Aquele que aponta o caminho

Eu ainda morava em Aracaju quando ele começou a pregar nas ruas do centro da cidade, de preferência em frente ao Palácio do Governo, na mesma praça onde Fausto Cardoso foi morto em 1906.

Ele vestia ternos baratos e velhos, e trazia sempre uma Bíblia evangélica nas mãos. Gritava, fazia gestos largos e dramáticos, batia na Bíblia como a prova irrefutável de tudo o que dizia; a saliva se acumulava branca no canto de sua boca, aquela que não era expelida enquanto ele nos advertia contra o fogo do inferno mas nos oferecia a salvação eterna. Fui embora e voltei, e ele continua ali.

Até hoje, quando vejo algum católico falar do fanatismo dos evangélicos, eu lembro dele. Por sua vez, ele me lembra que os católicos de antigamente eram exatamente assim: a mesma loucura, o mesmo proselitismo descontrolado, a mesma vontade de mostrar aos outros a Luz que o salvou. É homem de uma única certeza: a de que sua fé o faz melhor, e que é seu dever retribuir à altura guiando este rebanho de cordeiros insensatos no caminho do Senhor. Quando o vêem gritando sobre o Senhor e se afastam quase inconscientemente, como virariam os olhos a um menino com hidrocefalia, as pessoas esquecem que o termo evangélico se aplica também aos católicos, e que o que fez a força dessa religião foi justamente essa mesma loucura evangelizadora, a mesma vontade de impor ao mundo a sua verdade. Aqueles que o acham ridículo deveriam saber que ao entrar em suas igrejas para a missa do domingo carregam a mesma herança de grotesco, de loucura, que aquilo que lhes justifica vem da mesma matriz torta que gerou o pregador das ruas do centro de Aracaju.

Eu gostava de imaginar o seu passado; se se converteu depois de uma vida de pecados semelhante à minha ou se foi criado por pais evangélicos e pios. Prefiro achar que sua vida foi aventurosa e difícil; que ele foi mau e fez mal, que foi apontado na rua como péssimo exemplo e criatura perigosa, mas que de repente descobriu Deus. Só uma mudança tão radical justificaria o seu furor evangélico, a disposição de pregar para ouvidos moucos por tantas centenas de tardes.

Ele se joga ao sacrifício da humilhação pública como cristãos igualmente enlouquecidos se jogavam aos leões e às fogueiras romanas. Para que alguém se torne capaz de tanto abandono de si mesmo é preciso que saiba, no fundo do peito, o que significa a certeza da salvação, e esse conhecimento só tem quem conhece a verdadeira danação, aquela que se paga aqui e não no inferno. Eu, que apenas me converto todo dia a mim mesmo, seria incapaz disso. Ao contrário de mim, que acumulo pecados capitais que pretendo continuar acumulando enquanto o bom Deus me der saúde, ele modelou sua vida nas dos apóstolos, e quer que sejamos salvos também, como ele foi. Ele é um bom homem.

Perto do Natal do ano passado consegui tirar uma foto sua. Era uma vontade antiga, mas raramente ando com uma câmera pelo centro, nossos horários não se batiam. Um dia eu o achei. Ele estava no cruzamento de dois calçadões, perto da igreja católica mais antiga da cidade e diante de uma casinha de Papai Noel, daquelas onde desempregados vestem uma roupa vermelha no calor de dezembro e colocam uma barba postiça para tirar fotos com meninos enjoados.

(Eu sempre imaginei que Papai Noel fosse a profissão dos sonhos de um pedófilo, sempre imaginei seus olhos brilhando enquanto um menininho de quatro anos senta em seu colo e ele pergunta, trêmulo, “o que você quer ganhar, meu filho? Seja um bom menino…”)

Me escondi para tirar as fotos. Eu tinha certeza de que ele não gostaria que um sujeito que não conhece o fotografasse — e ficaria ainda mais revoltado se soubesse quem eu sou, se soubesse dos meus esforços para tirar tantas ovelhas do bom caminho do Senhor, esforços ditos baixinho em pescoços perfumados. Foram fotos ruins, as pessoas passavam na frente, o foco nunca estava correto.

Aí ele me viu.

O meu pregador então se transformou em um artista. Ou, se artista ele já é, em um artista ainda melhor, iluminado por sua musa divina. Olhou para mim e tudo nele indicava aprovação, quase gratidão. E ele foi mais veemente em sua peroração, seus gestos se tornaram ainda mais largos, sua voz se tornou mais confiante. De repente ele não estava mais diante da multidão de passantes que o ignoravam: o calçadão havia se transformado num púlpito de verdade, agora ele tinha alguém que prestava atenção em suas palavras. E coroou a sessão apontando teatralmente para o céu — como Agnes indicando que Dora havia morrido, ou Moisés enganando alguns milhares de hebreus e os metendo na grande fria de suas vidas. Minha lente, ele talvez tenha achado, lhe daria a chance de apontar o caminho para mais pecadores. Baixei a câmera e ele me fez sinal de positivo. E voltou o olhar e a fala para a multidão triste de materialistas que não tinham Deus em seus corações.

