Literatura, coisa supérflua

Roger Ebert, crítico americano de cinema, escreveu há alguns meses um post no seu blog no Chicago Sun-Times desancando uma adaptação literária de “O Grande Gatsby” para um vocabulário intermediário. Vale a pena ler.

E eu concordo com Ebert.

Essa é provavelmente uma das adaptações menos necessárias de que já tive notícia. Isso não é, claro, uma condenação a todas as adaptações. Li muitas na infância, e não acho que tenham me feito mal, nem me emburreceram. Como “O Conde de Monte Cristo” e “David Copperfield”, versões razoavelmente saneadas de clássicos antigos. No caso de “Copperfield”, por exemplo, é omitido o fato de que Steerforth seduz Emily e indiretamente a leva à prostituição. É por isso que não tenho queixas deles, porque não acho que precisasse saber disso aos oito anos.

Mas “O Conde de Monte Cristo” e “David Copperfield” são acima de tudo grandes histórias, que valem a pena conhecer. Depois de ver o comentário de Ebert passei os olhos na minha edição adaptada do livro de Dickens. Ainda é fascinante. A adaptação de Oswaldo Waddington mantém um bocado da ironia e do humor dickensianos. E, acima de tudo, mantém o espírito dos grandes tipos como Micawber e o meu preferido, Uriah Heep. Desde os oito anos de idade, quando vejo um hipócrita fingindo humildade, é a imagem untuosa, reptiliana de Heep que me vem à cabeça. E quantos Micawbers conheci na vida, gente que apesar de tudo admirei sinceramente.

Infelizmente esse não é o caso de “O Grande Gatsby”. O que Ebert acha é simples e corretíssimo: “O que importa no romance de Fitzgerald não é a história em si. É como a história é contada.” Ele tem razão ao lembrar que é a maneira como o velho cachaceiro conta um pequeno retrato da saga americana que faz o valor do livro, algo que acontece com basicamente toda a literatura moderna. Já faz tempo que o “grande romance” deixou de fazer sentido; de certa forma, ele foi esgotado no século XIX — “Em Busca do Tempo Perdido”, por exemplo, já é outra coisa, já não é Balzac. O que Ebert diz de “Gatsby” se aplica, quase sem exceções, a toda a literatura que veio depois dos modernistas.

Ou seja, a história de “O Grande Gatsby”, em si, não é tão importante que valha a pena ser resumida e reescrita em inglês medíocre para estrangeiros. Ao destruir a prosa de Fitzgerald, eles resumiram a obra a pouco mais que nada e tiram a sua razão de ser. Contada dessa forma simplória, “O Grande Gatsby” é pouco mais que a sinopse de um melodrama oitocentista. Reescrito, perde seu valor literário, e os estrangeiros fariam melhor lendo a tradução em sua língua; para o simples aprendizado da língua do bardo o Google oferece milhões de alternativas mais adequadas. Tampouco é adaptação necessária para crianças: Gatsby não conta uma história para elas, se não estão preparadas para ler o livro original. Elas ganhariam mais lendo “Harry Potter” ou “Crônicas de Nárnia”. (Li o livro pela primeira vez aos 13 anos. E o que me marcou mesmo foi a lista de atividades do jovem Gatsby que Carraway descobre no final. Aquilo me inspirou a fazer listas semelhantes pelos dois anos seguintes. Foi preciso reler o livro alguns anos mais tarde para entendê-lo de verdade e entrever o seu gênio; e, finalmente, castigar o original para ver a beleza da prosa de Fitzgerald, escritor de quem gosto muito mais que Hemingway, por exemplo.)

Mas isso lembra outra coisa, mais incômoda que uma adaptação que as pessoas podem simplesmente ignorar: o valor desproporcional que se parece dar à literatura e à ficção.

Isso vai além da mitificação da leitura em si. A impressão que tenho é que leitura é sobrevalorizada como poucas coisas na sociedade moderna. E o pior é que ler não é nada. A escrita é só o jeito que a humanidade encontrou de preservar e compartilhar conhecimento. Só isso. Mais nada. Uma mosca faz isso imprimindo informações no seu código genético. A gente faz isso nascendo com menos sinapses e utilizando meios externos de preservação do conhecimento.

A partir do momento em que a tecnologia possibilita outras formas de transmissão de conhecimento, a escrita se torna apenas mais um deles. Só isso. Nada que justifique esse fetichismo.

A coisa se torna mais grave quando se fala de literatura. Literatura — mais especificamente ficção — não é necessária, e isso é algo que as pessoas parecem entender cada vez menos. O fato é que, para todo e qualquer efeito prático, ninguém precisa ler ficção, de qualquer tipo. Se você é advogado, do que precisa é de livros de doutrina escritos em português embolorado e da última versão do código de qualquer coisa. Se você é engenheiro, “O Velho e o Mar” dificilmente vai lhe ajudar a fazer o cálculo estrutural de um edifício de 20 andares. Literatura é produto supérfluo de uma civilização cujas elites descobriram há uns cinco mil anos que a escrita era o melhor meio de fixar e transmitir conhecimento e acumular poder. Literatura é coca-cola.

