Gourmet

A única coisa mais chata que essa nova subcultura “gourmet” é reclamar dela, admito.

Mas eu não tenho problemas em ser chato, e é quase impossível controlar minha profunda antipatia a essa moda, quase tão irritante quanto ver alguém chamar um gato ou cachorro de “serumaninho” ou “filhinho”. Uma porra de um gato.

Cresci achando que “gourmet” era substantivo. Transformá-lo em adjetivo, tascar um “gourmet” depois de qualquer palavra — “hambúrguer gourmet”, “self-service gourmet”, “podrão da esquina gourmet” — é, para mim, apenas garantia de comida pretensiosa com ágio excessivo, nada mais que isso. Ninguém jamais viu um “El Bulli Gourmet”, ou um “Ducasse Gourmet”. Eu poderia encerrar meus argumentos aí. E encerro, porque o que vem a seguir é basicamente a eterna arenga de um velho cansado da estupidez que tem virado a norma nos dias de hoje.

Essa coisa de gourmet é, em essência, contraditória: é profundamente antidemocrática, mas é também resultado de uma certa democratização. A princípio, me parece a convergência de dois fatores curiosos. Um é a proliferação dos cursos superiores de gastronomia, que fez com que um bocado de gente sem talento real para a coisa, como sói acontecer em qualquer profissão (e eu sou a prova viva disso), precise ganhar a vida de maneira digna, que pelo menos pague os dinheiros gastos nos anos de curso — embora, sem querer desmerecer ninguém, mas pouco me lixando se desmereço, me pareça desaforo alguém passar anos estudando técnicas gastronômicas para depois ganhar a vida como pouco mais que chapeiro de luxo. O outro, e certamente o mais importante, é a necessidade de uma sociedade perdida no labirinto de um interminável fin de siécle, cujo hedonismo crescente nunca deixa de me espantar, de se diferenciar individualmente através do que tem ou daquilo a que aspira ter. Comer todo mundo come; mas só uns poucos comem diferente, porque podem pagar mais por isso — e esse pagar é a garantia de superioridade da bobagem que estão comendo, da “experiência”.

Obviamente não posso fazer nada quanto a esse estado de coisas. É inútil e uma implicância extremamente pessoal. Junto minha antipatia às idiossincrasias daqueles que não gostam de, sei lá, Beatles ou suco de mangaba: reclamar é ainda mais chato, e no fundo não interessa a ninguém, ou pelo menos não interessava antes que virasse moda doirar a própria vida medíocre no Facebook ou no Instagram: o idílio com o marido que trai você, a viagem cuja foto no Instagram esconde a bolsinha da CVC, o filho horroroso que você diz ser lindo (você quer acreditar nos comentários, uma sucessão de lindo lindo lindo, sem maiúsculas nem pontos; saiba que eles estão mentindo) — tudo isso está umbilicalmente ligado a essa coisa de gourmetização.

O que posso fazer é me recusar, por princípio, a fazer algumas coisas.

Eu não como hambúrguer gourmet, ponto. Não como porque a ideia de hambúrguer gourmet é um contrassenso para mim, uma confissão abjeta do fracasso de uma civilização em processo acelerado de decadência. O hambúrguer foi inventado para tornar mais palatável e macia uma carne dura mas saborosa, e é coisa para ser combinada de maneira rápida e simples; na prática isso é, ou deveria ser, antitético à ideia de comer realmente bem, que pressupõe uma elaboração e riqueza de sabores impossível de ser alcançada por aquela mistura simples de pão, carne e otras cositas más em uma mordida só.

É uma razão diferente da que me faz não comer macarrão na rua — eu faço melhor, quase sempre —, e diferente também daquela que me faz olhar com reservas esse pessoal que tenta reinventar a comida do cotidiano, aquela comida entrincheirada na cultura e tradição de um povo e feita de maneira simples, quase automática, por quem não precisa sobrevalorizar o que faz com aquela conversa intragável e canalha de que “cozinhar é um ato de amor”. Por exemplo, há poucas coisas mais gostosas que sarapatel, do jeito que é feito. Inventar sobre isso é chover no molhado, e o resultado por ser justamente o contrário do que se pretendia.

Claro que em tese — embora eu duvide muito— seria possível fazer isso, reduzir o sarapatel à sua eventual essência (para entender melhor o que quero dizer, é só lembrar da ratatouille servida ao crítico gastronômico no desenho homônimo). Mas para isso é preciso um talento que as pessoas, em sua virtualmente absoluta totalidade, não têm. O resultado é garam masala na rabada.

