Sobre o Oscar 2020

Ford vs Ferrari é o melhor que se pode esperar de um filme já visto tantas vezes, com todos os clichês possíveis num desses pilares do cinema americano: o filme sobre underdogs e carros e a amizade masculina que só a graxa e a celebração da velocidade possibilitam — inclusive na adulteração da história e na redução de uma decisão de negócios a um ato de despeito de um empresário. É o mais fraco dos concorrentes deste ano. Tentaram fazer um Thunderbird 1957 mas tudo o que conseguiram foi um Edsel.

Once Upon a Time in Hollywood é apenas uma piada contada pela segunda vez. O que foi genial em “Bastardos Inglórios” — a ousadia de mudar a história porque o cinema pode ser instrumento de transformação da realidade — agora é pouco mais que uma reprise na Sessão da Tarde, ilustrando uma visão edulcorada de Hollywood, uma celebração emaciada e disfarçada de um modelo de fazer cinema, mas agora sem o vigor que Tarantino demonstra em outros filmes.

The Irishman é Scorsese mais uma vez confortavelmente instalado em sua obra. Traz uma interpretação magistral de Joe Pesci e até mesmo um Pacino um pouco mais contido do que o normal; mas é só o mesmo filme que Scorsese vem fazendo há décadas, pouco mais que Mean Streets e Goodfellas requentado, com menos vigor; a julgar pelos atores, é quase como se Scorsese quisesse fazer um corolário de sua obra. Nos últimos anos ele deu excelentes filmes como Hugo Cabret e Silence. Não é o caso deste.

Marriage Story é exatamente o que se esperaria de um filme de Noah Baumbach. Ele é um sub-Woody Allen, mas não um qualquer: é um sub-Woody Allen em seus momentos de sub-Ingmar Bergman. Bom filme, correto, com bons atores. Mas não vai muito além da superficialidade egocêntrica típica da geração millenial novaiorquina, de que Baumbach está se tornando o cronista. Há filmes piores este ano, mas há melhores também.

Little Women é um bom filme, competente, dirigido com firmeza por Greta Gerwig (que a julgar pela crítica novaiorquina é a maior cineasta de todos os tempos) e bem superior ao seu superestimado Lady Bird. Atualiza um livro mais que centenário e filmado dezenas de vezes, reforçando seus aspectos feministas até o limite. Mas a opção por uma narrativa baseada em flashbacks torna tudo meio confuso, e apesar da direção segura o filme acrescenta bem pouco ao que já se viu por aí. Alguns atores estão mal escalados, como Emma Watson que não poderia ser Meg, embora Saoirse Ronan esteja perfeita como Jo. Mas é Louis Garrel como Bhaer que mostra o exagero que essas leituras podem chegar. Bhaer jamais poderia ser tão bonito, e ao fazer essa concessão estética Gerwig mostra que não entendeu um aspecto importante do livro e no protofeminismo de Jo.

Parasite deve ganhar o Oscar de filme estrangeiro. Mas é um filme superestimado: bom o suficiente, mas que resolve mal boa parte das ideias que apresenta e que acaba apresentando uma visão confusa e inconsistente da luta de classes que está na base de sua história, mais ou menos como alguém que ouviu o galo cantar mas não sabe exatamente onde.

1917 ganhou o Globo de Ouro merecidamente. É um exemplo de excelência técnica e narrativa, tão bem feito que consegue a proeza do one shot sem que isso seja mortalmente chato. Formalmente é o melhor filme do ano, e Sam Mendes merece o Oscar de melhor diretor. Mas falta muito a ele. No fim das contas, fica a sensação de que é tanta proeza técnica em tela que se torna difícil estabelecer uma conexão emocional real com o filme. Em muitos aspectos é semelhante ao último Mad Max: um interminável desfile de perícia técnica mascarando um vazio profundo.

Jojo Rabbit é uma comédia de frescor admirável, que não tem medo da gargalhada mais aberta nem do deboche puro e simples e que entende que a melhor maneira de abordar o absurdo é transformando isso em linguagem. É uma comédia agridoce surpreendente, que reconhece o ridículo do ódio e mesmo da vida, sem deixar de ser otimista. “Jojo Rabbit” é a antítese destes tempos sombrios, e é isso que faz dele um dos dois melhores filmes dessa noite. E é difícil não gostar de um filme cuja música de abertura são os Beatles cantando Komm, Gib Mir Deine Hand.

Joker acaba sendo paradoxalmente prejudicado pelo desempenho excepcional de Joaquin Phoenix, que o ofusca e diminui os méritos que o filme tem. Além disso, traz um número muito grande de falhas de roteiro. Mas é o filme que melhor dialoga com os tempos atuais. Utiliza um gênero que já estava esgotado para jogar luz sobre a loucura do mundo em que vivemos, sobre os impasses de uma modernidade ternamente conectada e que lida com novos símbolos e valores aos quais ainda não conseguiu se acostumar. É o filme em que eu votaria.

E em 2020 o Oscar virou uma menina branca.

5 thoughts on “Sobre o Oscar 2020

    • Cacete, misturei as bolas. Quis me referir a “Silêncio”. 🙂

      Obrigado pela correção. 🙂

  1. Dos que assisti concordo com tudo que você analisou, inclusive que o Joe Pesci é melhor coisa se Irlandês, e poderia até levar o Oscar se coadjuvante somente pela introspecção da representação, quando sabemos o quão histriônico é o baixinho.
    Quanto ao Al Pacino, só cocordo que ele estava controlado no começo do filme, mas nao demorou para o monstro gutural voltar.

    • Al Pacino sempre interpreta… Al Pacino! Compare o “Perfume de Mulher” original com Vittorio Gassman com o seu remake com o Pacino. Que diferença!

  2. Ótima análise sobre o Oscar 2020. De fato o Baumbach é o que você falou. Esse filme dele inclusive reedita aquelas produções chatérrimas sobre separação do final dos anos 70, início dos 80, tipo “Kramer vs. Kramer” e “Uma mulher descasada”. Haja saco!

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