Anatomia do comportamento de manés na internet

Comentário de Felipe Alves Fonseca a um post sobre o filme ruim do Diogo Mainardi:

Rapaz,você não entendeu nada. Nada mesmo. O filme se explica na última fala onde Diogo diz: ” A morte da Maria não serviu pra nada.” Vinni responde: ” Serviu sim, serviu pra financiar o nosso filme”
O filme é uma transcrição de Ave Maria. Só que na São Paulo do sec xxI o sacrifício de Maria não traz nenhuma boa nova. Não há salvação. É a mesma coisa em “Cama de Gato” onde Deus diz aos garotos “Afinal vocês nãotiveram tiveram tanta culpa assim”
Aconselho você a sair de casa, ir para as ruas onde essas coisas se passam e não ficar se masturbando na internet…

A explicação dada pelo Fefê é a explicação que o Mainardi deve ter dado a quem se deu ao trabalho de questionar seu filme. Foge de todas as críticas feitas no post, críticas que diziam respeito ao filme como objeto realizado. Fefê justifica “Mater Dei” pelas intenções, pelo “querer dizer”. Infelizmente isso não quer dizer nada. Eu posso até não ter entendido; mas o Fefê também não entendeu. Porque pouco importa o que os incompetentes cineastas Mainardi quiseram dizer: importa o que efetivamente disseram, e não foi nada mais do que um amontoado de bobagens. É triste ter que lembrar isso, mas de boas intenções o inferno está cheio. Quando alguém tem que explicar quais as intenções de um filme, a obra tem sérios problemas.

Pela irritação do Fefê se deduz fácil e talvez equivocadamente que ele está no círculo de bajuladores do Mainardi. Talvez por isso seu argumento beire o delírio. Transcrição da Ave Maria? Clichês da crítica como a frase “não há salvação” em oposição à idéia de redenção que caracteriza a maior parte dos filmes feitos em Hollywood?

Tudo isso é velho. É batido. É só a repetição de clichezinhos de universidade, parte do léxico de pseudo-críticos de segunda ou terceira. Milhares de bobinhos de classe média já repetiram esses argumentos para tentar agregar algum valor ao vazio do que defendem. E o que é pior: nada disso normalmente se traduz em verdade.

Digna de atenção também é a ofensa que o sujeito dirige ao seu incauto desafeto — no caso, este pobre paraíba solitário que datilografa estas maltraçadas: “pare de se masturbar na Internet”.

Há algo de estranho nesse tipo de conselho. Não costuma refletir apenas pobreza de argumentos; por alguma razão que um bom psiquiatra pode definir, vitupérios recorrentes como esse principalmente refletem e projetam o comportamento do ofensor. É o padrão que ele tem para julgar. É algo que ele sabe que lhe ofenderia porque doeria ao atingir um nervo exposto, e que por associação lógica certamente ofenderá o outro.

Por sua vez, o conselho de “ir para as ruas” é francamente imbecil. Não é nas ruas que se vê empreiteiros travando guerras com políticos. O Fefê, tão alienado em sua bajulação aos Mainardi, não compreende que esse tipo de ação se passa distante das ruas, e que elas apenas sentem as suas conseqüências. O Fefê não pode admitir que tema e o tratamento do filme dos Mainardi são elitistas como poucos outros na história do cinema brasileiro, e têm a mesma ojeriza às tais “ruas” que caracteriza a classe que ele representa.

Além disso, conselhos esnobes dados a quem se desconhece normalmente caem no ridículo. Não apenas para mim, macaco velho que provavelmente já bateu mais calçada que a dileta mãe do Fefê; mas porque não reflete apenas ignorância. Reflete também uma postura típica de classe média, que acha que “rua” é o boteco ao lado da universidade onde aprendeu as primeiras letras. As ruas de verdade, para “gente ‘culta’ de classe média” como o Fefê, são um lugar misterioso e exótico como a África Negra de um século atrás. Eu aposto que o Fefê anda de carro.