Eu já vi hambúrguer de filé mignon, e custei a acreditar no que via. Porque o filé não é, nem de longe, a carne mais saborosa de um pobre boi. É a mais macia, apenas, e por isso os franceses inventaram tantos molhos para acompanhá-la. Um hambúrguer de filé mignon é uma confissão de estupidez como poucas outras no mundo culinário. Maior só a daquele infeliz que colocou pó de ouro em seus pratos, um sujeito que certamente merece os mais dantescos castigos que o inferno pode oferecer.

Da mesma forma, acho tão estranho essa mania de “degustar” cerveja cara. O sujeito compra uma cerveja de 50 reais, 300 ml apenas. Não. Está errado. Que me desculpem os aficcionados, mas isso é um desrespeito à cerveja, à sua história e à sua finalidade.

Cerveja é bebida de quantidade. É bebida social, feita para beber em grupo, em grandes quantidades. Você fica bêbado com uma cerveja? Se não, não vale a pena empurrar 60 reais numa cerveja artesanal feita por monges trapistas em Connard de Poche-Pleine, só porque é a última explosão da moda. Se vai me dizer que bebe apenas pelo gosto — por favor, respeite os seus próprios anos de esforço para passar a gostar daquela bebida amarga porque não queria se sentir socialmente deslocado. Mais degradante que isso, só cerveja sem álcool.

Mas a cultura gourmet faz você sentir que precisa comprar coisas caras, singulares — mesmo que você precise fingir não perceber o paradoxo da singularidade na cultura de massa. Mais que isso, é a disposição em ser roubado que me incomoda. Tem pouca coisa como uma Guinness tirada na hora, ou uma Urquell preparando o seu apetite para seu joelho de porco que vem chegando. Não porque são boas, apenas, mas também porque são baratas em seus respectivos buracos. E no entanto as pessoas se esforçam para mostrar que estão bebendo uma cerveja cara. Estão se esforçando para serem otários.

Acontece algo semelhante com o vinho. Eu gosto muito de vinho. Muito, mesmo. Bebo mais que a média brasileira, o que não é grande coisa: no Brasil se bebe dois litros de vinho por cabeça ao ano, enquanto os padres do Vaticano bebem mais de 54 — embora não se saiba quanto disso é destinado a embebedar garotinhos inocentes. O desnível é muito maior porque a lista brasileira provavelmente inclui clássicos imorredouros como Dom Bosco, Canção e Sangue de Boi; se se restringir a vinhos minimamente decentes deve dar menos de uma garrafa por pessoa, e posso apostar que o grande campeão é aquele Reservado Concha y Toro — contra o qual, a propósito, eu não tenho nada. Só para comparar, cada brasileiro bebe 82 litros de cerveja por ano.

Eu bebia mais que os padres do Vaticano, e olha que nem gosto de menininhos. E sei que com 50 reais você compra uma garrafa de um vinho honesto, e com uns 100 compra um bem decente, naqueles dias em que você se sente muito rico. É o bastante para mim. Ainda é caro, e pode ser ainda mais — aqui você compra por 800 reais um bom Brunello di Montalcino que sai lá fora por uns 50 euros —, mas é o mercado, fazer o quê. No limite, não nego que se tivesse dinheiro eu seria capaz, uma vez na vida, de derramar 4 mil euros num Chateau Pétrus — se 4 mil euros equivalessem a uns 200 reais para mim —, apenas para saber por que é tão caro. Mas jamais, jamais, jamais jogaria fora 20 mil euros para comprar um Romanée-Conti, porque não acredito que alguém tenha papilas suficiente no diacho da boca para sentir a diferença desses 15 mil tostões. A cultura gourmet, no entanto, é a eterna busca pelo Romanée-Conti, e cada um vai se contentando com o mais próximo a que pode chegar dele, uma proximidade medida em reais.

É isso que essa conversa de “gourmet” significa para mim. É apenas um desvirtuamento do que significa prazer, comer e beber bem. Comida tem apenas duas funções reais: encher a barriga e, se possível, dar algum prazer sensorial. Vinho também, com o prazer sensorial tomando a dianteira. Mas a cultura gourmet os eleva acima disso, e por isso, para esse pessoal, qualquer chianti de 400 reais é por definição melhor que um portuga de 60, não interessa quais sejam.