Foi quando entendi. Eu só teria vergonha de ser fotografado porque fé, mesmo, eu tenho apenas em mim mesmo. A minha fé tem o meu tamanho, e Deus é muito menor que eu. Mas ele, não: ele acredita em algo muito maior que ele, e essa é a sua desculpa e a sua razão.

Republicado em 14 de agosto de 2010

24 thoughts on “Aquele que aponta o caminho

  1. É …
    Só que quando foram ‘acometidos’ dessa loucura ‘evangelizadora’, e não sem um intuito muito objetivo, e nada ingênuo, os católicos detinham o poder, cujo sustentáculo financeiro veio após com os bens dos queimados e empalados, todos ‘herdados’ pela ‘igreja’, sem falar no incutamento (obscurecimento da mente?) de dogmas que até hoje ainda possuem sua força na mente de milhões.
    Foram bem menos sutis que os evangélicos, que hoje, através de algumas de suas grandes expoentes, também amealham milhões.
    Os católicos usaram pra ‘evangelizar’ meios bem menos sutis, e nada nada ‘suaves’.

  2. Quando é que você vai parar de afrontar o meu “querido Papai Noel”? Que miséria… já não basta ter “matado” ele com suas loucuras e taras sob a égide das histórias infantis, agora classifica o velhinho como pedófilo? Humpf… Quando ao evangelizador, feliz de quem tem fé.

  3. Aqui em Salvador tem um moço que fica pregando numa estação de ônibus no centro da cidade bem parecido com esse. Será que é o mesmo? Que passa um tempo cá e outro lá? Ou porque são parecidos esses seres que acham que têm a missão de salvar nossas pobres almas?
    De qualquer forma, ele conseguiu um pequeno mas importante “milagre”. Depois deste teu texto, vou olhar com outros olhos esses pregadores.

  4. Sabe Rafa,

    Segundo uma pesquisa sobre marketing religioso, a maior preocupação das pessoas é a “salvação eterna”. Esse, segundo essa pesquisa que eu não me lembro a fonte para te dar agora, é o motivo das pessoas frequentarem a igreja. Para ver mais profundamente o que cada religião significa, descobri uma coisa, conversando discreta e informalmente com algumas – muitas – pessoas e ouvi de mais de uma a seguinte frase: EU VOU NA IGREJA PQ EU SOU MÁ. Elas fazem as cagadas da vida e vão a igreja e acham que isso as salvará de suas maldades. Essa é uma característica dos evangélicos. Os católicos carolas aceitam a religião pq assim é mais fácil. Houve um Jesus, que morreu por todos e ponto. Sigam-no e terão sua alma salva. Tudo não passa de comércio. De “quase” todas as religiões. Objetivo número 1: dinheiro. Objetivo 2: Maior número de fiéis para ganhar mais dinheiro, voltamos ao objetivo 1. É fácil, olhem a história da igreja católica e percebam que, aos poucos eles vão se adaptando ao povo, pq se forem muuuito enérgicos perderão fiés. Aos poucos abrem mão disso, depois daquilo…e assim vão seguindo.
    Sabe, eu queria ter essa fé cega, vc joga as responsabilidades de sua vida nas mãos de Deus e vai…deixe que ele te guie. Não pensa. Não ouse questionar a Bíblia, nem os Papas, nem Jesus. Seria tão mais fácil…vc passa a não ter mais responsabilidade e deixa que Deus te leve…eu queria ter essa fé cega, seria tudo tão mais fácil…Deus me dará, Deus me salvará, Deus abrirá uma janela, era só rezar, pagar o dízimo e esperar que Deus tocasse minha vida.

    PS.: Nem preciso dizer que essa é MINHA opinião…ficou implícito né?

  5. Há grande verdade no que foi aí escrito (se é que verdade tem tamanho). Apreciei esse detalhe de dizer baixinho em pescoços perfumados…Pois Rafael, você é um pregador de verdades sutis, é certo que essa que você jogou na nossa cara liberta, mas nos deixa ainda mais miseráveis, no deserto da descrença e do desasossego. É um pouco do que Moisés fez com os Hebreus atirando-os ao deserto, mas contrariamente, oferecendo-os uma ilusão colorida de esperança. A verdade liberta de quê? Ainda quero saber!

