Sobre as eleições de 2014

Agora que acabaram-se as eleições, e Dilma continua presidente, o que mais me impressiona é lembrar que durante quase um ano vi aqui e em outros lugares uma série de análises políticas que, no fim das contas, leram mal a sociedade brasileira.

Vi, e vejo ainda, o pessoal reclamando dos retrocessos do governo Dilma, o mimimi de classe média dando lugar a um niilismo pretensamente esclarecido e com um discurso erroneamente politizado, e que não passa muito de uma certa negação elitista da política que se alastra entre a classe média e a elite cultural deste país.

Vi o pessoal repetindo as diversas variações do discurso da mudança, da demonização absoluta do governo Dilma. Aparentemente, parte da elite intelectual que me cerca via Dilma Rousseff como uma ditadora de extrema direita, capacho de Silas Malafaia. Se um inca venusiano desavisado caísse na minha timeline, acharia que Dilma era a sucessora dileta de Médici. Mais que isso, viria os ecos dos delírios que acompanharam as manifestações de junho de 2013: a de que “o gigante acordou”, a de que o Brasil queria uma mudança urgente, de que havia uma nova geração que pedia avanços mais radicais que Dilma com sua obediência cega à realpolitik era incapaz de realizar.

Mas agora que as eleições acabaram uma coisa ficou bem clara, e me impressiona que as pessoas não falem nisso: no fim das contas a tão antecipada mudança, se viesse, viria pela direita. Não seria Luciana Genro a próxima presidente: seria Aécio Neves. Aécio, do PSDB. É, aquele partido que, deslocado do centro pelo PT, se assemelha cada vez mais à UDN. Essa foi a mudança que mais de 48% da população brasileira quis.

Eu não tenho a mínima pretensão de entender o que foram as manifestações de junho e como está se processando a evolução política do país. Nada do que li me pareceu explicar direito o que foi aquilo — e a votação assustadora do Aécio me parece contradizer a maior parte do que foi escrito, porque o povo brasileiro afinal de contas não achava que mudar e avançar eram sinônimos. Mas desse processo de pouco mais de um ano, o que ficou foi a certeza de que o pessoal que comenta no FB se descolou completamente da realidade. De que eles não conseguem reconhecer a diversidade das forças sociais e de como se dá a disputa por espaço dentro do Estado em um regime democrático. E aderindo em massa ao voto nulo, parecem brincar na base do “se não é como eu quero, então não quero mais brincar”, e o que é pior: do “é melhor sofrer um governo do PSDB do que garantir conquistas importantes, ainda que isso signifique compactuar com esses criminosos nazistas petistas e peemedebistas e pepistas e pessedistas.”

Por isso tenho orgulho de ter votado em Dilma Rousseff, no primeiro e no segundo turnos. Porque desde o início me recusei a colocar em risco algo que me parecia importante: a continuidade de um projeto que, se imperfeito, ainda assim é melhor do que as alternativas concretas postas na mesa.

Até entendo e poderia justificar os votos na Luciana Genro, por exemplo, no primeiro turno. Não votaria nela, por mais agradável aos meus ouvidos que seja o seu discurso e sua firmeza inquestionável de propósitos. Não votaria porque eleição para mim não é brincadeira; mas também porque no fim das contas sua posição é a mais confortável possível. Ela pode ter o discurso que quiser (assim como aquele valentão de subúrbio que atende pelo vulgo de Levy Fidelix) porque sabe que não será obrigada a negociar com as diversas forças da sociedade — forças que fazem de Jair Bolsonaro ou Marco Feliciano representantes do povo tão legítimos quanto Jean Wyllys (ou mais: Bolsonaro teve cerca de três vezes mais votos que Wyllys. E se em 2014 Jean decuplicou sua votação em relação a 2010, Marco Feliciano dobrou a sua, e ainda teve mais do dobro dos votos do seu nêmesis. Ou seja: por menos que a gente goste, o povo brasileiro gosta mais de Marco Feliciano do que de Jean Wyllys, e sua voz também precisa ser ouvida. Se você não gosta disso, vamos falar sobre armas e células e guerrilha. Eu topo).

Por menos que gostemos, qualquer governo vai fatalmente ter que negociar. É claro que é possível avançar mais — e eu me juntaria ao coro daqueles que dizem que o Governo Dilma foi tímido, que poderia ter avançado mais, até que deu uma guinada para a direita. Acontece que hoje a disputa não era entre esse projeto e um mais progressista, como o de Luciana Genro: era entre esse, que bem ou mal ainda representa avanços e realizou, sim, a maior revolução social da história deste país, e um que significaria um dos maiores retrocessos que esse país poderia atravessar.

Numa disputa acirrada como foi essa, na minha humílima opinião a abstenção significa tão somente um ato de covardia e colocar o país em um risco imensurável. E talvez por isso, uma das coisas que mais me impressionaram positivamente foi perceber que, entre a classe média que não se rendeu ao canto alcaloide dos tucanos, a maior parte dos votos em Dilma não era de pessoas com interesses diretos no governo — com benesses, cargos ou quetais que queriam preservar. Além do voto legítimo do pobre ou nova classe média que hoje come e compra calça jeans, muitos dos que votaram em Dilma fizeram isso para preservar benefícios que melhoraram as vidas dos outros, como o Bolsa Família.

O mais engraçado é que algumas vezes tive um tiquinho de vontade que Aécio se elegesse. Primeiro porque seria justamente essa classe média que votou nele, e que se beneficiou imensamente com os governos Lula e Dilma, a sua primeira vítima – conquistas como o Bolsa Família, por serem lei, seriam mais difíceis de derrubar. E depois porque aí eu retomaria este blog apenas para poder escrever posts de oposição.

É sempre fácil ser oposição. É a posição mais cômoda, porque você precisa apenas apontar o que está errado — e em um regime democrático nada está totalmente certo. Você pode ter os mais puros ideais, não precisará firmar compromissos nem entender que política é sempre negociação, mesmo na Coréia do Norte. É muito bom ser vestal, porque seu discurso será sempre correto, porque ninguém poderá lhe questionar. É a satisfação ilusória da pureza inexistente.

Infelizmente, avanços como os dos últimos 12 anos não foram feitos com esse tipo de postura. Foram feitos colocando a mão na massa, com compromissos, negociações, negaceios e guinadas. Com idas e vindas — muitos dos quais pouco recomendáveis, mas necessários. Isso é política. Só para lembrar, Luciana Genro, Eymael, Eduardo Jorge e Rui Costa Pimenta teriam que fazer isso, se eleitos.

Por isso essa decepção com a minha timeline. Por ver que tanta gente foi incapaz de entender — ou, se entendeu, dar as costas assim mesmo — que no segundo turno o que estava em jogo não eram os ideais mais altos da política como se entende nos bares em torno das universidades, mas a possibilidade concreta de uma série de avanços sociais e econômicos sofrerem um retrocesso importante. Essa é a grande característica de eleições revogatórias como essa pela qual passamos.

Política é isso. Alguém disse que era a arte do possível, e estava muito próximo da verdade. Essa parte da esquerda que vejo cá no Facebook parece ter esquecido isso, entrado num loop infinito das opiniões dos pequenos guetos que se retroalimentam e validam suas escolhas. É uma pena.

Mas que se dane. São oito da noite, eu já bebi quase duas garrafas de vinho e Dilma ganhou. Acho que tive um papel pequenininho nessa vitória. E isso para mim é o bastante.