Quando eu era top model

Naqueles dias o mercado publicitário brasileiro, fora de São Paulo, era sustentado pelo tripé varejo, governo e mercado imobiliário. Havia também um número ainda razoável de bancos locais, tanto privados quanto estaduais. Salvador, especificamente, também tinha nas indústrias de Aratu e Camaçari, como a Copene, alguns grandes anunciantes.

Eram tempos em que publicitários ganhavam bem e publicidade era bom negócio. Em que uma campanha se resolvia com um comercial de TV, um spot de rádio, um anúncio de jornal e um outdoor. As comissões de agência, muito generosas, possibilitavam uma lucratividade muito grande. Se na década seguinte a publicidade ganhou definitivamente glamour como profissão, isso se deve às condições econômicas que já estavam presentes naqueles tempos.

A partir dos anos 90 esse panorama foi se modificando. O varejo local foi paulatinamente engolido pela consolidação das grandes redes nacionais, a maioria com base no sudeste. Os bancos locais foram incorporados ou simplesmente extintos, principalmente durante a hecatombe do governo FHC. E o imobiliário se transformou numa sombra muito pálida do que era. Hoje, a lógica de comunicação desse mercado é bem diferente; além de novas exigências legais, quando um empreendimento chega à mídia é basicamente para desovar o que corretores já não venderam a investidores, é quase para vender o que sobrou.

Mas naqueles dias tudo era festa e Salvador não parava de crescer. Tinha redes de varejo como Paes Mendonça, Tio Correa, Fernandez, Ao Leão de Ouro, Ipê e Romelsa, tinha o Baneb e o Banco Econômico. E um mercado imobiliário absolutamente exuberante, em franco crescimento: entre 1960 e 1980 a cidade de Jorge Amado quase triplicou de tamanho, e isso exigia a construção incessante de novos edifícios, levantados rapidamente onde quer que houvesse um barranco vazio. A riqueza da cidade também possibilitava a criação de novos loteamentos, à medida que ela ia crescendo em direção ao norte — vamos falar a verdade, Salvador sempre quis ser Aracaju, sempre quis estar perto das terras do cacique Serigy. E aparentemente a comunicação dos empreendimentos ficava a cargo das imobiliárias, que faziam lançamentos maciços na mídia. A campanha publicitária de um empreendimento podia ficar meses seguidos nos jornais. Salvador se especializou tanto nesse nicho que, na minha opinião, chegou a fazer publicidade imobiliária melhor que qualquer outro lugar do país.

Foi nessa época que virei top model.

Aqui e ali eu aparecia em uns comerciais, uns anúncios de jornal. Não lembro da maioria deles. Mas houve um que me fez eternamente solidário ao drama das modelos de hoje, aquelas que se entopem de cocaína para não engordar, que fazem da fome seu estado natural, tudo isso com um sorriso no rosto. Eu entendo a sua miséria e sei dos sofrimentos que elas passam.

Era uma tarde quente, provavelmente de dezembro — já lá se vão mais de quarenta anos — e um fotógrafo chegou lá em casa avisando que precisava tirar uma foto minha para um anúncio. Acho que era Dario, não tenho certeza. Eu estava na rua como em toda tarde, brincando com Jailton e Pedrinho, imundo como em todos os dias; devem ter me dado um banho, jogado uns panos quaisquer nos meus costados e me mandado seguir o meu destino de star.

A foto seria de um menino numa bicicleta. Não faço ideia de quem conseguiu uma Caloi 10, muito maior do que eu; talvez tenha sido Pedrinho, ou Dario já trazia uma no porta-malas do carro. Ele botou a mim e aos meus amigos lá dentro e fomos para o Morro do Cristo. A foto foi tirada ali, do lado da encosta, de frente para o mar.

Tirada a foto Dario pagou o meu cachê milionário — e, generoso, o estendeu também aos meus amigos que tinham se transformado, por alguns minutos, em seus assistentes: um sorvete na Bambinella, uma sorveteria na Marques de Leão que deixou de existir há muito tempo. O meu foi de tangerina.