É isso. Agora que as definições mudaram, que gourmet deixou de ser um sujeito que gosta de comer bem e variadamente, a palavra para mim passou a definir algo diferente: aquele sujeito mais interessado em espalhar aos quatro ventos que dormiu com uma mulher do que em fazer safadeza com ela.

8 thoughts on “Gourmet

  1. Concordo com 98% do texto, que é ótimo. Aliás, dos 2% que sobram, posso até não concordar mas respeito, acho razoável. Agora não dá pra aceitar a história de que cerveja é pra tomar em grandes quantidades. Eu adoro cerveja e adoro uma cerveja boa (mas não como esses gourmets idiotas que seu texto estraçalha tão bem). Aliás, para os mais jovens e que não conhecem cervejas, essas nossas cervejas comerciais são todas como a piada (como chá e um casal trepando num barco, “all of them fucking close to water”), mas eram bem melhores há 30-40 anos atrás (eu me lembro até hoje do sabor da Antarctica…). Mas prefiro tomar pouco (no máximo, estourando, um litro, e isso já está no limite do aceitável). Pra mim, depois disso, não se sente mais o gosto da cerveja. E eu gosto do gosto, não do volume. A não ser que suas papilas sejam de uma espécie diferente da minha (sempre uma possibilidade). Se era pra ser chato, aí está.

    • Eu não sou exatamente conhecedor de cerveja. Pra mim, a Heineken é o bastante. Sobre o sabor antigo da Antarctica (em alguns lugares; em outros preferiam a Brahma, depois a Skol. Diziam que era por causa da água diferente em cada fábrica, eu tenho a impressão de que eles pioraram propositalmente as cervejas, para poderem vender as que chamam de premium.

      Mas cerveja é pra grandes quantidades, sim. 🙂

      • Ontem eu tomei 1 cerveja gourmet de 500ml muito boa, e realmente 1 foi muito pouco. Mas se tivesse tomado umas 3 já tava de ótimo tamanho pra mim. O problema é que 3 cervejas dessas já começa a ficar caro demais…

        Mas não dá pra comparar o sabor dessas cervejas com as comerciais. São muito superiores em sabor.

  2. Me apegando a uma questão lateral, esse é um dos motivos, embora não o principal, que eu nunca tive nenhum interesse em facebook ou instagram: minha vida já é chata o suficiente sem eu tentar “melhorá-la” pra um público que só existe na cabeça de quem posta, apesar dos comentários que fazem, sempre sem sentido também.

    (O motivo principal é que as vidas alheias também são chatas, Deus me livre saber pra onde meus conhecidos viajam e o que o cachorro deles fazem, enquanto fingem que sua vida é interessante pra gente que finge que acredita ter interesse nisso)

  3. Lá nos anos 90 uns desocupados decidiram definir o que era uma bebida alcoólica, e resolveram que ela teria mais de 5 graus de álcool, afinal propaganda de bebidas e cigarros na tv era proibido. Como o cerveja com menos graduação não era – exatamente- uma ‘ bebida alcoólica’ , o gosto do brasileiro foi dirigido para esse caldinho de lupulo e malte. Inclusive um xarope dado a molecada tinha perto de 6% de álcool e teve que mudar a formula.

  4. “por favor, respeite os seus próprios anos de esforço para passar a gostar daquela bebida amarga porque não queria se sentir socialmente deslocado”
    Rafael, esse sou eu.

    Toda sociedade hiper-hedonista, não somente está fadada a decadência, mas a extinção. Com essa “goumertização”da pra entender o porque.

    Sobre vinhos e cervejas, penso exatamente como você: são bebidas para ser, simplesmente, bebidas, não para viadagens de gente que não consegue alguém para fode-lo(a).

  5. Complementando: é bom lembrar que o “verbo” gourmetizar, na mais é que uma palavra cunhada pelos “gênios” do marketing para seduzir otários e, desses, cobrar preços abusivos.

  6. Rafael, desculpe-me, mas morri de rir com esse texto, pois me lembrava de quando era adolescente em Salvador no início da década de 70 e comecei a frequentar festas. Numa delas, o primo de um dos meus amigos me perguntou se eu sabia o que significava croquete. Perguntei o que significava e ele respondeu: “É apenas o velho camarão a quem dão um nome diferente para cobrar mais caro.” Lembro sempre disso quando vejo pipoca gourmet, cachorro quente gourmet, dobradinha gourmet e outras sandices mais. Quanto às cervejas, vinhos ou qualquer bebida, você tem razão, ninguém precisa pagar caro para beber bem. O resto é frescura.

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