Momentos antológicos do kinemanacional

Não levo o kinemanacional mais a sério do que deveria. Uma cinematografia que começa a se afirmar, muitos filmes sobrevalorizados, uns poucos subestimados (como “Cidade Baixa”, de Sergio Machado com roteiro dele e do Karim Aïnouz, autor de “O Céu de Suely”), e uma indústria que se autoalimenta e autoelogia.

Mas reconheço que há alguns momentos magníficos na cinedramaturgia nacional, que não foram e provavelmente jamais serão superados, e que ninguém me venha com um sueco aqui ou um francês ali, que nenhum deles conseguiu entender a esse ponto a verdadeira essência das coisas — acho que os italianos chegaram mais perto, mas isso não é grande coisa. É nessas horas que o kinemanacional se faz digno do seu nome.

Dona Flor e seus Dois Maridos (Bruno Barreto, 1976)
Vadinho você conhece, é o sujeito que todo baiano gostaria de ser.

Infelizmente santo de casa não faz milagre e quando ele pede a Dona Flor dinheiro para cair na gandaia sua mui devota esposa não entende a sua natureza, e se nega, não vai dar ao marido o dinheiro que reservou para a Santa Madre.

Mas Vadinho sabe das coisas, e sabe que não é justo que coisa tão material como o dinheiro seja destinada àquela que deveria se limitar a cuidar só das almas, quando poderia ser muito mais bem aproveitada num puteiro qualquer da Ladeira da Montanha — naquela época ainda havia puteiros na Ladeira da Montanha — ou num boteco do Taboão.

“Me dá o dinheiro, porra!”, e dona Flor, coitada, não entende a ameaça contida aí, e se nega mais uma vez, porque Flor não compreende que o medo ao Senhor não deveria ser maior que o respeito a Vadinho. E então ele dá uns tapas em Flor e toma o seu dinheiro e vai para a esbórnia — palavra bonita, essa: esbórnia. Mais bonita e mais elegante que “putaria”.

Não é por bater em dona Flor, que em mulher não se bate nem com uma rosa, a não ser que ela peça com jeitinho; não é por bater em Flor que Vadinho alcança a sublimidade. Mas por estar disposto a transgredir qualquer senso de limite quando se trata de satisfazer os próprios desejos, e por tirar o dinheiro a um padre ladrão, e por impor as necessidades da carne às vontades do espírito. Vadinho ali se torna o herói de tantos e tantos moços, e se tornou o meu também, pelo menos nos poucos anos em que a triste realidade da minha própria inapetência não me fez abandonar os sonhos de ser um Vadinho e me conformar em ser no máximo um Teodoro — é Teodoro o nome do desgraçado?

O Cheiro do Ralo (Heitor Dhalia, 2006)
“O Cheiro do Ralo” é daquelas obras que fazem as pessoas saírem do cinema achando que assistiram a um grande filme quando na verdade viram apenas um grande tipo, aquele interpretado por Selton Mello.

Mas há nele um instante absolutamente maravilhoso, uma cena que, pela primeira vez em muito tempo, me fez derramar uma lágrima compungido em um cinema lotado, na abertura de um festival quando eu ainda ia para essas coisas.

É quando Selton Mello, diante da bunda da Paula Braun, se ajoelha, se abraça a ela e, com o rosto afundado naquela protuberância calipígia, derrama um pranto emocionado.

Não são necessárias palavras para explicar o que essa cena tem de sublime. O moço ajoelhado prestando a justa reverência ao belo absoluto não é apenas um centurião romano espalmando a mão e gritando “Ave, César!”. Ali, Dhalia conseguiu resumir ema cena apenas toda a verdade da vida, e por essa cena o filme se tornou imortal.

Mulheres, Mulheres (Carlos Imperial, 1981)
Só por ser do Carlos Imperial a gente já fica achando que “Mulheres, Mulheres” é avacalhação. E é, não dá para negar. Pelo menos é avacalhação com pedigree razoável, porque o filme se diz inspirado em Pasolini. É a sina triste de certo kinemanacional, almejar coisas tão grandes mas se esborrachar no chão da má realização.

A referência italiana não esconde, no entanto, que esse é um filme tipicamente brasileiro: um homem em luto pela perda da esposa começa a delirar, e o resultado são cenas e mais cenas de putaria e sacanagem, às vezes evocando um Busby Berkeley, às vezes parecendo coisa de puta ruim de cabaré do interior.

Eu tenho a impressão de que o Imperial fez o seu casting nas termas do centro do Rio. Algumas são muito boas no seu mister; a maioria, no entanto, além das caras de piranha de fim de noite na finada Help, estão tão à vontade diante das câmeras como estariam diante do seu primeiro cliente.

O filme pretensioso e ruim tem uma pequena epifania, no entanto, quando Imperial em seu delírio enraba sua anja da guarda.

Não há cena mais bela e metafísica do que essa em toda a história do kinemanacional; pode até haver igual, mas superior não há, não pode haver: Carlos Imperial e sua barriga imensa e flácida, montado sobre uma anja da guarda com cara de puta do baixo meretrício de Cabrobó. As pessoas dificilmente entendem o que há de redentor nisso, não entendem o grande debate metafísico por baixo da barriga de Carlos Imperial, não entendem, e então a elas é negada a verdadeira sabedoria.

4 thoughts on “Momentos antológicos do kinemanacional

  1. Dentre os subestimados, pode-se incluir o maravilhoso filme do Marcelo Gomes: “Cinema, Aspirinas, e Urubus”! Sensacional com o excelente João Miguel, ator que também brilha no envolvente “Estômago”, do Marcos Jorge! Infelizmente, quem não está na Globo, não está no mundo… Mas que fiquem fora dela, mesmo que para poucos…

  2. Rolou recentemente na blogosfera uma tremend polêmica entre feministas, feminazis, femeeiros e sei lá mais o que… senti a ausência de sua palavra moderadora e equilibrada lançando alguma luz sobre a qquestão.
    Ei-las que chegam agora, tardias mas sempre benvindas, enaltecendo o eterno feminino no que ele tem de mais sublime.

    Demorôôõ!

  3. Essa pimenta no debate sobre feminismo, é o que faltava.
    Ademais, o debate na blogosfera sobre o tema me parece que já perdeu a perspectiva original. Estão debatendo o debate.
    De qualquer forma, por aqui a coisa é mais divertida:)

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