As bobagens que dizem em Seu nome

Aí pela época do Natal o Discovery exibiu alguns documentários sobre o “Jesus histórico”. Vi um deles. E fiquei impressionado com o jeito como se manipula a história de acordo com os seus interesses.

Documentários históricos deveriam ter um compromisso, pelo menos: com o bom senso. Não é o caso desse, cuja maior parte consiste em tentativas de comprovar episódios do texto bíblico. A estrela de Belém teria sido então um alinhamento de planetas, os reis magos viriam de determinados lugares, Jesus nasceu numa estrebaria porque era o andar de baixo de estalagens, e por aí vai.

O problema não está no método usado, que afinal é um bom método. Está no fato de utilizá-lo sob premissas falsas.

Em primeiro lugar, um pouco de psicologia de massas deveria ser sempre levada em conta. Por exemplo, deveriam levar em consideração a forma como boatos nascem, crescem e às vezes se perpetuam. Se alguém estava vivo nos anos 70 deve lembrar que diziam que Peter Frampton tinha perdido o braço direito. As pessoas acreditavam nisso. O boato tinha um fundo de verdade: Frampton tinha sofrido um acidente e quebrado o braço. Mas o membro continuava lá.

Boa parte do texto bíblico é basicamente isso, exageros da tradição oral. Cabe aos homens de fé e extrema boa vontade acreditar nisso; a um historiador caberia investigar o que há de verdade aí, mas não tentando provar alguma coisa.

Com os evangelhos aconteceu, seguramente, a mesma coisa. Uma cura de Jesus se transforma na ressurreição de Lázaro; e de boca em boca, ao longo de mais de 40 anos, a epopéia do filho do carpinteiro passou a ter uma dimensão fantástica e micraculosa. Meio século, no mínimo, é bastante tempo para se inventar milagres — e inventar de boa fé.

É improvável que tenha havido alguma estrela de Belém, ou estrebaria em Belém, reis magos levando ouro, incenso e mirra, multiplicação dos peixes, ressurreição. Eu pessoalmente acho que Jesus era, sim, descendente de Davi; isso justificaria a sua sensação de ser especial, príncipe entre os príncipes (e certamente não era nada difícil ser descendente de um sujeito com tantas esposas e concubinas). Como acho que a maior parte dos fatos em sua vida adulta é essencialmente correta, ao menos nos fatos básicos.

E tem Judas.

É o mais interessante de todos esses temas, principalmente nos últimos tempos, quando o Evangelo Segundo Judas chegou às manchetes do mundo inteiro.

O furor causado pelo manuscrito era artificial. Porque é um documento como qualquer outro evangelho apócrifo, sem muita base histórica. E de resto não dizia nada novo, além de uma interpretação que, a propósito, não aparece como nenhuma novidade. Qualquer pessoa que se tenha questionado sobre o cristianismo, ainda sob a premissa de que Jesus era realmente o filho de Deus, já se perguntou se Judas não fazia parte do plano e não era, portanto, um traidor, e sim uma peça no jogo divino. É tão lógico que chega a doer: se Jesus era filho de Deus e sabia que Judas ia traí-lo e não fez nada porque era tudo parte do Plano Divino, por que então Judas é um traidor? Digamos apenas que ele fez sua parte. O mundo precisa de garis.

Historicamente é mais que provável que Judas tenha sido apenas isso: um traidor, movido por quaisquer que tenham sido seus motivos — seja desencanto com um Jesus que ele queria guerreiro, seja simples ganãncia. Mas o documentário tenta apenas provar que Judas agiu de acordo com Jesus.

Em vez de ficar perdendo tempo com elocubrações bobas, esses documentários deveriam se preocupar em encontrar respostas para as perguntas que ninguém responde.

É quase unanimidade entre os historiadores o fato de que Jesus tinha irmãos. Que Tiago, chefe da Igreja adversário de São Paulo nos primórdios da Igreja, era irmão de Jesus. Então onde estão seus descendentes? Tanta gente por aí se orgulhando de ser descendente de qualquer degredado português quatrocentão, ou de marginais que se diziam bandeirantes — por que, então, não há descendentes de filhos, ou de primos de Maria, de José, de qualquer dos apóstolos?

21 thoughts on “As bobagens que dizem em Seu nome

  1. Acho q, infelizmente, n documentário sobre jesus vai estar tentando descobrir respostas sobre a verdade na história de Jesus. Acho q mesmo que houvesse que houvesse alguem se dedicando a este tipo de projeto ele dificilmente apareceria na Discovery. Qm se dedica a esse tipo de “trabalho sujo” são historiadores, e dificilmente ouviremos falar sobre isso.

