Daniel Boone

Entre as coisas boas da quarentena está assistir a episódios de “Daniel Boone” com a minha mãe.

Não apenas por passar esse tempo vendo a véia adivinhar os finais dos filmes. Mas porque assistir a “Daniel Boone” é sempre um prazer enorme, que raramente pode ser compartilhado.

Durante anos fui a única pessoa que se lembrava de alguns seriados antigos, como “Daniel Boone” e “Joe, o Fugitivo”. A internet veio me mostrar que eu não estava sozinho. Escrevi sobre o seriado uma ou duas vezes aqui, e esses são daqueles posts que receberam, ao longo dos anos, centenas de comentários, cada um deles provando novamente que durante muitos anos estive errado, eu não era o único a lembrar.

Rever os episódios agora — dublados, óbvio, porque não existe “Daniel Boone” sem a dublagem da AIC, não para mim — me faz lembrar que, em 1979, a TV Aratu exibia o seriado a partir das 11:45. Eu voltava da escola ansioso para assisti-los. Durante mais de um ano, uma eternidade quando se tem 8 anos, assisti a todos os episódios que pude do seriado, inclusive da tal primeira temporada que dizem nunca ter sido reexibida no Brasil depois dos anos 60, o que apenas mostra que quem escreveu isso não entendia como as TVs funcionavam antes das antenas de satélite se espalharem pelo país.

Ultimamente tenho pensado no quanto esse seriado me influenciou na época. Difícil saber. O que sei é que durante anos eu quis ter um chapéu de raccoon. Na verdade ainda quero, a única diferença é que não sairia à rua com ele. Lembrei também que, com meus revólveres e espingarda de espoleta, varri da Barra os casacas vermelhas (você já viu um soldado inglês com túnica vermelha e mosquete na Barra? Pois é, eu fiz um bom trabalho). Meses mais tarde, ganhei uma faca de caça e uma bússola, e explorei os areais e arbustos de Itapuã como se estivesse me escondendo de shawnees. Os areais não existem mais, foram soterrados pela especulação imobiliária. A criança também não existe mais, ou está escondida esperando dias melhores para voltar.

O tempo passou e vieram outros seriados. Mas olhando para trás, com a falsa sabedoria que os anos me deram, acho que nenhum foi tão importante quanto “Daniel Boone”. Não que eu conheça bem o mundo dos seriados mais modernos, com umas poucas exceções; mas tenho a impressão de que, mesmo se conhecesse, não faria diferença. Não existem mais seriados como aquele: feitos para toda a família, seguindo uma série de normas e tabus e o que jovens rebeldes chamariam de hipocrisia, enquanto vendem valores tão paradoxais quanto honra, honestidade e altruísmo de um lado, e do outro a justificativa da invasão e roubo das terras dos índios; aliás, nem mesmo índios existem mais, inventaram uns substitutos para eles chamados nativos americanos. Por tanta coisa, por tanta água passada debaixo da ponte, um seriado como esse seria inviável hoje em dia, ao não condenar peremptoriamente a expansão inglesa no território americano, ao não incluir a devida proporção de negros e gays, ao não inventar mulheres protagonistas em outro tempo histórico, porque o diálogo a ser feito é com dias bem diferentes.

Pois é, ultimamente tenho pensado nessas coisas.

Assistir a esses episódios me faz lembrar também que, para mim, o YouTube é a grande maravilha da internet. Essa invenção dos diabos, essa tal de internet deu ao mundo coisas ruins e deletérias como o Facebook e o Twitter e é a causa de um mal-estar civilizatório geral, e vai demorar muito tempo até a humanidade conseguir usar essas ferramentas de maneira minimamente racional. Mas deu também o YouTube. Eu não paro de me impressionar com o acervo que as pessoas disponibilizam nele. É a melhor coisa a assistir num aparelho de TV hoje, muito melhor que qualquer Netflix na vida. Nos últimos anos, assisti a coisas inimagináveis: seriados que assisti há décadas, desenhos de que já não lembrava, capítulos finais de novelas que 40 anos atrás eu odiava, comerciais inesquecíveis, tutoriais de quase tudo.

Uns anos atrás, em Miami, assisti num desses canais de TV aberta a um episódio de “Ilha da Fantasia” que tinha visto em 1980, e que tinha me ensinado que havia existido uma sujeita chamada Mata Hari. Foi uma surpresa agradável. Mas o fato é que no mundo analógico e unidirecional em que cresci e do qual nunca saí completamente, demorou 34 anos para ver aquilo de novo, e mesmo assim por acaso. Isso me lembra que cresci numa época em que momentos como esse eram raros e, talvez por isso, mágicos. O YouTube torna isso quase normal, fácil, realiza o sonho de criança de muita gente — ao mesmo tempo em que tira quase toda a sua importância.

Venho de um tempo em que essa universalidade da oferta não existia. Se você perdesse um episódio do seu seriado favorito, um capítulo de sua novela predileta, dificilmente poderia assistir a ele em outra ocasião. Isso acabou, mas eu sou um filho do meu tempo, e assim me dou ao direito de me maravilhar a cada edição do Globo Rural que assisto no Globoplay. E a cada episódio de “Daniel Boone” que alguém disponibiliza no YouTube.

Assistir a “Daniel Boone” e aos aforismos pseudo-índios de Mingo me faz lembrar também que escrevi aqueles posts há 15, 10 anos. De lá para cá, tanta coisa mudou. Fess Parker morreu, até a Patricia Blair morreu. Incrivelmente, além do Darby Hinton e da Veronica Cartwright, mais jovens, está vivo Ed Ames — embora não por muito tempo, aparentemente. Mais um indício mal-vindo de que o tempo passou. A mulher de cabelos de fogo como a palha do milho que eu cobiçava na flor dos meus 8 anos morreu em 2013, aos 80. O homem que certamente foi um modelo para mim morreu antes e ainda mais velho. Isso me faz ter consciência de que o tempo está passando. E me faz lembrar de coisas não tão boas.

“Daniel Boone” é referência para parte da minha geração e da geração anterior à minha. Gente que viu o seriado como hoje assistem a Walking Dead, às vezes como “televizinho”, na maior parte das vezes em TVs preto e branco. Fazem parte de um tempo que, a cada nova descoberta, a cada nova tecnologia, parece mais e mais distante, até pré-histórico.

Essas pessoas, assim como eu, hoje têm mais tempo para trás do que pela frente. Elas vão desaparecer, pouco a pouco. E é aí que toda essa tecnologia nova, que me permite o resgate de algo tão velho, se mostra anacrônico, quase patético. É possível que todo esse material que colocaram na internet sobreviva, que continue aí enquanto o coronavírus não nos mata a todos. Mas breve não vai ter mais função, porque as pessoas não estarão mais interessadas em “Daniel Boone” ou “Sítio do Picapau Amarelo” ou “Túnel do Tempo”.

Talvez essa seja uma das razões por que, nesta quarentena meia boca, eu goste tanto de assistir a “Daniel Boone” com minha mãe. Porque por 50 minutos voltamos 40 anos no tempo, e assistimos a um tipo de filme que não se faz mais, e isso congela o tempo e o faz eterno, imutável.

Numa quarentena, eu não preciso de muito mais que isso.