Se ele entendesse mesmo de rua saberia que, em primeiro lugar, o povo não vê um filme como “Mater Dei”, e que é feio invocar seu santo nome em vão. Nas ruas para onde o Fefê me degreda anda um povo que, com bastante razão, prefere “Titanic”. É uma das razões, inclusive, que fazem o seu ídolo chamar este país de “Bananão”. Quando, por algum acaso ou política de incentivo cultural, vê uma mediocridade absoluta e pretensiosa como “Mater Dei”, esse povo a abomina. Sai do cinema. Troca de canal. Queira ou não o Fefê, escastelado em algum lugar da pirâmide de bajuladores do Mainardi, o povo tem um padrão estético e narrativo razoavelmente claro, baseado no senso comum, por menos que se goste dele. Costuma ter juízo, também. É o que os mantêm longe de pequenas tragicomédias involuntárias como “Mater Dei”.

O filme do Mainardi não foi feito para o povo, e isso desautoriza o Fefê a encher a boca para invocar seu nome; foi feito para uma elite que o desprezou por reconhecer sua mediocridade. E isso fere. Isso machuca. Isso magoa.

“Mater Dei” não é só pretensioso. É medíocre, também, medíocre até dizer chega. Como colunista da revista Veja, Mainardi já foi sucessivamente interessante, engraçado, deletério e patético. Sua carreira cinematográfica, no entanto, não experimentou o fastígio: foi sempre de uma mediocridade acachapante. E filmes medíocres costumam aliciar defensores também medíocres.

Republicado em 09 de setembro de 2010

16 thoughts on “Anatomia do comportamento de manés na internet

  1. Puxa, eu pensei que fosse o único julgar questionável o apelo às intenções. Como se elas fossem acessíveis como a letra da obra ou a película.

    Bela resposta, Rafael.

  2. Ótimo texto.

    Essa fraude argumentativa (“as intenções do diretor”) está sendo bastante usada para defender um filme (Tropa de Elite) onde 95% dos espectadores vibram e torcem por um policial assassino e cruel… “ah, mas o diretor não quis dizer isso”…

  3. Isso me remete àquela pérola do Mário Quintana: Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, um dos dois é burro.

    Eu aposto todas as minhas fichas no Mainardi!

  4. Ah, eu nem tinha lido a crítica ao filme e agora quero assistir!!! Tá, assumo, é só pra ver o Gabriel Braga Nunes copulando numa cena doentia e usar de material pra, bom, você sabe pra que…..

    E eu torci pro policial cruel e assassino. 🙁

    Ok, odiei seu post, primeiro pq ele me deu vontade de assistir um filme do Mainardi e segundo pq estou me sentindo culpada. :/

  5. vc não vai fazer um post sobre a renúncia do alliado de Lulla, o renan calheiros?

  6. Rafa,

    Gosto bastante do Mainardi. Talvez seja o único a dizer isso nessa caixa de comentários, hehe. Mas concordo que o filme é uma bomba. Com “B” maiúsculo.

    PS: Você pensa em colocar novamente no ar aquela lista com seus melhores filmes? Se não pensa, DEVERIA, rapaz! Deveria!

    Abração,

  7. “Não apenas para mim, macaco velho que provavelmente já bateu mais calçada que a dileta mãe do Fefê;”

    é isso que eu gosto em você, ó baiano: nunca vi alguém usar tanta finesse pra chamar alguém de filho da puta. só faltou trocar calçada por trottoir. =P

  8. O Mainardi, como colunista da Revista Veja, soube encarnar bem o papel de inimigo do Lula – ele aproveitou o nicho quando ninguém quis se arriscar – resultado: o oportunismo lhe rendeu notoriedade diante da falta de concorrência. Agora tenham dó! Daqui a pouco até energúmeno vai ser cineasta. Ainda bem que isso passa!

  9. Olá, não vou comentar o seu comentário a respeito do comentário Felipe, até porque você já disse tudo. Uma coisa que me deixa puto com alguns cineastas nacionais é eles acharem que tiveram uma Anunciação do Grande Argumento. Isto é foda pra caralho. Mas vem cá, achar que Diogo Mainardi é capaz de fazer alguma coisa que presta é pra foder….
    Leio sempre seu blog, mas é a primeira vez que comento. Parabéns atrasado pelos seus textos.
    Eduardo

  10. E o filme do Jabor vai ser lançado. Só fica faltando o do Demétrio Magnoli.
    O já Otavinho Frias escreve peças de teatro muito elogiadas pelos críticos da Folha.

  11. Lí a sua crítica ao filme e a crítica à crítica do leitor. Magníficas!

    Tem alguma idéia de reunir esses posts num livro?

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