Mas milênios de existência e associação ao poder continuam a mitificá-la. O ato de ler se tornou um valor desejável há tanto tempo que passou a ser um daqueles valores presumidos, inquestionáveis. Ou seja: se eu leio, eu sou melhor que você. Não importa o que eu leio; importa o ato em si. E essa espécie de fetiche parece tanto maior quanto menos lê o fetichista. Ou seja, se eu disser que li 50 “Júlias”, “Sabrinas” ou “Biancas” ano passado, para muita gente vai parecer que li muito mais do que se disser que li apenas um, um tal de “A Montanha Mágica” de um alemão meio viado.

O que faz a ficção importante não é o ato de ler, em si. É o que você lê, e como isso enriquece sua vida. Assim como a literatura moderna diz respeito menos à trama do que à maneira como ela é contada. E ler por ler não quer dizer absolutamente nada. As pessoas dizem que estão lendo um cocozinho qualquer como se estivessem fazendo a hermenêutica de Finnnegan’s Wake; para quê? Isso não tem valor real. Não acrescenta nada. Não é melhor do que ver um bom filme ou ouvir um bom disco.

A melhor evidência da superfluidade da literatura é o fato de que desde o século passado não é sequer preciso ler um livro para saber com bom nível de detalhes o que ele conta. Muita gente que jamais leu “Moby Dick” sabe do que ele trata, sabe que sua primeira frase é “Call me Ishmael”, sabe quem é Ahab, sabe qual o caso que inspirou o livro, sabe como ele termina e sabe que pode ser visto como uma batalha do bem contra o mal, entre tantas outras coisas; sabe até quem fez o caixão que salva a vida de Ismael. Para muita gente isso é suficiente; e talvez seja assim que deve ser. Se a questão aqui é saber o básico da história, em vez de ler uma versão adaptada para “1600 palavras ou menos” é melhor ver o filme com Gregory Peck.

As pessoas, em seu apego a valores antigos, esquecem que o século XX inventou vários outros meios de transmissão do conhecimento, como o gramofone e o cinema. Obviamente eles não podem ter, por sua natureza, a riqueza que a literatura pode alcançar; mas quando se tiram os elementos que fazem essa riqueza, como fizeram com “O Grande Gatsby”, o que sobra é só a história, muitas vezes menor, e para isso esses novos meios são perfeitamente adequados.

Eu, pessoalmente, não levo muito em consideração sequer a idéia de que a gente começa a ler com coisas bobas e vai evoluindo aos poucos. A experiência mostra que muita gente que começa com coisas bobas para por aí, nas coisas bobas, e são muito felizes assim, obrigado. Assim como maconha não leva necessariamente a drogas mais pesadas, Harry Potter não leva necessariamente a James Joyce. É o hábito, o estímulo que fazem uma criança ler. E certamente, em idade adequada, a capacidade de discernir entre o que vale a pena e o que não vale. Por exemplo, minha filha lê e escreve em um nível superior à média das crianças de sua idade. Mas tenho minhas dúvidas de que isso se deva aos livros de Harry Potter que devorou aos oito anos; é mais provável que o fato de se ver às voltas com centenas de livros em casa, livros que ela via o pai lendo, assim como eu via o meu, tenha exercido o mesmo efeito, ou maior.

A essa altura da vida, essa conversa de literatura como um valor absoluto não me empolga mais.

15 thoughts on “Literatura, coisa supérflua

  1. Rafael:

    Não adianta espernear. As coisas agora estão assim. Logo vão “simplificar” a prosa maravilhosa de O Velho e o Mar, do Hemingway, e talvez, até, para ficar mais palatável aos os nossos tempos obtusos, o Marlin será transformado num tubarão, ou, quem sabe, num golfinho e em vez do Santiago comer arroz com peixe ele venha a pedir um hambúrguer.

    É de dar medo.

  2. E eu até hoje achando que essa porra estava parada, mesmo.

    Vamo, vamo, escreve aí sobre o estupro no BBB. 😉

  3. A literatura não é supérflua. Augusto Comte, o maior pensador de todos os tempos, sucessor e regenerador de Aristóteles e São Paulo, criou a Biblioteca Positivista, lista de livros cuja leitura é essencial para o cidadão esclarecido, incluindo obras científicas e obras literárias. Além disto, ele lia algumas páginas da Divina Comédia (e algumas da Imitação de Cristo) todos os dias e recomendava o mesmo procedimento a seus discípulos. Ele dedicou, no seu Calendário Positivista, um mês à Poesia Antiga (mês de Homero), um mês à Poesia Épica Moderna (mês de Dante-eu mesmo nasci em dezoito de Dante) e um mês ao Drama Moderno (mês de Shakespeare). Além disso, Machado de Assis, sabiamente, escreveu sobre Shakespeare: “Um dia, quando já não houver Império Britânico, nem República Norte-Americana, haverá Shakespeare; quando não se falar inglês, falar-se-á Shakespeare”. Como o meio que produziu tal glória imperecível poderia ser supérfluo?

