Pequena reflexão sobre a natureza das coisas

Há dois gaviões por aqui. Passam voando diante da janela e então pousam no alto do edifício ao lado, entre antenas de TV e parabólicas e uma enorme caixa d’água.

São pardos, com as pontas das asas em tom mais claro.

Não os vejo de perto mas sei que são animais magníficos. Sei como são seus bicos redundantemente aquilinos, seus olhos também redundantemente de águia. Posso imaginar suas garras fortes, segurando suas presas enquanto seus bicos as dilaceram.

Quando eles passam voando pode-se sentir a sua força e a sua imponência na maneira como extendem suas asas e planam a despeito do vento. Gaviões personificam a única grande combinação de qualidades da Criação, aquela que nenhuma outra pode superar: liberdade e força. Aqui, neste pequeno canto do mundo perto do rio, eles são reis, voam acima de todos os outros, senhores de seus apetites enquanto os outros fazem apenas o pouco que podem: andam nas calçadas desviando das poças de chuva e dirigem seus carros se são humanos, esgueiram-se nos esgotos se são ratos ou baratas. Aos dois gaviões que voam por aqui sobra todo o resto, têm horizontes mais amplos que os de todos nós porque podem voar mais alto e ver mais longe, e mesmo que a maior parte das pessoas não saiba que eles estão aqui, esses dois gaviões são os senhores. Liberdade e força.

A senhora que mora ao lado tem um tucano de madeira em sua varanda. E quantas vezes um desses dois gaviões o atacou, num vôo rápido sobre a vítima putativa, tantas que a obrigaram a colocar uma rede na varanda, dessas que as pessoas, alegando proteger crianças, na verdade colocam para se proteger dos dissabores que um párvulo inconseqüente ou simplesmente bobo pode causar.

Mas ainda ficam os falcões de olho na ave que julgavam apetitosa, porque é isso que eles são, predadores, e é essa a sua missão na vida e porque, como o escorpião da parábola, eles não podem evitá-la.

Ainda há pouco um dos gaviões estava no telhado de uma casa vizinha — a casa que tem uma mangueira no quintal. Segurava uma presa com as garras, presa que estraçalhava com seu bico redundantemente aquilino. Não vi a cena, cheguei tarde, mas posso imaginá-lo há alguns minutos planando calmamente até avistar a presa, mergulhar num átimo e capturar sua vítima, que não deve ter visto nada, não deve ter tido tempo para sentir medo, apenas sentiu as garras penetrando em sua carne.

Ali, no telhado da casa que tem um pé de manga no quintal, o gavião comia a lagartixa que tinha acabado de matar.

E daqui de cima, apoiado sobre as minhas duas pernas medíocres e braços no lugar de asas com pontas mais claras, sorri enquanto pensava que, com toda essa liberdade e com toda essa força, o magnífico predador comia uma lagartixa. Apaguei o cigarro e fui pegar um copo de coca-cola enquanto o gavião imponente se regalava com uma lagartixa, gavião de merda. Liberdade e força. Sei.

Originalmente publicado em 22 de junho de 2006

5 thoughts on “Pequena reflexão sobre a natureza das coisas

  1. Rafa, tenho os meus gaviões de estimação também, aliás quebrei o braço por causa de um deles. Como sou fã das aves de rapina, me posto de quatro para a grandiosidade de um animal desse. São magníficos.
    Beijocas

  2. Me dê a mão, me abraça, viaja comigo pro céu, sou Gaviões, levanto a taça, com muito orgulho pra delírio da Fiel.
    Gavião me lembra o Timão.
    (qdo volta a escrever, moço?)

  3. Estou interessado na criação de gaviôes, no sentido de preservar as especies do Nordeste.
    Gostaria de obter todas as informações para com a lgalidade de criação destas aves aqui no Brasil.
    Muito obrigado
    Geórgeton Rios

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