A vida dura de quem lê portais de notícias

Argumentos identitários me cansam profundamente há muito tempo, pela miopia, pela estreiteza, pela degeneração no que Mark Lilla chama de “pseudopolítica de autoestima e de autodefinição” e pelo que Antônio Risério chama de colonialismo cultural. Ainda mais porque são eles que dão cada vez mais o tom do que passa por debate político nos portais de notícias, tornando a discussão rasa e sempre em busca de notoriedade rápida.

Mas uma dessas tais polêmicas me chamou a atenção dia desses. Leandro Narloch, citando um artigo do Risério, convocava o movimento negro a se inspirar nas sinhás negras que existiram ao longo da história, deixar de se ver como vítimas e acreditar no seu potencial, confiar no capitalismo e na sandice de que cor de pele não faz diferença neste país, o que importa é o mérito. Só és pobre porque queres, como diria qualquer coach ou pastor enquanto embolsa o dinheiro da sempre renovada legião de otários.

Um texto do Narloch não traz, nunca, nada de novo, e muito pouco que se aproveite. Ele basicamente retira de textos mais consequentes algum elemento que possa causar polêmica e indignação e o torce o bastante para que se adeque à sua visão de mundo. Não passa de opinião de terceira, tendenciosa, e só reflete a pobreza do debate público. Basicamente, é isca para atrair a atenção de gente que pensa diferente dele e justificar o seu salário.

Mas ele alcança alguma notoriedade por uma razão simples: porque em vários aspectos seus contestadores não são muito melhores que ele, e para eles compensa engolir essa isca.

O moralismo puritano que parece definir boa parte desse identitarismo exige que o debate histórico seja definido, antes de mais nada, pelos valores éticos que se defende. Por isso, para alguns desses debatedores, é mais fácil fazer polêmica com o Narloch porque, no fundo, ele existe para isso. É raso como cacimba em quinto ano de seca, de uma mediocridade profunda porque sempre reduz um elemento complexo a uma ou duas palavras de ordem. Para esses debatedores de portal e de posts de Facebook e até de blogs mixurucas como este, é um inimigo adequado e fácil, embora raramente o resultado da contra-argumentação seja ao menos razoável, porque costumeiramente apela para a defesa dos seus valores e um senso de indignação moral que deveria ter pouco lugar nesse tipo de conversa.

O artigo do Narloch comenta um livro do Antônio Risério que fala das “sinhás pretas”, mulheres negras que enriqueceram no período da escravidão e, em maior ou menor medida, dentro das brechas e oportunidades que o sistema oferecia, se adequaram a ele em posição privilegiada.

Até aí nada demais, porque isso é história e serve como contribuição à compreensão do nosso processo evolutivo e da complexidade na formação das relações de classe e etnias no país; não é problema dele se os movimentos identitários enxergam essas evidências como heresia agressiva ao seu discurso totalizante. Seu problema é outro: Narloch usa esse exemplo para dizer que o movimento negro deve mudar seus pontos de vista, temeridade que o conceito deturpado de lugar de fala não permitiria nem a gente mais bem-intencionada. Ele pinça os dados que lhe interessam para promover um negacionismo militante, que repercute facilmente entre a militância e desperta ódios imediatos.

Mas há um ponto curioso, que merece um parêntese:

Como observou certa vez o historiador Manolo Florentino (que assina a apresentação do livro de Risério), é muito mais estimulante, para negros de hoje, imaginar que seus antepassados foram em alguma medida protagonistas de seu destino. Protagonizaram ações — ações dentro dos costumes da época, como a de comprar e alugar escravos.

Desconte a última frase, que é apenas a canalhice intelectual do Narloch e o arremesso da isca. Isso me lembrou a confusão em torno daquele tal musical da Beyoncé que a Lilia Schwarcz elogiou com ressalvas, e que lhe custou uma série de ataques hidrófobos de militantes e um pedido de desculpas indevido e humilhante. A obra da Beyoncé, pelo que posso julgar a partir unicamente das descrições que li, era uma fantasia hollywoodiana, tão falsa quanto uma nota de 2,5 kwanzas, que parecia pregar justamente algo parecido. Poderia ser considerado nocivo, não fosse a autoria. Entretanto, tudo é relativo nesse mundo novo.

