Café

Muitos anos atrás o Bombordo, um antigo site de esquerda, publicou um texto em que se falava do medo que a Starbucks, então acabando de anunciar sua vinda ao Brasil, viesse a destruir a tradição brasileira do cafezinho.

Eu achei graça, na época, porque me parecia um tanto óbvio que, por melhor que fosse a Starbucks (eu não a conhecia na época), era virtualmente impossível que ela fizesse algum estrago em um país com uma cultura de cafezinho tão forte — e cafezinho vendido a alguns centavos em qualquer bar de esquina. Eu duvidava que ela, por exemplo, tivesse capacidade de enfrentar os vendedores que levam garrafas térmicas em carrinhos de rolimã pelas ruas de Salvador. É preciso comer muito vatapá para conseguir vencer as melhores tradições baianas, e a Starbucks não parecia ter estômago para isso.

Lembrei disso depois que vi o post do Morróida sobre a cafeteria. Eu gostaria de assinar embaixo. A Starbucks é uma droga.

Eu até entendo as razões pelas quais a Starbucks fez tanto sucesso. Não é difícil admitir que ela oferece um café melhor que o comum nos Estados Unidos — aquela coisa esquisita, parecida com a água que se obtém ao lavar um coador recém-usado. Também faz algum sentido em Londres, onde o café é tão ruim que você quase acredita que aquilo que a Starbucks lhe oferece é realmente algo decente. Mas em Paris ou Roma, onde se toma o melhor café do mundo, ela só faz sentido para turistas com os pés em chamas que precisam sentar num lugar para descansar um pouco, talvez tirar um cochilo, usar o banheiro unissex e olhar o pessoal acessando a internet de lá. Nisso ela é excelente: oferece um espaço social que poucos lugares nessas cidades podem ou querem oferecer. Traduzindo: a Starbucks vale apenas porque você pode se enfiar lá de graça por horas.

Eu tenho certeza de que é por isso, pelo reconhecimento de que seu café não vale nada, que eles insistem tanto naquele negócio de comércio justo, de estar ajudando os pobres cafeicultores de, sei lá, um grotão qualquer da Etiópia. Agregam valores sociais para mascarar o que deve ser uma experiência individual, critérios externos e um ambiente acessível para esconder a verdade: seu café é tão ruim que a gente só toma para dar esmola a lavradores colombianos.

Falo do expresso, apenas. Não posso falar dos outros, porque expresso é a única coisa que já tomei ali. Eu me recuso a sequer experimentar aquelas bebidas esquisitas que, segundo boatos, em algum momento levam café como um (e apenas um) de seus ingredientes. Essas bebidas são uma ofensa a quem gosta de café.

Eu, por exemplo, gosto. Até pouco tempo atrás, tomava cerca de um litro por dia, provavelmente mais — e às vezes muito mais. É por isso que me sinto autorizado a dizer que café bom, mesmo, é aquele feito em casa, coado em coador de pano mantido sempre úmido.

Café é algo tão absurdamente bom que está ligado a momentos bobos e inesquecíveis na vida. Como uma xícara na casa de minha bisavó, num dia de chuva há quase 25 anos; um em Paris, numa ruela perto de Notre Dame, pouco mais de 10 anos atrás. E o café que minha avó fazia — sua empregada dizia que era preciso fazer curso para fazer um café que a agradasse.

Esse é o melhor café que se pode tomar: bem feito, forte na medida certa, e sem pretensões, sem nomes complicados feitos para que você esqueça que aquilo é pouco mais que uma grande fraude.

O segundo melhor é aquele que a gente toma no boteco na esquina, de preferência em pé e demorando um pouco até dominar a arte de usar aqueles açucareiros.

(Eu, pessoalmente, dispenso as cafeteiras italianas que o Allan ensinou a usar. Ou melhor: tentou. Culpa minha por não conseguir aprender, ou ter o gosto ainda arraigado em coisas excessivamente simples, excessivamente velhas.)

Infelizmente esses cafés estão se tornando cada vez mais raros, desbancados por uma febre que veio da Itália, o expresso. É até um substituto aceitável ao bom café — em Aracaju, o melhor expresso é o da livraria Escariz, mas nos últimos dias ele tem saído ruim. Há expressos bons e expressos ruins; mas eles sempre me passarão a impressão de que são aleatórios, de que a máquina italiana tenta substituir, nem sempre com sucesso, o talento e a boa mão de alguém que sabe fazer um bom café. E um bom café é algo que não se pode substituir.

A avó de um amigo meu, por exemplo, moía o café no pilão, com mel. Contei isso a outro amigo, que resolveu fazer a mesma experiência em sua máquina caseira de expresso — máquinas demoníacas das quais o incauto deve manter prudente distância. O mel entupiu e quebrou a máquina. E eu não consigo encontrar exemplo melhor de tudo o que disse aqui.