Algumas semanas depois passei na agência e vi o anúncio sendo finalizado numa prancheta. Estranhei a demora, pensava que o anúncio já tinha sido veiculado havia tempos, mas aquilo não era da minha conta. Vi a minha foto no pé do anúncio, não era sequer a mais importante — se eu tivesse um agente provavelmente iria me queixar a ele da falta de respeito aos meus talentos. Mas o que me revoltou foi outra coisa.

A foto estava recortada. Todo o meu sofrimento tinha sido por nada. Porque aquilo que estava diante de mim, e que seria exibido para milhares de baianos desavisados, era o resultado de uma eternidade de terror e pânico, dos quais eu não fazia ideia quando aceitei tirar aquela foto.

Há alguns meses, depois de 40 anos, achei o anúncio. Foi difícil encontrá-lo porque eu não sabia exatamente quando tinha sido veiculado — na verdade eu só o veria naquela prancheta, na arte-final —, e nunca soube qual era o cliente. Lembrava apenas da foto, o horror, o horror, e da sua localização na parte inferior central do anúncio. Demorou, mas consegui achá-lo. Era o lançamento de um loteamento chamado Vila de Ogum, ali pelo que hoje é a Estrada do Coco.

Na fotografia sorri o autor destas maltraçadas, confiante e despreocupado, o bom menino de classe média baiana, branco, louro, cabelo de cuia cortadinho em Severiano mas já grande. A camisa tinha listras verdes e brancas. Quarenta anos depois, ela me faz a gentileza de permitir que eu tenha orgulho de uma memória que conseguiu sobreviver aos anos e às noites e às cachaças. Mas também mostra que essa mesma memória é caprichosa e traidora: eu lembrava da imagem como se eu estivesse de frente, encarando o fotógrafo, pura e simplesmente, mais ou menos como a marca da Caloi na época. Mas nela se vê o trabalho de um grande fotógrafo, e não era à toa que Dario era considerado dos melhores da Bahia. Não é só o olhar para o lado, o torso suavemente curvado, as pernas dobradas dando movimento e graça à imagem. É o fato de que, olhando para ela hoje, eu quase esqueço que estava apavorado, com medo de morrer. E quem a vê não percebe um detalhe simples, que passa quase despercebido: minhas mãos apertam desesperada, sôfrega, avidamente os freios da bicicleta.

Tudo ainda está muito claro na minha memória. Dario me colocou na bicicleta, grande demais para mim e na qual eu não conseguia alcançar o chão. Jailton e Pedrinho ficaram segurando a bicicleta por sua roda traseira, abaixados. Mas para mim isso não significava nada.

Porque eu tinha certeza de que se soltasse os freios meus amigos não aguentariam, e a bicicleta deslizaria descontrolada até as pedras tantos metros abaixo, e lá iria eu me espatifar junto com as ondas, e seria ali que eu encontraria o meu fim, levado para Janaína para nunca mais ser encontrado, tudo isso abençoado pelo Cristo que abria os braços canalhas sobre mim, indiferente ao meu terror.

E mesmo assim, mesmo com o pânico que sentia naquele momento, apesar das minhas mãos apertando os freios da bicicleta com ânsia e desespero, eu mantinha um sorriso profissional no rosto.

Não é para todo mundo.

Agora a foto aparecia recortada, nada do Cristo ao fundo. Calado, xinguei Dario, xinguei o autor do anúncio, xinguei meus amigos que se prestaram a colaborar com aquele plano macabro de assassinato, xinguei a hora danada em que eu tinha aceitado fazer aquela foto.

Então tinha sido para aquilo que eu passei por minutos de terror que pareceram durar séculos? Eu sabia que uma foto daquelas podia ser tirada num estúdio, sem problemas, daqueles com paredes brancas e cantos arredondados que eu ainda não sabia chamar-se fundo infinito. Podia tirar a foto em qualquer lugar, não precisava nem ter saído da rua onde eu brincava.

