Um adeus a Easy Rawlins

Meu escritor policial favorito da atualidade é Walter Mosley — mais precisamente a série com as desventuras de Easy Rawlins, como atestam alguns posts antigos neste blog. Seus outros personagens, Fearless Jones e Socrates Fortlow, nunca chamaram minha atenção e eu não sei dizer se são bons ou ruins.

Mosley não é um sujeito conhecido no Brasil como deveria. Dele foi publicado aqui, até onde sei, “O Diabo Veste Azul”, “Uma Morte em Vermelho” e “Quem Matou Nola Payne?”, título idiota para o original Little Scarlet: acredite, o que menos importa em Little Scarlet é quem matou a pobre Nola. Uma pesquisa rápida no Google mostra, pelo menos a princípio, que as únicas pessoas que falaram de Mosley em português, além de resenhas de lançamentos e de referências ao filme “O Diabo Veste Azul”, foram Filthy McNasty e eu.

É uma pena que tão pouca gente pareça conhecer o sujeito. Ainda mais quando damos uma olhada no panorama desse segmento do mercado editorial. A cada ano as editoras jogam para cima dos leitores uma infinidade de livros policiais fracos, apenas porque são novos. Relegam os clássicos a nada; o melhorzinho deles a ser publicado com razoável constância é Rex Stout — mas apesar dos tantos elogios, aquele gordo viado e seboso do Nero Wolfe não é tudo isso que dizem dele; não passa de Agatha Christie depois de duas semanas de férias no Brooklyn. Fariam melhor se apenas publicassem e republicassem a Santíssima Trindade: o Pai Dashiell Hammett, o Filho Raymond Chandler e o Espírito Santo Ross MacDonald.

(Durante anos achei que tinha inventado esse negócio de “Santíssima Trindade” do roman noir. Me achava genial por isso. Mas há algum tempo descobri que o conceito foi cunhado há décadas por um escritor chamado Michael Avallone, exatamente nessa ordem. É tão triste chegar às portas dos 40 anos e descobrir que não se é gênio coisa nenhuma, nem mesmo um gênio de segunda.)

(A propósito, Dashiell Hammet vem tendo alguns de seus romances — que um dia pertenceram à Brasiliense — republicados pela Companhia das Letras; infelizmente deixam de lado os contos do Continental Op, justamente aqueles que definiram, de uma vez por todas, o noir.)

A inspiração óbvia de Mosley é Chester Himes — o mais bem-sucedido autor a misturar a questão racial a romances policiais. Mas enquanto os policiais strictu sensu de Himes com Coffin Ed e Grave Digger Jones tendem ao caricato, uma espécie de Mickey Spillane com mais melanina e protesto social, a série de Easy Rawlins é um pequeno clássico moderno, porque além de razoável qualidade literária dentro dos limites possíveis da literatura policial, atende perfeitamente aos requisitos convencionais do melhor noir, algo que muitas vezes falta a Himes.

A diferença básica entre o roman noir e a tradição inglesa é a ambigüidade moral, a idéia de que o crime é um produto orgânico da sociedade e não uma anomalia dela, como nos quebra-cabeças de Agatha Christie; alia-se a isso uma percepção acurada dessa mesma sociedade, e então temos os elementos que fazem do noir um gênero superior ao modelo inglês tradicional. Mas a qualidade literária é outro grande diferencial. Da extrema limpeza estilística de Hammett à razoável profundidade psicológica de MacDonald, do ponto de vista literário se vai mais além do que nos romances de, por exemplo, Edgar Wallace. Obviamente, o simples fato de ser literatura policial implica uma série de convenções; mas isso não exclui observações mais profundas acerca da sociedade.

(Outro parêntesis em um texto preguiçoso já cheio deles: literatura policial é clichê e convenção, mas nem sempre fáceis. Bukowski, por exemplo, se deu mal com seu Pulp; Luís Fernando Veríssimo também, com seu “Jardim do Diabo”. Boa literatura policial não é tão fácil como parece.)

Como acontece com qualquer série, a produção é irregular. Obras excelentes como “O Diabo Veste Azul”, Little Scarlet e Cinammon Kiss convivem com livros bons como A Red Death e A Little Yellow Dog, e fracos como White Butterfly, Black Betty, Gone Fishin’ e Bad Boy Brawly Brown. Mas essa divisão entre obras boas e ruins importa pouco, porque no final das contas o que vemos neles é a evolução do personagem e também da questão racial americana. A série acaba oferecendo um painel interessante sobre a evolução das relações raciais nos Estados Unidos, do racismo claro e declarado dos anos 40 às mudanças acontecidas nos anos 60. Nos primeiros livros da série, ambientados no pós-guerra, Easy Rawlins é um homem cheio de ódio e raiva, atento a pequenas e grandes demonstrações de racismo e preconceito; mas à medida que o tempo vai passando e a sociedade americana vai se moldando ao fato de ser uma sociedade multirracial de classes, essas relações vão se tornando menos conflituosas. O quebra-quebra de Watts é um momento decisivo; mas a ascensão do movimento hippie também. É o acompanhamento dessa evolução que coloca Mosley um pouco acima da média dos escritores policiais. E, claro, o excelente personagem que criou: Easy Rawlins é vivo, conturbado, um herói torturado e trágico que ao mesmo tempo em que resolve mistérios policiais, tem que lidar com uma sociedade conflituosa e com os seus próprios problemas.

Mas este não é um post para falar de Easy Rawlins, porque já falei antes. Este é um texto para carpir a sua morte. Uma espécie de eulogia meio sem graça.

Há algumas semanas li Blonde Faith, publicado ano passado, o décimo primeiro da série de Rawlins. No final do livro há um acidente de carro e Rawlins, sentindo que vai morrer, desmaia, “and then the world turned black“. Mosley já tinha avisado que aquele seria o último livro da série. Pelo visto está cansado de Easy Rawlins, como Conan Doyle cansou de Sherlock Holmes. Dono de uma carreira razoavelmente diversificada e bem-sucedida, Easy Rawlins pode parecer a Mosley restritiva — como os Beatles pareceram restritivos a John Lennon.

Mas Mosley sabe como funciona o mercado, e não teve coragem de matar de maneira irrevogável o seu personagem. Além disso, anunciar um livro como o último de uma série bem sucedida é um truque de marketing já velho, desde que se deixe o final em aberto para a possibilidade de eventualmente retomar a série. Assim como Doyle retomou o viciado em ópio, não seria surpresa se daqui a alguns anos Easy Rawlins voltasse, tendo sido resgatado do acidente feio e mancando da perna esquerda.

Para quem gosta de boa literatura policial, como eu, essa é uma última esperança.

3 thoughts on “Um adeus a Easy Rawlins

  1. Confesso que não sou uma amante da leitura, mas já li uns livros estilo policial.. acho legal.. só fiquei mesmo presa a Ágatha Christie.. gostaria de ter mais saco pra leitura, só que a net não deixa 🙁

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