  2. Sem piadas???
    hum, mas logo vem alguém te xingar, dizer que tu é um infiel, descrente e tal.
    bjos

  3. Ah, sim…essas respostas sobre Jesus com certeza não serão encontradas em programas da Discovery…já li muitos livros interessantes, mas , pelo que sei, as provas, para serem aceitas pela Igreja (digo, a Católica), passam por longos processos e estudos.Então,quando as provas forem aceitas, se forem aceitas, é provável, Mr. Rafael, que somente seus netinhos tenham acesso a elas.
    Mas acho que nem faz diferença dados históricos para a religião em si, pois não acho que vai abalar a fé de quem crê ou fazer quem não crê acreditar.Mas do ponto de vista histórico, seria interessante saber quem foram os parentes de Jesus.
    Beijos

  4. Segundo Nietsheze, em seu livro o Anticristo, Jesus Cristo, um dos maiores pensadores de todos os tempos simplesmente teve sua mensagem deturpada por Paulo, que queria ajeitar e acomodar as corretnes divergentes, para que o Critianismo, ao contrario do Judaismo, ficasse palatavel e tivesse mais adeptos. Ou seja, jeitinho. Lá como cá, antes como agora, malandros sempre existiram. Hoje várias “igrejas” que se dizem cristãs, se servem do mesmo subsidio para lucrar enganandos incautos. Palhaçada!

  5. Caro Rafael:
    Você parte do pressuposto que existiu um “Jesus histórico”.
    Isso até hoje é extremamente polêmico entre os historiadores sérios. Não há qualquer prova cabal da existência desse personagem. Ao contrário, há provas da existência de alguns apóstolos, como Pedro por exemplo. Aliás, estudiosos da santa madre procuram com afinco tais provas, sem sucesso.
    Há uma corrente historiográfica que tende a ver que o “Jesus histórico” é composição de diversos personagens, profetas, peregrinos, pregadores e milagreiros que perambulavam pela Galiléia por volta dos séculos II e I A.C.
    Você assisiu ao “A vida de Brian” do Monty Pitton? Por então, era mais ou menos aquilo. Na região conviviam dezenas/centenas de grupos que se opunham a Roma e ao poder secular judeu. os grupos eram dos mais diveros matizes, desde reformistas “gramscinianos” até alucinados “posadistas” (desculpe, mas não resisti à tentação).
    É isso.
    Um forte abraço
    Jorge Miguel

  6. Jorge,

    Não sei se há tanta polêmica assim. A maior parte dos historiadores, além de se basear nos evangelhos, cita Flávio Josefo como uma evidência razoavelmente imparcial de que Jesus existiu, sim. No fim das contas, há mais evidências da existência de Jesus do que de vários personagens históricos, por exemplo.

    Além disso, de novo o bom senso: é altamente improvável que um “personagem composto” tivesse o impacto imediato no judaísmo que teve Jesus, seus apóstolos e São Paulo. É bom lembrar que entre a morte de Jesus e a separação do judaísmo decorreram cerca de 50 anos.

    Eu concordaria com você se dissesse que sua importância em seu tempo foi limitada, muito menor do que a Igreja faz pensar. Concordaria com a imagem de Jesus como sendo mais um entre tantos malucos milenaristas numa região e num tempo conturbados. E ainda acho que o pai do cristianismo é São Paulo.

    Também não sei se dá para comparar “A Vida de Brian” com a situação na Judéia do século I. Essas correntes de que fala o filme são uma referência ao movimento de “esquerda” dos anos 60/70. Certo, há paralelos, sim, mas do ponto de vista político é improvável que houvesse tantas frentes assim.

    Cris,

    Mas é justamente essa a questão. Não interessa o que a Igreja acha. E cá entre nós, se eu fosse da Igreja eu lutaria quantas quaisquer provas que aparecessem.

  7. Carinha, é isso mesmo, nessa linha de pensamento “histórica” e sem frescuras cristã-bobológicas recomendo o livro “Deus, um delírio” de Richard Dawkins. Você vai gostar.