Hoje imagino que provavelmente o layout original foi rejeitado, que o cliente exigiu uma foto do empreendimento ou algo assim, e aquela imagem do menino de bicicleta para quem o Cristo abria os braços e dava de ombros precisou ser mutilada. Ou o diretor de arte, ignorante quanto ao meu padecimento, simplesmente mudou de ideia. Talvez até o anúncio em que ela deveria sair tenha sido rejeitado, e a foto foi reaproveitada em outra peça. Uso esses pensamentos para tentar me consolar pelos momentos de terror que vivi ali. Ajuda um pouco, mas não resolve.

Porque nada, muito menos um sorvete de tangerina, seria capaz de pagar aqueles minutos de terror. Quarenta anos depois, o anúncio foi esquecido, a agência desapareceu, a propaganda deixou de ser o que era, até mesmo eu fui embora de Salvador. Mas jamais esqueci o medo que senti enquanto vivia as agruras de ser top model.

Tempos difíceis

Você quer saber como a vida está difícil para vendedores?

Há um ano minha TV começou a agonizar. Apareceu uma listra vertical grossa na tela. Descobri que não tem conserto — ou melhor, tem, mas é preciso “trocar a placa” e o conserto sai quase pelo preço de uma TV nova. Coisas desse tipo dão saudade dos tempos em que, quando a TV dava problema, você apenas trocava a válvula. Mas a vida é assim mesmo, e eu não quero perder tempo reclamando.

Deixei como estava. Não vejo tanta TV assim, e mais importante, para quem foi criado assistindo ao “Sítio do Picapau Amarelo” com chuviscos e fantasmas (e interferência quando ligavam um liquidificador), se incomodar com uma listra boba é coisa de millenial.

Mas numa sexta-feira dessas ela começou a gritar “Eu vou morrer, eu vou morreeeeer!”, escandalosa como lavadeira batendo boca por causa de homem, e isso me preocupou.

Aproveitei a noite do sábado seguinte para passar no shopping e procurar uma TV nova. Achei numa dessas grandes redes. A vendedora disse que estava em oferta, disse isso, disse aquilo, disse também que tinha para pronta-entrega.

OK. Fui fazer um lanche e pensar, que eu tenho problemas sérios em jogar dinheiro em eletrodomésticos e em celulares, é sempre uma decisão difícil para mim. Pensar e ver o preço na internet, claro. Aquele, naquela rede, era o melhor preço da tal TV — que tinha isso e aquilo e até blutufo, coisa de que gosto muito.

Quinze minutos depois voltei e disse que ia levar a TV. A moça então disse que infelizmente ela tinha três televisores, mas nesse período de tempo em que fui pagar caro por um lanche vagabundo um vendedor as tinha vendido. Agora ela tinha para entrega em cinco dias.

OK, eu volto daqui a cinco dias. “Mas aí a oferta pode ter acabado”, ela disse. Paciência. Tchau.

Eu não ia voltar, claro. Porque estava irritado, e o que me irritou foi a mentira. Ela mentiu, ponto. Ninguém vende três TVs caras em quinze minutos no dia 25 de qualquer mês. A verdade é que ela nunca teve a TV para pronta-entrega, mas se acha malandra, boa vendedora, tem as manhas de segurar o cliente e depois enfiar-lhe a faca. Manhas que funcionaram durante décadas, mas que em tempos de preços mais baratos na internet talvez não façam mais sentido.

Em outros tempos você ficaria à sua mercê e, se quisesse muito a tal TV, acabaria comprando nela. Mas não é mais necessário.

A tal rede tem um programa de vendedores “online”. Você cria uma loja, uma espécie de subdomínio do site deles, e se alguém comprar por ela você ganha uma comissão. Deve ser útil para quem está desesperado e disposto a trabalhar para a rede sem nenhuma vantagem empregatícia. Mas na prática, mesmo, funciona como os rebates americanos: você compra e depois recebe um troco de volta.

Voltei para casa e comprei na “minha” loja. Pelo mesmo preço. E mais 150 reais que vão voltar para a minha conta. E ainda vão entregar em casa.

Se eu fosse vendedor de loja ia dirigir para o Uber.