Depois de ser gentilmente convocado a se retirar de Cuba, Alex viu que estava com problemas sérios. Seu .cu, tão útil até então, não servia para mais nada. Ele não tinha dinheiro para ir embora, não podia pegar um avião, sequer carona em um cruzeiro.
Em compensação, assim que a notícia de que ele tinha sido mandado embora do país começou a circular, dissidentes cubanos viram no Alex sua chance de fugir para Miami. Choveram convites para que o Alex os acompanhasse em suas embarcações improvisadas rumo à Flórida. Miami, para quem não sabe, é o grande sonho dos cubanos. Maior até que para os muambeiros brasileiros de classe média. Com a garantia de que ninguém tentaria segurar o Alex, a sua companhia passou a ser extremamente desejada. Ele era um salvo-conduto para todos.
O Alex demorou a se decidir, mas as crises de abstinência dos mata-ratos de 8 centavos o pressionaram. Finalmente aceitou a oferta do santero que o havia traído: o macumbeiro tinha caído em desgraça ante o regime por não conseguir encontrar um chupador de pés para salvar Fidel Castro que, coitado, agonizava enquanto babava o seu charuto de maconha.
Ao chegar à praia, Alex ficou impressionado com o barco improvisado pelo santero. Era um velho Studebaker 1956 sobre câmaras de ar de pneus de caminhão, que garantiriam sua flutuação. Como vela, uma colcha vermelha bordada com a cara do Che. E um pequeno motor, que antigamente movia uma máquina de caldo de cana.
Além deles, outras 14 pessoas seguiriam naquele barco rumo ao sonho americano e ao sub-emprego cucaracho.
Milhares de cubanos, que já conheciam a fama de Alejandro Cruz y Almeida, El Boquita de Oro, se amontoavam na praia. Queriam se despedir da lenda boqueteira. Brandiam bandeirinhas vermelhas com o rosto de Che. Até mesmo o negão que protagonizou com o Alex o mal-entendido do primeiro e-mail apareceu: “¡Alex, deja tu .cu conmigo!”; mas o .cu do Alex já tinha sido confiscado pelas autoridades, estava gasto, não prestava para mais nada.
Os exilados já se afastavam da praia quando Raúl Castro apareceu correndo, botando os bofes para fora. “¡Joder! Que me esperen por favor! ¡Dejen que yo me vaya con ustedes!”
Os fugitivos ficaram com medo e pararam.
“Acaso no sabeis que há pasado. Fidel está muy mejor, así, de golpe. Allaran a una jinetera, una amiga del Alex, que le chupo los pies con mucho gusto. Así que cuando se puso mejor, lo primer que hizo ha sido mandar a matar la desdichada de mi mujer. Pobrecita, Vilma. Pero no pasa nada, ella estaba toda estropeada. Entonces que Fidel me ha dicho: ‘¿Sabes porque te vas a ser siempre el segundo, come mierda? Porque no tienes cojonnes para hacer lo que debe ser hecho. No tienes cojones, puto cabrón. Yo si, te teria matado, acaso estuvieras tal como yo, en la cama. Pero no mataste, ahora te toca a ti irte de Cuba como en 24 horas, o entonces te mandaré al paredón.’ ¡Por favor, ayudenme!”
Havia algo de generoso, de altruísta naquele grupo de dissidentes maltrapilhos. Aquele era o homem que os havia perseguido; mas deram a mão a ele.
“Tienes um charuto?”, perguntou o Raúl.
Ao ouvir essas palavras o Alex surtou. Fazia dois dias que não fumava os estoura-peitos de 8 centavos. Avançou para quebrar a cara do Raúl.
“¡Hijo, no hagas eso!”
“Tu hijo um carajo, viadón! Segundón! Segundón!”