Mas não é disso que este post trata. O artigo do Narloch foi contestado por Itamar Vieira Junior, que o acusa de “relativizar o horror da escravidão”.

É muito ruim quando um dado histórico é apontado como uma tentativa de minimizar a tragédia da escravidão. Porque reflete uma tentativa de construir uma narrativa falsa que atende apenas a determinados interesses, coisa de um Narloch invertido. O pior é que a argumentação do Vieira Junior é ruim demais, e deliberadamente falsa, repleta de inverdades.

“Havia escravidão na África antes da chegada dos colonizadores, como houve em Roma e na Grécia Antiga”, diz Vieira Junior. Isso é só meia verdade. O que havia na África não tinha paralelo em Roma ou na Grécia. Independente da escala a que se chegou, a formação de um mercado secular, consolidado e em grande escala de escravos era um segmento importante na África. Tentando explicar  de maneira tosca e quase desrespeitosa, é como se o mundo greco-romano se servisse da escravidão para uso doméstico. O mercado africano era de exportação.

Pode ser impressão minha ou mesmo má vontade, mas esse tipo de argumento parece uma tentativa de dar status melhor e mais “humano” à escravidão intra-africana. Ele quase está dizendo “ah, mas não era só eu”. Não que para o escravo fizesse diferença entre ser escravizado por perder uma guerra ou por ser o elo fraco em um sistema comercial sofisticado, mas negar a dimensão do havia na África é negar a história.

Mas não é isso o mais grave.

Mais adiante ele afirma que o tráfico só foi possível graças ao “Estado capitalista colonial”. Isso é mentira. E não apenas porque no século XV, quando o tráfico ultramarino deu seus primeiros passos, não existia “Estado capitalista colonial”. Na verdade o desenvolvimento colonial do Brasil, baseado na agricultura extensiva e uso intensivo de mão de obra barata, só foi possível porque havia, antes, a oferta regular e abundante de escravos africanos. Certo, o Estado colonial europeu foi fundamental para consolidar ainda mais esse mercado, possibilitando uma demanda sem precedentes que destruiu estruturais sociais, dizimou a população masculina da África e da qual o continente jamais se recuperaria. Mas não foi ele quem criou esse mercado.

Escravidão é negócio, sempre foi negócio, e por mais aterrorizante que seja ver seres humanos descritos como “peças”, era algo que se sobrepunha a valores morais mesmo na época. Para os colonizadores portugueses no Brasil seria mais barato e desejável escravizar índios, como foi tentado com sucesso insuficiente. Trazer escravos da África requeria alto investimento inicial, tinha alta taxa de depreciação, perdas de material que poderiam pôr a perder todo o dinheiro gasto. Mas entre os índios brasileiros não havia estrutura de compra e venda de pessoas semelhante ao que existia na África, além de uma série de desvantagens óbvias. Assim, escravos africanos no Brasil eram mais viáveis, sujeitos a menos perdas e fugas. O investimento era mais alto, mas a relação custo/benefício era tão infinitamente melhor que a escravidão no Brasil se espalhou como metástase por todas as camadas da sociedade, dando lugar a uma rede tão complexa que, embora obviamente incapaz de minimizar o horror da escravidão, inviabiliza as visões moralistas e simplistas dos identitários de hoje.

O mais curioso é que o Vieira Junior usa essas distorções para embasar um argumento realmente válido:

A consciência histórica sobre os processos que nos trouxeram até aqui não é apenas uma retórica vitimista dos “escravizados, humilhados, exterminados”. É um passo para superação das estruturas que nos foram legadas por esse passado aviltante. Esse caminho só será possível promovendo uma discussão honesta e comprometida com os valores que elegemos como fundamentais para superar a chaga da escravidão e do racismo.

Eu gostaria de assinar embaixo. Mas também gostaria de lembrar que a chave aqui, que não foi usada, é a expressão “discussão honesta”. Não teremos uma discussão honesta se acusarmos informações que iluminam falhas em nossa argumentação de “ultraje, quiçá um crime”.

O mais grave, no entanto, é que a partir daí o texto do Vieira Junior degringola para o que há de pior nessas discussões. Ele não quer mais ver opiniões ofensivas como a do Narloch e pede que o conselho editorial da Folha de S. Paulo seja “uma ‘grade de proteção’ a favor dos valores humanos fundamentais” — ou seja, que calem o Narloch, porque liberdade de expressão só deve existir para nós. “Como disse Thiago Amparo ‘a corda do pluralismo esticou a tal ponto que’, se não fizermos nada, ela ‘nos enforcará’”, ele continua, antes de terminar com uma pergunta tão ou mais canalha que as iscas do Narloch: “Será que ele sugeriu que nos reconciliemos com a escravidão?”, o que ele sabe que não é verdade.

Eu vou parar de ler esses portais, juro que vou. Alguém tem um portal de fofocas de TV para me indicar?

3 thoughts on “A vida dura de quem lê portais de notícias

  1. Eu vi o Cris Rock em um show de Stand Up Comedy dizendo o seguinte: “vocês não têm ideia do quanto é terrível ser preto nos EUA. Vou dar um exemplo: eu sou um preto rico, muito rico, entretanto, o porteiro desse teatro, que é um homem branco, não quer trocar de lugar comigo, não quer ter a minha vida”.
    No Brasil há um atavismo cultural que diz que os negros sempre foram inferiores, talvez por eles terem surgido nesse pais como escravos subjugados e, naturalmente, submissos, e isso vem se retroalimentando de diversas formas por mais de um século, ao ponto que os próprios negros dos últimos tempos também não gostarem nem respeitarem os negros, muitos tendo sobre os negros as mesmas opiniões depreciativas dos brancos, ou até piores; e isso fica evidente em inúmeras ocasiões até prosaicas do dia a dia.
    As novas regras pra proteger os negros de muitos abusos, insultos, desrespeito e humilhações, têm surtido algum efeito, porém com um outro efeito colateral muito nocivo: o rancor latente daqueles que estão no outro lado e isso está gerando uma outra faceta do racismo. Pra piorar esse rancor latente é inflado pelo identitarismo, já que esse é promovido por indivíduos que se recusam a raciocinar, sempre vendo tudo, sabe-se lá por quais motivos, de uma só perspectiva.
    Situação sem solução a curto prazo: se começássemos hoje a educar todas as crianças para nunca serem racistas, num trabalho muito firme e sem interrupção, ainda demoraríamos algumas gerações pra tudo melhorar. E talvez essa seja a única saída.

  2. Ótimo texto! Eu vejo uma grande correlação entre aquela série de livros cometida pelo Narloch (“Guia politicamente incorreto”) e a ascensão do bolsonarismo ao poder cerca de oito anos depois. E o identitarismo, só posso dizer que não há melhor cortina de fumaça. Nossa ex-querda sempre morde a isca. E dá-lhe GloboNews colocando âncoras negras no ar e ao mesmo tempo referendando a agenda guediana de terra arrasada.

  3. Cirúrgico, Rafael! Narloch é um algoritmo humano, suas ações têm sempre o propósito de gerar engajamento e pra isso ele sabe bem o quê dizer e como dizer o que diz.. como gerar um hype a partir da tendência a reagir mais ao negativo que ao positivo. O que os algoritmos fazem constatando essa tendência estatisticamente (e provocando assim um reforço que o Jaron Lanier chama pelo nome, manipulação comportamental), ele faz deliberadamente e as pessoas caem, sempre e sempre, por isso a Folha o trouxe de volta.

    E é verdadeiramente uma tristeza que as respostas sejam rasas, como você observa. Na verdade, caras como ele, pra mim, não deveriam nem mesmo ter resposta, é gente que eu acho que deveríamos deixar que a natureza marque, pra usar uma metáfora do baba, do futebó. O que é triste na realidade é que essa dinâmica de engajamento e a busca pelo efeito perlocutório (vivemos no império do perlocutório) sejam os elementos que marquem a tônica da produção dos discursos, da escrita como ato de criação. Porque o resultado da incapacidade de escrever fora desse esquadro é um empobrecimento sem par. O propósito de destruir que não acompanha a capacidade de criar é estéril. Que bom que a internet ainda nos permite a liberdade de acompanhar coisas mais elaboradas e honestas.. eu leio um ou outro nos portais de notícia e olhe lá (dentre eles Celso, que aliás é cria da internet, que é cria nossa! haha)

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