  4. Não, pois Comte provou que a Filosofia Positiva, o estágio final do pensamento humano-quando a Humanidade supera o pensamento teológico e o pensamento metafísico-, é indispensável à regeneração da Humanidade. Miguel Lemos, o maior discípulo de Comte, ensinou que a filosofia positiva é necessária para que prossiga a “marcha ascendente” da Humanidade e deve englobar as sete ciências positivas sistematizadas por A. Comte, o criador da Sociologia: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral (http://files-cdn.formspring.me/photos/20111225/n4ef76f5a22b88.jpg) sob o lema “Os vivos são sempre e cada vez mais governados necessariamente pelos mortos”- daí a relevância do Calendário Positivista e dos meses que eu citei. http://farm5.staticflickr.com/4043/4591035242_0334567f00_z.jpg Poder-se-ia dizer que Comte não veio abolir a Filosofia e os filósofos, mas levá-los à perfeição. No Catecismo Positivista, obra de Comte, há uma discussão interessante das funções do culto e da filosofia na regeneração da sociedade ocidental, que foi abalada pela Grande Crise iniciada no Século XIII, cujos efeitos deletérios alcançam nossos dias .

  5. Rafael, old sport, todas as artes são supérfluas, mas nem por isso são desimportantes, né verdade?

    vc tem razão, fazer um Gatsby for Dummies não faz o menor sentido. melhor fazer um filme – aliás já tão fazendo isso, com Leonardo di Caprio no papel principal. o diretor é o mesmo daquele Romeu e Julieta dos anos 1990. (http://www.imdb.com/title/tt1343092/)

    e olha, se Luiza continua no Canadá, pelo menos o Hermenauta ressurgiu do limbo da paternidade para dar um alô…

    q bom q vc voltou a escrever nessa bagaça, rapaz!

  6. Augusto Comte, o criador da Sociologia, descobriu a lei que rege os indivíduos e as sociedades humanas: a Lei dos Três Estados, que afirma que “Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes”.
    Comte defendeu a emancipação das colônias (inclusive francesas!) mais de século antes de ter sangrenta guerra da Argélia marado o fim do império colonial gálico. Comte era a favor das guerras defensivas (participou da defesa de Paris na Batalha dos Cem Dias), mas contra as guerras de conquistas (quando garoto, discursou contra a invasão da França pelas tropas de sua própria pátria, a França). Ele defendeu o fim da escravidão, e seus discípulos defenderam a abolição imediata sem compensações para os senhores de escravos em um tempo em que a Igreja Católica possuía escravos e os políticos discutiam abolição gradual e indenizações (para os senhores de escravos). Os positivistas brasileiros expulsaram os senhores de escravos de sua associação. Comte defendeu a incorporação do proletariado à sociedade industrial, e seus discípulos defenderam leis trabalhistas e medidas especiais de apoio a negros e índios em um tempo em que a questão social era “caso de polícia”. Miguel Lemos, o maior discípulo do Mestre Perfeito, defendeu a miscigenação muito antes de Gilberto Freyre sequer ter pensado em nas-cer. Comte aceitou mulheres entre seus discípulas, a feminista Nísia Floresta entre elas, Miguel Lemos referia-se elogiosamente à matemática Marie-Sophie Germain, vítima de preconceitos, épocas houve em que a metade-talvez mais- dos membros da Comissão Executiva da Igreja Positivista era de mulheres.
    Comte descobriu a fórmula da regeneração social, foi o maior homem que já existiu!

  7. Errata:
    “discursou contra a invasão da França pelas tropas de sua própria pátria, a França)”
    Contra a invasão da ESPANHA pelas tropas de sua própria pátria, a França. Por favor, perdoem-me o descuido.

  8. Literatura não é supérflua; Filosofia muito menos. Mas só vim comentar porque me impressionei com o cara dizendo que “Comte, o maior pensador de todos os tempos, sucessor e regenerador de Aristóteles,(…)descobriu a lei que rege os indivíduos e as sociedades humanas” e que a “Filosofia Positiva [é] o estágio final do pensamento humano”.

    Deve ter ido a algum sebo e lido alguma daquelas coleções dos anos 80, como “Primeiros Passos” ou “O pensamento Vivo de”.

    Assim como dra aqui em cima, também nunca tinha visto troll contiano, hehehe.

  9. Tu sabe que eu sou meu maluco, né…
    De vem em quando eu leio, sabe-se lá por que, esses teus posts antigos e morro de rir…
    “um alemão meio viado…”

    Estava lendo (como todo mundo o Harari) e ele conta, no Sapiens, eu acho, que uma das grandes capacidades de nossa espécie foi o fato de que nossa linguagem possibilitou-nos a criar “grandes ficções”e grandes histórias…

    Tendo a concordar com ele…

    Ainda mais quando termino de ler, sei lá, coisas como “Deuses americanos” do maluco do Gaiman.

    Abraço!

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