22 thoughts on “Café

  1. tendo a concordar.

    o melhor café que eu já tive a chance de experimentar era o que esperava a gente na casa da minha avó toda sexta de noite, na época em que meus pais ainda não haviam voltado a arcoverde e faziam viagens regulares pra cá. não era nenhuma marca gourmet – era uma marca popular local, a ouro verde. mas era coado em um coador de pano e acompanhado pelo pão da venda, com manteiga “aviação”.

    café não é simplesmente uma bebida, como querem empurrar na nossa goela abaixo. café é uma experiência.

    em tempo, eu não sou um grande bebedor de café.

  2. café é coisa de avó mesmo. Ou seria: Café de avó é uma coisa mesmo. O da minha era imbatível com aquelas xícaras cuidadosamente escaldadas .

  3. Caro Rafael, texto com a qualidade do café da tua bisavó — porque o da tua avó é bem mais difícil, não é todo dia que se chega aos pés.

    Quando estive em Aracaju pela última vez (junho do ano passado), viciado que sou em café, pedi a um primo que desse um jeito de me arrumar um lugar onde tomar um bom expresso. Ele me levou a uma confeitaria — não adianta, não lembro o nome, o bairro em que ficava e muito menos o endereço —, e até que quebrou um galho. Depois disso experimentei um num quiosque do shopping — não me pergunte qual dos dois, era o mais cheio deles —, que me disseram ter boa variedade de cafés. Mas tomá-lo ali naquele corredor cheio de gente entupida de sacolas não foi lá muito prazeroso. A redenção deu-se no dia seguinte, na casa de tia Mara: café de coador de pano com bolo de fubá e o sorriso dela ao meu lado, do alto dos seus 80 anos recém completados. Nada relacionado a café teve igual em minha estada sergipana.

    Abraços de um conterrâneo (suponho que sejas soteropolitano) que mora no Rio e tem uma penca de parentes em Aracaju,

    Ricardo

    P.S.1. Sem viadagens barísticas, hoje em dia gosto de preparar o meu expresso em casa, experimentando marcas diferentes de café comprado em grão e moído na hora. Claro que tenho alternativas pros dias de preguiça, e o café da minha vizinha do 302 é uma delas. Mas como a pobre anda cada vez mais surda, ter que gritar toda vez para dizer “não quero mais bolo, dona Nena” acaba sendo exaustivo…
    Eu só comecei a gostar mesmo de café quando conheci essas cafeteiras do post do Allan, que fizeram uma negação como eu finalmente acertar o preparo de um bom café.
    P.S.2. O meu café de todas as manhãs: http://agora.opsblog.org/2008/01/todo-dia-ele-faz-tudo-sempre-igual/

  4. esse negócio de moer com mel me parece roubada, mesmo. Eu moo com canela em pau. E o grão tem que ser “do bom”. Tem uns por aí que parecem milho, de tão clarinhos e esfarelados. Posto isso, meu café é bem legal. Muito melhor que o da minha avó!

  5. O café de lá é bem ruim mesmo. O pior de lá, pra mim, é a frieza nas relações.
    Gosto de café feito em casa (em coador de pano ou papel) e amo café espresso (de boa qualidade, óbvio).
    Adoro me sentar à mesa de uma cafeteria, ansiar pela vinda do café enquanto converso com alguém ou leio alguma coisa, e saboreá-lo quando ele chega.
    Na Starbucks isso é impossível, naquele sistema de pedido deles. Odeio!

  6. Rafa,

    Prefiro o café que a minha mãe faz, com o coador mas forte. O café que a minha avó fazia era ‘chafé’ e nunca gostei. Na falta do coador, tomo um expresso, na rua, ou o de casa, feito com a moka. Mas gostaria mesmo é de achar facilmente por aqui um filtro de papel para tomar o meu café coado. Existe, ainda, uma outra cafeteira italiana a “napoletana” que faz um café mais próximo do nosso, mas nunca lembro de comprar uma quando vou a Milão.

    Vou torcer para que a Starbucks resolva abrir por aí e que, depois de falir no Brasil, venha tentar a sorte por aqui. O dono do bar da esquina iria gargalhar com a notícia.

