, foram mortes que, à luz do sistema legal em que viviam, devem ser consideradas justas. A queda de Atenas, no caso de Sócrates, e a supremacia do cristianismo, no caso de Estevão, se encarregariam de recuperar suas reputações.

A volta de “O Julgamento de Sócrates” às livrarias é um bom motivo para ler um pouco mais sobre um dos acontecimentos mais importantes da história mundial. Ao perfil de pedra fundamental da filosofia ocidental é acrescentado um aspecto mais sombrio: o oligarca elitista que sentia pouco à vontade em um regime em que sua classe tinha absoluta liberdade, um sujeito com profundas aspirações autoritárias e anti-democráticas, se me lembro bem de um livro lido há mais de 15 anos. É um livro que, definitivamente, vale a pena.

13 thoughts on “O santo e o filósofo

  1. Socrates nunca existiu. Ele era um alter-ego do Platão.

    Eu tenho a seguinte teoria: Platão era apaixonado por um cara chamado Socrates, mas este nunca despertou qualquer interesse. Platão, começou a sofrer com esse amor e passou a escrever e a tentar entender esse amor.

    Amor platonico.

  2. rafael galvão estudou filosofia no Seminário Católico de Rito Tridentino, Aracaju.

    a teoria da carol é boa.

    o que eu me pergunto sempre por conta de livros que contam fatos que aconteceram muitos anos atrás é COMO OS CARAS CONSEGUEM SABER DAS COISAS?
    :>)

  3. A relação entre grandes pensadores e democracia deve ser uma passagens das mais esquisitas da história do pensamento ocindetal. De Sócrates a Marx, passando por Maquiavel, Hobbes, etc. muita gente de muito conteúdo não aprovava a democracia. Espero que seja um defeito deles…

  4. Pequena dúvida: até que ponto a pederastia era aceita na sociedade ateniense? Eu sempre soube, e noventa por cento das coisas que a gente sempre soube estão erradas, que relações homossexuais eram aprovadas desde que ligado ou à amizade, ou ao ensinamento. Não pegaria bem, nesse sentido, um velho ateniense abordando jovens donzelos em ruas mal iluminadas.

  5. Isso, Lucas. Normalmente associam a relações homossexuais a amizade, ensino e relações sociais, enquanto a heterossexualidade é associada, mais ou menos, ao que hoje entendemos por amor.

    O caso de Sócrates se enquadrava perfeitamente na normalidade ateniense, até onde consigo entender.

  6. Há pouco tempo eu li que Sócrates não mostrou resistência alguma à prisão, tudo em respeito às instituições vigentes. Mas se a filosofia do infeliz era tão perigosa assim à democracia ateniense, então peraí que eu perdi alguma coisa.

  7. Nossa, foi uma grata surpresa ler este texto aqui rafinha, faz tempo que me entristeço por não mais ver discussões sobre os filósofos gregos.
    Aqui em Recife tem uns poucos amigos meus que, por uma feliz coincidência do destino, calharam de ter lido todos aqueles livrinhos azuis da coleção “Os Pensadores”, outros leram até aqueles marronzinhos da coleção “Os Economistas”.
    É foda(ou falta de, sei lá) pq não dá mais pra indicar a leitura de um texto como esse seu a galera mais nova, pq o povo simplemente desconhece o tema. Pra aqueles que criticavam essas coleções que eu citei dizendo que “neguinho lê duas dúzia de livrinhos editados em massa e já sai se achando um intelectual” eu só tenho a dizer que hoje nem isso é possível, agora é só ficar rebolando a bunda mole mesmo.
    Abraço!

  8. Mudando um pouco o foco.. Tenho um amigo que é Doutor em Filosofia, e dizem que ele tem um post com uma pintura do Sócrates pelado na parede do quarto… Sacanagem…

  9. cara eu estou na australia e tenho que fazer um trabalho sobre esse tema …sera que vc poderia me mandar algumas informacoes…?
    Obrigado…

  10. Exterminar alguém que se contrapõe a um regime é anti-democracia. Ou seja, está se procurando justificar uma pretensa anti-democracia de Sócrates com uma atitude anti-democrática: matá-lo para silenciar sua voz, pois num duelo pelo diálogo o cara era imbatível!

  11. Meu amigo, tenho comigo que Platão era um médium que captava a mensagem dos vários espíritos (filósofos) e escrevia. Basta ver O Banquete, que foi escrito com muita precisão vários anos após ter acontecido.
    Não seria, Platão, também médium?

  12. Talvez o mais triste de quando se queira salvar a humanidade – é que esta terminamente recusa salvação. A vida para o homem, com seus incontáveis e contínuos desafios, é insuportável. Por isso ele tem profunda atração pela morte. Porque homem quer viver irresponsável e egoísticamente – e depois morrer. Ele não quer aprender nada, ele não quer justiça, ele não quer paz social, ele não quer pensar nem seus descendentes, quanto mais em seus semelhantes: ele quer mentir, matar, roubar – e se dar bem. Esse sempre foi o sonho de consumo da maioria dos seres humanos. Se não é possível, eles querem a morte.
    A pedofilia de Sócrates era “intolerável” – mas as dos padres de hoje não é. Já repararam que depois das denúncias triplicou o número de criancinhas nos catecismos? Todos em busca, não dos ensinamentos de Jesus, mas de uma experiência carnal com algum membro da Igreja (padre, monsenhor, bispo, cardeal, até o papa se for possível). O homem adora a homossexualidade, mas se o homossexual começar a falar alguma verdade… aí estragou tudo e a homossexualidade transforma-se em um forte motivo para se decretar a morte do homossexual.
    Claro que no caso de Sócrates ele não foi condenado por estar iniciando jovens na homossexualidade, mas em os estar libertando de toda e qualquer ignorância sobre a qual estava fundada Atenas.
    O homem sempre adorou a mentira, e com os ensinamentos de Khrishna, Sócrates, Platão, Confúcio, Buda, Jesus, o homem “evoluiu” para a hipocrisia: parecer ser o que jamais tem a intenção real de ser. Por que, então, homens com tanto conhecimento perdem suas vidas na aparente tentativa de salvar quem recusa salvação? Será mesmo que eles consideram que a sua morte será a tentativa derradeira de salvação dos hipócritas. Ou é mesmo para atrair toda a desgraça e destruição para seus algozes?…

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