Sir George Martin

O que mais chama a atenção nos obituários de George Martin publicados hoje são uma omissão insignificante e a maneira como insistem em uma mentira que, de tão repetida, foi verdade durante muito tempo.

A mentira está até mesmo na matéria do New York Times, assinada por um sujeito que realmente entende do assunto, Allan Kozinn. Ele começa repetindo essa história falsa, chamando o recém-finado de “the urbane English record producer who signed the Beatles to a recording contract on the small Parlophone label after every other British record company had turned them down”. É uma narrativa que vem dos tempos em que a máquina promocional de Brian Epstein e Derek Taylor consolidava a história oficial da banda.

A verdade é que Martin não contratou ninguém: os Beatles lhe foram impostos pela Parlophone. Felizmente Kozinn corrige o erro do parágrafo inicial mais adiante, narrando corretamente os fatos e esquecendo apenas de mencionar a verdadeira razão da contratação. Mas os outros jornais e sites continuam repetindo o mito do George Martin que apostou nos Beatles quando todo mundo lhes voltava as costas.

Em 1962 Martin estava com sérios problemas pessoais. Seu casamento estava naufragando e ele mantinha um caso com sua secretária, Judy, com quem ficaria casado até ontem. Embora responsável pelo A&R da Parlophone, as complicações decorrentes dessa situação familiar não lhe permitiam elevar muito a voz em questões do tipo.

Em The Complete Beatles Recording Sessions, de 1988, Mark Lewinsohn já tinha apontado a discrepância entre os documentos existentes e a versão oficial: o contrato dos Beatles fora assinado no dia 4 de junho de 1962, dois dias antes da famosa primeira audição. Na época ele imaginou que fosse um erro de datilografia. Mas há alguns anos, no primeiro volume de All Those Years, sua biografia definitiva da banda, Lewisohn juntou os dados que faltavam e mostrou que não foi erro: apesar do que Martin repetiria até a morte, ele não desempenhou absolutamente nenhum papel na contratação da banda.

A contratação teve relativamente pouco a ver com as qualidades musicais dos Beatles: Brian Epstein era um dos principais revendedores de discos do norte da Inglaterra, e jogou seu peso comercial para conseguir o contrato. Martin sequer julgou necessário estar presente à tal primeira audição, no dia 6 de junho, mandando seu assistente em seu lugar. O assistente gostou do que ouviu e insistiu para que ele fosse até lá; incidentalmente, isso selou o destino do baterista Pete Best, pobre Pete Best.

Ao longo dos anos, o papel de George Martin na trajetória da banda foi inflado injustamente; ele jamais seria o “quinto beatle”, como querem agora os obituários, porque não existe essa figura. Os Beatles sempre se viram como uma unidade monolítica diante do resto do mundo, o “monstro de quatro cabeças” como dizia Mick Jagger; e quando Lennon mudou de ideia e quis empurrar um certo niguiri goelas dos outros abaixo, a casa caiu.

Além disso, às vezes se tem a impressão de que os Beatles eram apenas a mão de obra que realizava as ideias de Martin; sobre isso eu já escrevi há muito tempo, aqui.

Nada disso tira os méritos e a importância de George Martin na história dos Beatles.

Ele foi o homem ideal para uma banda excepcional. Compreendeu como poucos o verdadeiro papel de um produtor: tirar o melhor possível de um artista, valorizando sem modificar a sua música. Um sujeito mais autocrático e com ideias próprias de como os outros devem soar, como Phil Spector, poderia ter destruído aqueles Beatles ainda verdes no estúdio. Ao contrario, respeitando a banda Martin possibilitou que ela florescesse. Soube sair do seu caminho, e estar presente quando a banda precisava. Também conseguiu adaptar seu papel de acordo com a evolução dos Beatles: serviu como guia nos primeiros tempos, e mais tarde, diante de um grupo cada vez mais ambicioso e inovador, consciente de suas possibilidades, deu materialidade a suas ideias. Talvez isso se deva mais ao talento absurdo e à força comercial dos Beatles do que às qualidades de Martin; o que importa, mesmo, é que a foto que ilustra este post (tirada em 1969, nas sessões do Abbey Road) mostra uma cena impensável antes de 1965.

O lugar de George Martin na história da música pop está assegurado há muito tempo. Talvez por isso tenha passado batido uma omissão curiosa nesses obituários: foi Martin quem definiu o som definitivo das canções de abertura dos filmes de James Bond, ao realizar a gravação magistral de Goldfinger com Shirley Bassey para “007 Contra Goldfinger”. É um detalhe bobo, uma nota de rodapé sem importância de que ninguém parece lembrar.

E enquanto ouço pelo milionésima vez A Day in the Life, acho que sei por quê.

3 thoughts on “Sir George Martin

  1. Rafael:

    Essas coisas que estão falando do George Martin estes dias eu ouvi com certa reserva, ate´porque eu também já ouvi que foi a excelente aparência e educação do Brain Esptein
    que facilitou a chegada do Beatles nas gravadoras. Da qualquer forma a única pessoa que eu realmente confio quando se trata de Beatles é você e lendo o seu post passei a ter uma baliza sobre a verdadeira importância o George Martin na carreira dos Beatles.
    Aproveitando eu vi uma vídeo no you tube de uma apresentação ao vivo dos Beatles e eles erram muito, desde tocar cordas erradas, vocais desafinados na primeira parte da música, etc. Vendo esse tipo de coisa leva-se a pensar que havia uma força maior por trás dos Beatles que fazia com que músicos com competência técnica relativamente limitada produzirem as maravilhas que produziram. Dai, acho, o motivo da lenda do George Martin ser o tal mago se sedimentar.

    • Serge,

      Não acho que os Beatles fossem limitados tecnicamente. Ao contrário, McCartney é talvez o maior baixista da história do pop, e certamente o mais influente; George e Ringo não faziam feio. Nos shows ao vivo durante a beatlemania eles já não conseguiam sequer se ouvir.

      Mas ouça o “Live at Star Club”. Ali eles estão bêbados, tocando num lugar em que não queriam tocar (era uma temporada contratada antes de gravarem e começarem a fazer sucesso). No entanto, são uma grande banda de rock, com uma energia absurda. Acho que essa energia e essa visão de música se transferiu para o estúdio.

      No caso de George Martin, acho que ele foi fundamental para que essa visão fosse materializada no estúdio. Não sei se outro seria capaz disso.

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