  7. e vem vc de novo …. com razão
    café bom é café coado, mas pode ser no coador de papel tbm, que bem feitinho vai q é uma beleza
    gosto tanto q não boto açucar, pra não estragar o sabor q o café tem
    mas as vezes boto sim, e quando é bom é bom e pronto
    com muito açúcar estraga, o famoso café do sítio (destas redondezas): fraco e doce q só …
    no coador de pano nem se compara, e um bom modo de prepapar é jogar o pó ja na água, pra depois despejar tudo no coador
    café solúvel é o fim, e tbm o expresso, q é forte em excesso, tirando o prazer de tomar, pois q assim azeda demais, dado os açúcares próprios ao grão da planta
    simples, quente, forte … café enfim
    e como errei na primeira postagem , mudo um teco aqui, pra ir de novo
    😛

  8. O café que Alexandre falou, preparado colocando o pó direto na água fervendo e depois passar no coador (de pano), é chamado de café de marinheiro.
    Foi uma empregada que eu tinha que me falou..ela chegou certo dia e perguntou: A sra. gosta de café de marinheiro , né?
    Eu fiquei sem entender nada, só depois ela explicou.
    O café que minha sogra faz é assim, e é uma delícia, um dia eu ainda aprendo fazer um café tão bom como o dela.

  9. Adoro café. Puro. Aliás, tem coisa mais chata e irritante do que ouvir, sempre, das atendentes dos expressos: “puro ou com leite?”

    O melhor café que já tomei foi na fazenda, lá em Barreiras, feito por Seu Tomás. Assim, ó: água numa chaculateira de flandre, amparada por 3 pedras, sob o fogo. Pó misturado na água, rapadura e uma pedra dentro. Desconheço o mecanismo de coação, só sei que a pedra tava ali pra este papel. Caneca de esmalte, pequena. Pronto. Servido?

    Valeu por lembrar daqui, desnaturado.

    Beijo,

  10. adoro café e tem um que eu lembro em particular. estava com um amigo, havíamos acabado de chegar em sampa, tínhamos saído cedo de limeira… paramos num boteco e pedimos o café e um queijo quente. arrisco dizer que aquele café foi o melhor que já tomei. estranho isso, não?

  11. Por modestos sete reais, você pode experimentar um espresso feito com café Jacu – O café que entra pelo bico e sai pelo cu – de uma ave que tem pelo fruto uma tal predileção que quase levou o proprietario de certo cafezal no ES a pedir autorização do Ibama para abatê-la como praga.
    Eis que num lampejo, o sujeito decidiu imitar um certo café especial de não sei onde, que é descomido por um felideo e custa 120 dólares o quilo.
    Resultado: agora no Bananão, os melhores frutos e grãos são disseminados pelo Jacu, em cultivo 100% orgânico e a grande altitude.

    Lembremos que, junto com o café coado, chegará ao fim (para o bem e para o mal) o também tipicamente brasileiro “café bar”, modalidade infecta de botecos que, de tão ruins, chegam a ser bons.

    Há uma tamanha tendência de pasteurização e estilização que faz surgir em São Paulo não sei quantos botecos que pretendem imitar botecos cariocas. Já no Rio, começam a surgir botecos que imitam botecos paulistas que imitam botecos cariocas.

  12. Rafael, lembra daquela cafeteria que em Fortaleza que ficava na esquina da Barão do Rio Branco com a Guilherme Rocha?
    Aprendi a apreciar ali, junto com meu pai, o verdadeiro café de balcão.

    Ah! Os caras continuam lá…

  13. http://www.creators.com/opinion/lenore-skenazy/meet-me-at-starbucks-still.html

    (…)

    Long ago — say, 15 years back — our “third place” choices were pretty slim. There was the library, where you couldn’t talk. The diner, where you had to tip. Bars required drinking and gyms, workouts — both exhausting. Of course there was always the town square, where young lovers promenaded while old men fed pigeons. But those were all in Italy. America just didn’t have a gathering spot, except for the mall. Gag me with an Aunt Annie’s pretzel.

    Then along came Starbucks, and suddenly we had the kind of public life we hadn’t seen since the death of the ol’ general store. People lingered, mingled. They lingled.

    http://www.borowitzreport.com/article.aspx?ID=6987

    (…)

    In its latest cost-cutting moves designed to improve its bottom line, Starbucks announced today that it would no longer offer coffee, cups, or stir-thingies beginning February 1.

    In an official statement, company spokesman Carol Foyler said that Starbucks “wrestled long and hard” with the decision to eliminate the three items, “especially coffee.”

  14. Caramba, lembrei de mim agora, matando as horas na starbucks lendo e bebendo…água…hahahahahahaha. não tive coragem de experimentar aqueles cafés loucos e nâo gosto de expresso, embora beba de vez em qdo no desespero, mas bom mesmo é o café feito em casa!

  15. Café tipo Starbucks é necessário em cidades frias. Quando chega o inverno ninguém sobrevive sem um copão de bebida quente. Essa é a função social da Starbucks. No Brasil ela não faz sentido…

  16. Nunca ri tanto na minha vida! A turma escreve bem e, com humor fino. Deve de ser a cafeina, para produzir tal efeito. Sem este efeito residual, os posts seriam de uma platitude extraordinária.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *