Stan Lee

A morte de Stan Lee não poderia acontecer em hora mais adequada, se é que há algum tipo de adequação na morte que justifique uma frase tão infeliz quanto a que abre este texto.

Durante algumas décadas, Lee foi um velho conhecido dos fãs de quadrinhos de super-heróis, e nesse nicho da cultura pop nada é capaz de obscurecer o seu legado. Ele foi o maior de todos, o sujeito que revolucionou o segmento ao incluir nele elementos da vida real, criando personagens como o Quarteto Fantástico, e logo depois o Homem-Aranha, com algo semelhante aos problemas cotidianos das pessoas comuns: contas para pagar, amores mal-resolvidos.

Resumindo da melhor forma possível, a verdadeira revolução de Stan Lee não foi criar o Homem-Aranha, foi criar Peter Parker.

Nos últimos 15 anos, no entanto, o cinema fez sua fama extrapolar o mundo dos quadrinhos. Stan Lee se transformou no tipo de celebridade que é ainda maior do que sua obra, com o detalhe raríssimo de ter uma obra realmente importante. A internet fez dele um mito, e hoje um número monstruoso de pessoas sabe que ele é o “pai dos super-heróis”, o que é uma injustiça com nomes como Jerry Siegel e Joe Shuster, Bob Kane, Lee Falk e mesmo Will Eisner, mas não está muito longe da verdade. Mesmo os mais desavisados sabiam que ele era o velhinho de bigode que aparecia nos filmes de super-heróis.

E isso ainda é pouco para Lee. Seu impacto na cultura popular do mundo inteiro é incalculável, e poderia ser o objeto da inveja de milhares de filósofos, escritores e músicos, que faziam cultura e arte mais séria, mas para infinitamente menos pessoas.

Como tudo tem outro lado, no começo dos anos 70 Stan Lee já tinha dado o que tinha de melhor como criador. Havia estabelecido uma fórmula infalível e a repetia em todas as histórias que assinava. Isso é compreensível se lembrarmos o volume desumano de roteiros que escrevia mensalmente, mas isso significa que seus personagens ficaram cada vez mais parecidos. Assim, os dilemas vividos por Steve Rogers eram muito parecidos com os de Peter Parker: amores desencontrados e às vezes silenciosos, um profundo senso de inadequação ao mundo, intermináveis dúvidas existenciais — basicamente, Lee colocava em quadrinhos a vida dos adolescentes que o liam. Hoje suas histórias soam até pueris, embora ainda mantenham uma aura de verdade intrínseca que não é moeda corrente em boa parte da produção atual.

Nada disso diminui a sua importância. Suas histórias foram revolucionárias em sua época. O homem foi um dos gigantes do século XX — eu já escrevi aqui que acho os super-heróis uma das grandes invenções do século passado, e Stan Lee foi fundamental para a sua permanência.

Mas o século XX já passou. E Stan Lee morre exatamente no momento em que a indústria que ele ajudou a revolucionar está desaparecendo.

Durante todo o século passado, revistinhas em quadrinhos foram um dos principais passatempos de crianças e adolescentes. A partir dos anos 80, quando houve uma explosão criativa e elas se tornaram mais complexas (se eu fosse escolher um marco arbitrário para essa transição seria “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller), passaram a ser consumidas sem culpa por adultos, o que garantiu status de quase arte para o gênero.

Mas os anos pós-HAL-9000 (curiosamente Douglas Rain, que deu voz a HAL em “2001”, morreu no mesmo dia que Lee) têm sido espinhosos com essa indústria e as revistinhas em quadrinhos estão condenadas a desaparecer.

O fim recente da publicação dos personagens Disney pela Abril não é resultado apenas da crise em que a editora se encalacrou. As vendas vêm despencando nas últimas décadas, e nada indica que deixarão de rolar morro abaixo. Como disse o Paulo Maffia, que editava a Disney cá nos trópicos, o problema é muito mais grave: a verdade é que a era das revistas baratas vendidas mensalmente em bancas está chegando ao fim, porque elas estão perdendo o sentido e a importância para as novas gerações. Aliás, até as bancas estão acabando, para minha tristeza inconsolável. Quadrinhos estão deixando de ser mídia de massa para se alojar nos nichos dos encadernados de luxo, à venda em livrarias.

(Uma pessoa mais chata poderia lamentar isso, apontar para o fato de que em vez de ler livros de verdade as pessoas estão lendo quadrinhos, e isso estaria contribuindo para a epidemia de burrice que assola o mundo e tem surtido efeitos tão nefastos em eleições mundo afora. Que bom que eu não sou chato.)

Diante do esboroamento de seu mundo, os super-heróis — certamente ajudados pelos seus superpoderes — se adaptaram e encontraram uma sobrevida no cinema. Mas há um grande paradoxo nisso. A tecnologia que permite que eles sejam representados de maneira verossímil é a mesma que está matando o astro de cinema (nesses blockbusters o importante é, por exemplo, o Hulk ou o Pantera Negra, não os atores que os representam. Estes podem mudar sem problemas: só o coitado do Homem-Aranha já foi interpretado por três sujeitos diferentes desde 2001) e, paradoxalmente, as próprias revistas em quadrinhos; mas isso não interessa.

