Sempre que vejo alguém falando do “Jesus Histórico”, tenho a certeza de estar diante de um quase picareta. Não existe Jesus histórico fora do Novo Testamento. As poucas menções contemporâneas, ou quase, feitas a Jesus que existem fora dos evangelhos, canônicos e apócrifos, e das tantas epístolas, atos e etc. são, no mínimo, questionáveis. No máximo fraudes, mesmo.
Talvez por isso tanta gente levante a possibilidade de que Jesus jamais existiu; que ele é uma espécie de Robin Hood, uma lenda formada a partir da combinação de várias pessoas diferentes, separadas no tempo e no espaço.
A Salon publicou uma pequena lista de razões pelas quais Jesus não deve ter existido. São válidas. Mas elas não provam que Jesus não existiu: apenas mostram que é impossível escrever algo honesto sobre o Jesus histórico.
A razão 1 — a inexistência de fontes seculares que comprovem a existência de Jesus — não quer dizer muita coisa. Não é porque não há citações das fontes oficiais que ele não existiu: a árvore cai na floresta mesmo que você não veja. Na verdade, seria até improvável haver tais citações naquele momento.
Pouca gente conhece o episódio de Zé Lourenço e o Caldeirão. Se mora fora do Nordeste, menos ainda. Ao contrário de eventos semelhantes como Canudos e o Contestado, o Caldeirão ficou pouco conhecido fora do Ceará. No entanto, foi a primeira vez em que o Estado brasileiro utilizou bombardeio aéreo contra sua própria população civil.
Se esse nível de desconhecimento acontecia ainda em pleno século XX, não é difícil imaginar como os eventos trágicos, e relativamente comuns em uma província perdida num cudemundo do Império Romano, podiam não interessar aos historiadores romanos. A condenação de um pregador judeu qualquer simplesmente não era importante na época; como comparar às dezenas de seguidores de Spartacus crucificados ao longo da Via Ápia? Mesmo que a notícia chegasse aos centros de poder, seria vista como mais uma entre tantas crucificações de fanáticos religiosos. O estranhamento sobre a ausência de Jesus dos anais só é possível quando se dá a ele uma importância que só viria posteriormente. É mais ou menos como o Velvet Underground e sua influência bem tardia.
A segunda razão (os primeiros escritos do Novo Testamento desconhecem detalhes demais da vida de Jesus) é muito mais complexa, e contém a principal verdade desse texto: Jesus Cristo, mais que causa, é efeito do cristianismo.
Parece óbvio que a maior parte dos elementos que constituem a mitologia de Jesus — a imaculada conceição, a ressurreição, a fuga para o Egito, o hímen complacente de Maria — foram definidos aos poucos, com o passar do tempo, como forma de caracterizar o caráter divino de Jesus e adequar a narrativa ao zeitgeist místico de sua época. Ninguém mente mais, para si e para os outros, que religiosos.
Mas o principal argumento do artigo, a ausência dos aspectos biográficos de Jesus nas epístolas de Paulo como evidência de sua inexistência, é muito frágil. O problema é que o fato de os evangelhos sobreviventes só terem sido escritos algum tempo depois não impede que a história fosse contada desde antes de Jesus cair nas mãos de Pilatos. Além disso, é preciso lembrar que Paulo falava a comunidades cristãs, que presumivelmente já conheciam a história de Jesus. Paulo era um pregador e um doutrinador. Um livro de doutrina jurídica não costuma perder tempo explicando a canalhice de um Gilmar Mendes.
A terceira razão apresentada, a de que os livros do Novo Testamento não pretendem ser relatos em primeira mão, é mais um problema para os historiadores do que para a existência ou não do nazareno. Escritos décadas após a morte do sujeito e baseados na tradição oral de uma população majoritariamente analfabeta, ela acaba se misturando com a quarta, a de que os evangelhos se contradizem entre si, e que também é frágil. As diferenças entre eles, afinal, não são tão grandes assim, se devendo principalmente aos ruídos na transmissão oral. Se não fosse a existência de tantos evangelhos apócrifos seria até admirável que sejam tão semelhantes (não, é mentira: aparentemente uns basearam-se nos outros); mas o fato é que essa é a narrativa selecionada pela Igreja, em um tempo em que a própria ideia de historiografia era bem diferente.
E finalmente a quinta: o tal Jesus histórico. O fato é que quem escreve livros sobre isso poderia muito bem escrever sobre o Abominável Homem das Neves ou sobre o Eldorado ou sobre a Fonte da Juventude, daria no mesmo. Esses autores fazem, no mínimo, um grande exercício de imaginação e conjecturas para justificar o que certamente já é sua tese inicial, juntando fragmentos históricos reais para validar, de alguma forma, a sua própria ideia de Jesus. Por isso, de acordo com o livro que você ler, o Jesus resultante pode ser um rabino, um zelote, um fariseu, um pacifista — ele é essencialmente o Jesus que você constrói, seu alter ego.
Sempre tive a impressão de que Yeshua ben Yosef, se existiu, era pouco mais que um maluco pregando algum tipo de mensagem apocalíptica nas praças da Judeia. Tempos de ocupação política e militar como aqueles são extremamente propícios para isso, e ele não devia ser o único. Provavelmente não era o mais influente ou respeitado enquanto vivo: o fato de ele precisar da bênção de João Batista para se legitimar indica que aquele que transformaram em seu primo era a verdadeira grande liderança religiosa popular da época, naquele espaço específico. Além disso, Josefo fala muito mais de João do que de Jesus.
E em verdade, em verdade vos digo: por alguma razão o sujeito foi crucificado. E as pessoas acharam injusta a crucificação, e Jesus se tornou maior na morte do que tinha sido em vida, e o seu nome circulou de boa em boca, e catalisou um sentimento de mal-estar e de inquietação que as gentes viviam naqueles dias. E aos poucos a sua lenda foi se criando; e novos milagres foram inventados, e a sua mensagem foi se consolidando, adaptada aos tempos e aos públicos; e Saulo de Tarso entendeu que era preciso uma ruptura com a tradição judaica e pregou aos gentios, e elementos romanos foram agregados para que Ele se tornasse o Deus e o Filho de Deus. Amém.