  6. Rapaz, eu senti algo muito parecido quando – nos anos 70 – deparei-me pela primeira vez com o “profeta” Gentileza, no Rio, esperando a primeira barca para Niterói, na praça 15: ele organizando o seu dia, eu saído de uma noitada de choro e idéias, razoavelmente alcoolizado.
    Quando ele me viu, interessado na sua atividade, parou tudo e começou a pregar…conseguiu!
    Passei a ter uma admiração profunda por aquele cara e aprofundei ainda mais a noção de que o meu destino – irremediavelmente – é o fogo do inferno, que – até prova em contrário – é muito mais interessante do que o outro lado…
    …depois dei até contribuições para ele fazer as “pichações” nos arcos e pilastras dos viadutos…quem sabe aliviava a minha barra?
    …acho que não deu certo…

  7. No centro de Porto Alegre, tem caras que fazem coisa parecida, mas nunca são os mesmos, sempre são homens diferentes, mas todos eles com um mesmo propóstio, levar a palavra do Senhor adiante. E, fico um tanto quanto impressionado com o fervor e dedicação desses que, parecem não se incomodar com aqueles que os repudiam ou os ofendem.

    Abraço.

  8. Texto maravilhoso, como sempre.
    Mas será que o sujeito descrito aqui não é um típico caso de “pobrema de ego”? Humilhando-se deste modo, expondo-se ao descaso ou ao riso dos passantes, não estará ele na verdade exercendo seu orgulho, não se achará ele um eleito de Deus para pregar Sua palavra …
    __________________________
    continue pecando gostoso

  9. Caro Rafael:
    Duas coisas a observar (o melhor, muitas, mas me contentarei com duas ou três)
    1- O Milton Ribeiro me disse (escreveu para todos) que você era um excelente leitor.
    Eu constato, por este post que você também é excelente escritor.
    2- Dizem que “uma imagem vale mais que mil palavras”, eu sempre discordei – afinal imagem é aparência e as aprências…etc)

    Desse modo, você resolveu a questão: uma imagem é uma é uma imagem, na maioria das vezes caladas e mortas. (Não que eu não goste delas e elas não tenham seu valor)
    Mas as palvras… ah estas são vivas, ricas, remetem às mais diferentes idéias.
    Por exemplo quando vc fala de conversão e se o homem era mau (belo exemplo da distinção entre mau e mal e que tanta gente boa não sabe fazer) e fez mal, lembrei imediatamente de (Santo) Agostinho que levava uma vida , talvez, como a sua, acho que do jeito que o diabo gosta:-)
    De toda a forma, hoje tive coragem para deixar um comentário.
    Um grande abraço e minha admiração de sempre.
    Meg.

    By the way: Dizem que certa vez, irritado com esa coisa de “uma imagem vale mais que mil palavras”, o Millôr Fernandes respondeu: “Ah é?! Então diz isso com uma imagem.”

    😉

  10. Rafaé, as frases finais vieram primeiro que todo o post, não foi? Se não, deveria ter sido. Dá pra escrever o resto da vida sobre elas. Vai pra pastinha “Rafaé: como vejo os povo”. Abraço.

  11. Eu te digo uma coisa, este homem é um servo de Deus, ele prega a sua palavra, não importa se o escutam ou não, porque naquele dia ele receberá o seu galardão.
    Enquanto isso, todos aqueles que ignoraram as suas palavras, estarão no fogo eterno se lamentando, e pensando na oportunidade que tiveram de se converter a Jesus e desperdissaram…
    O SENHOR é Deus poderoso, mas só se revela a aqueles que o buscam verdadeiramente…
    Não falo de hipocritas que estão atras de dinheiro, mas de homens fieis como esse que servem ao SENHOR porque o amam de verdade!
    Ele não precisa fazer aquilo, a salvação é pela graça! Ele faz isso por amor!

  12. Você já leu a bíblia? Ao ver este homem eu lembro do profeta Jeremias, ele profetizou em Israel por 40 anos e ninguém deu ouvidos a ele, ele profetizava Juízo, profetizava sobre a invasão babilônica, e sobre os 70 anos de cativeiro que o povo ia passar…
    Ninguém deu ouvidos a ele, mas tudo aconteceu da maneira como ele falou pois ele era um profeta de Deus… Deus ainda tem seus profetas, que pregam juízo em todo mundo… Os que ouvirem sua palavra e se converterem a Jesus serão salvos, o resto perecerá… Você foi avisado, naquele dia não terá como se desculpar!
    Que Deus o abençoe e tenha misericórdia de ti…

  13. Rafael, querendo ou não, você compôs um texto cheio do melhor espírito cristão: o amor e a compreensão em relação ao outro.
    Eu, que como tantos outros, não boto muita fé nem em mim mesmo, fiquei com vergonha dos comentários rasteiros que faço sobre os evangélicos no meu blog.

  14. haanem… RAFA,,, ruma uma ocupaçao pra voce quem sabe voce encontre o caminho da salvaçao,,,

  15. Baita Foto…é um pregador a caminho da eternidade e da notoriedade….como você é, no fundo, piedoso, sinto em cada palavra do teu texto um misto de arrependimento e profunda contemplação dos mistérios….mas eis que você escapa do labirinto usando o mesmo fio de Ariadne: a razão. Ok vc está salvo da maldita perdição da vida, depois dela não interessa…

  16. Ele ainda continua pregando…ele está ali na esquina…e eu fui lá e observei a saliva branca no canto se sua boca.

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