  8. Rafael:
    Claro que a lembrança de “A Vida de Brian” é só uma pilhéria. Existiam diversos grupos com variados matizes sobre como responder à questão romana. Peço apenas que desculpe meu comentário, que não resisitiu à tentação de uma piada.
    Quanto a Flávio Josefo, lembre-se que ele nasceu após os supostos eventos marcantes do Cristianismo e era um apologista de Roma, isto é, avesso às tendencias que buscavam a libertação do poder rormano.
    Mas, de qualquer forma, concordo com você, o artífice do cristianismo foi o apóstolo Paulo.
    Um forte abraço
    Joirge Miguel

  9. Rafael,hum…eu não consegui me explicar direito no outro comentário.
    Eu digo que importa o que a Igreja acha, em relação à correta divulgação dos dados históricos. Pq creio que há muitos fatos históricos já devidamente comprovados, que não se tornaram públicos por pressão da Igreja. Ou então até chegaram a público, mas deturpados, por conta de interesses religiosos que pretendem mascarar qualquer descoberta que possa colidir com algum dogma religioso. O que eu acho besteira, pois , repito, não vejo que jeito de uma descoberta científica destruir ou criar uma fé, acredita quem quer. Os estudos e pesquisas que a Igreja faz, para confirmar os fatos pesquisados por historiadores, eu acho que ela só confirma o que tem interesse, mesmo sabendo que tem coisas que já estão mais do que provadas. Quando essa notícia chega a público e a Igreja se cala , ou faz pouco caso da pesquisa, ou rebate com argumentos dogmáticos todos os pontos da descoberta, a maioria das pessoas fica na dúvida. Mesmo quem não é Católico, quando se depara com uma notícia sobre o Jesus histórico, fica se perguntando o que é que a Igreja acha disso. Bom, pelo menos eu sempre fico na dúvida quando vejo notícias assim, pois se os historiadores tem argumentos e provas fortes, a Igreja tbém tem. E, claro, tem lá os seus motivos para não querer divulgar fatos que possam fragilizar alguns dogmas.
    Bom, mas religião é religião, história é história.

    Bom, ese eu fosse descendente de algum figurão da Bíblia, qria ser tatatataraneta da dalila, sabe, malvada que ela só…

    Bjos!

  10. Sempre digo aos meus alunos – no calor das discussões ou não! – exatamente o que você afirmou aí, em reposta a um comentário: Paulo é muito mais importante para o cristianismo do que Jesus!
    Negar a existência de alguém que criou um tumulto na época é fechar os olhos para a própria história: sendo ou não filho de Deus (quem?), algúem foi muito bom de mídia…porra, criar um mito e uma instituição que dure esse tempo todo…
    Rafa: aprenda com eles…você vai eleger quem quiser…! Abraços.

  11. Imagino que uma boa parte dos descendentes de Jesus seja não só mulçumano, como imagina a possibilidade de encontrarem alguém relacionado a Jézus numa ‘organização’ a lá Hezbollah? Ia dar uma merda…

  12. E vai que desobrem que Jézus não é grego nem tem olhos verdes, como nessa foto aí? Ia dar problemas… Yeshua ben Youssef bem moreninho, nareba larga, cabelo ruim… faz mal pro marketing…

  13. Apareceu um Evangelho de Judas outro dia mesmo, como você certamente sabe. O lance é mesmo esse: Judas fazia parte do plano; ‘tava tudo combinado.

  14. “… por que, então, não há descendentes de filhos, ou de primos de Maria, de José, de qualquer dos apóstolos?”
    Se não foram todos assassinados pela Igreja Católica, devem ser mantidos sob controle rígido, caso contrário não haveria Igreja Católica, ou pelo menos ela seria bem menos rica… espere, estão batendo na minha porta…

  15. Isso me faz lembrar um conto, você deve lembrar de Três versões de Judas, de Borges. Adoro a parte na qual forja um novo papel para ele, radical, como convém ao gênio do escritor:

    “Dios totalmente se hizo hombre hasta la infamia, hombre hasta la reprobación y el abismo. Para salvarnos, pudo elegir cualquiera de los destinos que traman la perpleja red de la historia; pudo ser Alejandro o Pitágoras o Rurik o Jesús; eligió un ínfimo destino: fue Judas.”

  16. Pois é Rafael. A história esta cheia de espertinhos querendo lucrar de uma forma ou outra, e quando se trata de religiâo a coisa complica, pois a briga se trata de confirmar acontecimentos muito antigos.
    A biblia é um livro maravilhoso, mas acreditar em tudo que está escrito nela, é a acreditar em contradições.

  17. Quero sugerir um ótimo livro sobre o cristianismo que talvez seja útil para os que pensam antes de aceitar pura e simplesmente as coisas : Cristianismo Puro e Simples ( C.S.Lewis – mesmo autor de As Crônicas de Nárnia)

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