Anti-semitismos

Senhor Rafael Galvão.
O senhor desconhece inteiramente a história do povo judaico e ousa ofender-lhe, com que direito o faz? Exijo que respeite a dor, o sofrimento deste povo que foi e continua sendo perseguido por pessoas como o senhor que tece comentários inverídicos, com que intenção? Quem é o senhor para falar do povo judaico, com que conhecimento de causa, não sabe nada. Que prove o que menciona em suas palavras maldosas para com o povo judaico!
Carlos Olguin Naschpitz

Eu não sei exatamente o que o sujeito, em seu comentário a este post, quer que eu prove. Se ele está falando das leis israelenses a que me referi, referências a elas podem ser encontradas nos jornais de agosto de 2003 — e não custa procurar em sites israelenses. Se se refere ao que chamo de crimes de Israel, os mesmos jornais trazem notícias sobre isso quase toda semana — mas Naschpitz pode achar que todos eles fazem parte de uma grande conspiração anti-sionista. Descontando-se a indignação tão dolorida de Naschpitz — com direito a ponto de exclamação no final —, seu comentário é vazio, choroso, sem substância.

(Naschpitz não está sozinho. No comentário anterior, Marília Julião Mendonça dá carteirada de “professora universitária de história” para dizer que não existem as tais leis israelenses a que me referi. Eu não queria ser seu aluno, porque ela é ignorante e não lê jornais. Também diz que um casamento entre judeu e alemão rebaixava o alemão de categoria em vez de proteger o judeu da barbárie hitlerista, o que mostra que ela tampouco sabe alguma coisa sobre a Alemanha nazista. Finalmente, tenta justificar quaisquer atitudes israelenses recorrendo ao cativeiro egípcio dos tempos de Moisés, e então vem uma vontade grande de dar um tapinha na sua cabeça, enfiar um pirulito em sua boca e mandá-la brincar na gangorra, tomando cuidado para não sujar o vestido.)

O comentário do Naschpitz apenas reforça a idéia por trás do post: a de que a acusação de anti-semitismo é sempre uma pecha quase sempre irresistivelmente fácil de jogar sobre quem não concorda incondicionalmente com uma imagem fácil e tendenciosa da problemática israelense-palestina.

O mais interessante — e aqui se sai um pouco do tema do post original — é que não existe apenas “um” anti-semitismo. Posso contar pelo menos dois. Um deles, o ocidental, tem raízes em uma necessidade teológica do cristianismo. Se o judaísmo se negou a ver em Cristo o seu Messias, como havia sido profetizado, então ele precisava estar completamente errado para que a alegação de divindade de Jesus, no cristianismo primitivo, se legitimasse. Jesus tinha que ser Deus, e convenhamos que é preciso ser muito malvado para matar o Dito (Nietzsche tentou e acabou discutindo filosofia com os cavalos de Weimar). O cristianismo forçou uma identificação dos judeus com o Mal para garantir sua sobrevivência, e esse parricídio teológico é a origem de dois mil anos de perseguições e preconceito. Foi esse tipo de anti-semitismo que desembocou no Holocausto nazista e que se mostra latente ainda hoje. É talvez o tipo mais pernicioso, e certamente o que deu resultados mais tenebrosos.

Mas há outro tipo de anti-semitismo, com origens diferentes e muito mais complexas. O anti-semitismo que se fortalece no Oriente Médio, ao contrário do ocidental, tem bases bastante sólidas em uma longa história de guerras e agressões mútuas. E hoje é um processo que se desenrola tendo como elemento central um país que, sob a justificativa de seu povo ter sofrido o pão que o diabo amassou no Holocausto e ter sido atacado por vários países muçulmanos após sua fundação, oprime a Palestina de uma forma que, em muitos momentos, lembra a Alemanha nazista dos anos 30.

São situações diferentes, e que não estão necessariamente ligadas. No entanto, de acordo com raciocínios como o de Naschpitz, é tudo a mesma coisa: trata-se um mundo inteiro odiando os judeus a partir do momento em que levanta algum senão. Por sorte, esse não é o raciocínio — ou falta de — da maior parte dos judeus do mundo.

Por mais que os judeus tenham sofrido, por mais que tenham sido perseguidos, nada justifica a afirmação de Golda Meir: “Depois do que fizeram conosco, podemos tudo”. Não, não podem. Quem podia tudo eram os nazistas, e não se pode esquecer isso. Além disso, não se pode esquecer que há um momento-chave na geopolítica daquela região, a Guerra do Líbano: a partir dali, Israel passou a ser um país agressor. Isso faz toda a diferença.

É um equívoco muito grave esse tipo de esforço de santificação judaica, como se fosse um povo moralmente acima de todos os outros. Primeiro porque não encontra bases na história — o Naschpitz deveria se informar sobre a participação importantíssima de judeus e cristãos-novos no tráfico negreiro para o Brasil, por exemplo, e depois discutir o que parece ser seu conceito de “ética por direito divino”. Há bons e maus judeus como há bons e maus cristãos, muçulmanos e macumbeiros, e ao longo da história a perseguição execrável ao judaísmo não impediu o progresso material de muitos indivíduos, mesmo quando de maneira eticamente discutível. As relações dos “Estados” medievais europeus com a elite judaica que lhe emprestava dinheiro, por exemplo, são fascinantes pelos conflitos e concessões de ambas as partes. Além disso, Naschpitz poderia tentar descobrir o que eram os comboeiros nas Minas Gerais do século XVII, por exemplo.

Mas o pior aspecto em tudo isso é o incentivo a uma idéia de diferença irreconciliável entre “raças” que, em momentos históricos específicos, pode gerar resultados inversos e resultar, se não no Holocausto, na repetição das condições objetivas que o geraram. E é isso que esse pessoal, cegos guiados apenas pela promessa de Deus a Moisés, não consegue enxergar.

Originalmente publicado em 20 de junho de 2006

4 thoughts on “Anti-semitismos

  1. Excelente.Tão complicado quanto criticar o Estado de Israel é explicar para algumas pessoas que nem todo alemão é nazista, e por aí vai.De rótulo em rótulo se vende jornais e se faz política…
    Abraço!

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