Talvez por isso a morte de Stan Lee pareça tão tempestiva. Morrer aos 95 anos não é injusto para ninguém, para sermos francos. Tampouco é motivo de alegria. Mas se é possível achar algum motivo de, pelo menos, consolo nesse pequeno incidente, ele está em entender que a vida foi mais que boa para o velho e bom Stan: ele morreu antes de ver a sua indústria, pela qual ele fez muito mais que a maioria de seus colegas, agonizar e morrer.

Obviamente, resta ainda uma esperança: que a sua morte seja igual às de tantos super-heróis, mortes espetaculares que invariavelmente são revertidas logo depois.

Talvez Stan Lee volte no próximo número.

7 thoughts on “Stan Lee

  1. Existe a possibilidade de as revistas sobreviverem no meio digital. Um amigo assina o serviço da Marvel e disse que é muito bom, ele lê no iPad.

    A DC lançou agora o seu serviço, que não só tem as revistas como desenhos, filmes e séries do universo deles.

    O carro chefe é o seriado Titans, que eu estou achando bem bacana (obviamente uso torrent).

    Eu acho que pode ser uma saída. Eu continuo gostando de quadrinhos, li a série do Azarello para a Mulher Maravilha, magistral.

    • Marcus, eu acho improvável. Porque a cultura é diferente. Eu leio quadrinhos desde que os 4 anos, super-heróis desde os 10. Esperar pelas revistas, virar as páginas faz parte da minha vida. Mas a meninada de hoje e do futuro cresce com outros padrões — e pra eles Nick Fury é negro. Acho que vai faltar escala pra manter essa indústria.

  2. Interessante. Li um texto seu há bastante tempo sobre o Michael Jackson, feito em 2005, mas só agora lembrei de comentar, após ler esta homenagem ao grande artista que era o grande Stan Lee. Depois de muito tempo, acho que você precisa no mínimo tomar vergonha na cara e postar um texto esclarecedor sobre o quanto você foi passivo e conivente com o sensacionalismo midiático que gostava de vender notícias com desgraças de Michael Jackson, fomentadas pelo maucaratismo burguês. Um ser humano doente e livre de culpa no que se refere as acusações a ele feitas tão covardemente. Me pergunto se você conseguiu dormir a noite, depois que toda a mentira passou a ser exposta, conforme os anos se passavam e os casos se desenrolavam. Provavelmente, sim, era um artista com o qual você não convivia pessoalmente, não é mesmo? Me pergunto também se ainda sobra o bom humor para rir de notícias sobre pessoas que ainda tentam arrancar dinheiro do falecido com falsas acusações. Na próxima, tenha um pouco mais de bom senso e ceticismo, talvez você esteja sendo feito de gado pela indústria para viabilizar mentiras. No entanto, devo dizer que a sua homenagem ao Stan Lee ficou muito bonita, um texto tocante, é verdade. Eu quase acredito no seu bom mocismo.

    • Moisés,

      Dentre os tantos defeitos de que me podem acusar, um deles não é o bom-mocismo. Não acredite nisso. Se disseram isso pra você, é mentira.

      Eu costumo dormir bem à noite. Michael Jackson não está no meu rol de preocupações, como na verdade nenhuma figura pública que eu não conheça pessoalmente. Aliás, nenhuma figura pública está acima de quaisquer críticas — ainda mais uma cercada por escândalos e comportamentos , pra usar um eufemismo, estranhos. Doente? Pode ser. Isento de culpa? Duvido. Mas no seu lugar eu não estenderia a devoção a um artista a essa defesa absoluta, quase fanática. Fica feio.

  3. Rafael, duas coisas:
    1- O Stan Lee nos últimos anos parecia um personagem da revista do Homem Aranha.

    2- Você disse: “em vez de ler livros de verdade as pessoas estão lendo quadrinhos, e isso estaria contribuindo para a epidemia de burrice que assola o mundo”. O meu pai me impediu por muitos anos de ler quadrinhos por acreditar nisso e hoje se diz o mesmo dos jovens que não saem das redes sociais.
    Eu lia muito Disney (escondido do meu pai) e o meu português melhorou absurdamente pelo fato dos personagens Disney falarem o português corretamente.
    Será que as redes sociais…

    • Os demônios vão mudando com a passagem do tempo. Na lojinha do pai de Isaac Asimov, vendiam-se pulps, incluindo ficção científica. O pai tentou impedi-lo de lê-los porque achava que iriam fazer dele um delinquente juvenil ou um desocupado. Décadas depois, Asimov comentava que a geração dele foi das últimas que tiveram como entretenimento central a palavra escrita.

      “Eu lia muito Disney (escondido do meu pai) e o meu português melhorou absurdamente pelo fato dos personagens Disney falarem o português corretamente. Será que as redes sociais…”

      O tempo dirá. Imagino que qualquer interação com a palavra escrita, especialmente se prazerosa, ajuda a criança (e o adulto). Uma diferença é que a Abril tinha que garantir níveis mínimos de adequação gramatical ao material que distribuía. Nas redes sociais, tais filtros não existem. A qualidade do material é certamente mais desigual.
      Na verdade, seria interessante (se alguém ainda não fez isso) pesquisar como as traduções dos quadrinhos Disney no Brasil mudaram ao longo dos anos. A minha impressão é de que a fala dos personagens era muito mais formal quando eles começaram a ser publicados no Brasil.

      Já os quadrinhos da Turma da Mônica, desde que me entendo por gente, estão sempre bem perto de como as pessoas costumam falar informalmente (pronomes pessoais do caso reto, como “ele” e “ela”, usados como objetos diretos, etc.).

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