O barco, obra-prima da engenharia americana d’antanho combinada à criatividade cubana d’agora, zarpou. A previsão meteorológica para aqueles dias anunciava tempo bom, quase uma calmaria cabraliana. Mas no fim da tarde daquele primeiro dia um furacão se abateu sobre eles como um soneto de Vinícius: de repente, não mais que de repente. Era o Katrina, com saudades do Alex. A colcha bordada com a cara do Che saiu voando em direção a Cuba. Os passageiros se seguraram como puderam. E tão rápido quanto chegou, Katrina se afastou, moça volúvel e intensa.
O barco estava à deriva.
Dois, três dias se passaram. O fantasma de Cabrera Infante começou a aparecer para o Alex. O último taco foi dividido por 17 pessoas. A morte lenta se aproximava.
Talvez nem tão lenta assim. No horizonte apareceu um barco da Marinha cubana. Os exilados se apavoraram. “Vamos morrer!”, gritaram — como se o prognóstico anterior fosse melhor. O barco se aproximou e, em um megafone, um policial costeiro avisou:
“Hemos venido coger a Raúl Castro. Fidel le ha perdonado.”
“¿Que va a pasar a los demás? ¿Nos llevarán hasta Miami? Volver a Cuba todavia nos parece mejor que volvernos comida de tiburones.”
“Ustedes a la mierda.”
E foram embora. O Alex, desesperado, tentou uma última cartada: “Papá! Papá Raúl! No mi esquieça! Yo soy tu hijo, lembra? Yo te amo, papazito Raúl!” Do barco, coberto por um cobertor vermelho bordado com a cara do Che e fumando um Romeo y Julieta, Raúl não falou nada. Mas deu uma banana para o Alex.
A calmaria se prolongou por dias. Sem saber onde estavam, os exilados começaram a delirar. Dois se mataram a mordidas, um achando que o outro era um frango assado. Outro se jogou no mar para pegar um peixe e foi comido pelos tubarões. O Alex já não via o fantasma do Cabrera Infante; agora era o Pedro Juan Gutierrez, que lhe aparecia à noite e dizia palavrões ao seu ouvido.
Na sétima noite, esgotados, todos dormiram. Menos o santero. Ele resolveu pedir as boas graças dos orixás e começou a fazer um despacho no barco. Mas não tinha bode, não tinha galinha, não tinha sequer mungunzá para oferecer a Oxalá; então acendeu uma vela.
O Alex não sabe direito, mas parece que a vela caiu e furou uma das bóias de câmara de ar de caminhão. Com o peso excessivo, outra estourou, iniciando uma reação em cadeia; e o velho Studebaker 1956 começou a afundar.
De início o Alex se segurou em um exemplar de “O Estado e a Revolução”, de Lênin; o Ladrão Boliviano usou “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, de Engels; o santero boiava e rezava para Iemanjá. As correntes foram afastando uns dos outros, e quando o Alex se deu conta, perto dele só estava o Ladrão Boliviano.
O Alex não se entregaria. E começou a nadar em direção ao oeste, seguido pelo seu amigo de Guantánamo.
Foi quando um tubarão arrancou as pernas do Ladrão Boliviano. Mesmo assim ele continuou nadando em direção à liberdade. Veio outro tubarão e arrancou os braços do coitado, que a partir daquele momento jamais voltaria a bater carteiras. Levaria o braço à testa, se braço ainda houvesse, e disse:
“Vete Alex, salvate! ¡Me muero! No mires hacia trás. ¡Pero vertas una lagrimita por mi cuando mirar a un niño golfo robando a una viejita!” E começou a afundar.
Mas o Alex não deixaria o Ladrão Boliviano. Outro deixaria, tentaria se salvar. Mas não o Alex. Nunca. Tantas lembranças das noites passadas em Guantánamo. E por isso, mesmo sabendo que ainda havia milhas a vencer, que a jornada seria árdua e quase impossível, ele foi forte: “Se segura em mí, amigo, y yo te levaré à libertad!”.
O Alex nadou. Nadou além de suas últimas forças com os tubarões atrás, atiçados pelo sangue na água. Estava prestes a desistir, já tinha abandonado as esperanças de voltar a ver o Oliver, quando viu a costa. E de algum lugar, talvez das lembranças dos pés chupados ao longo de 30 anos, conseguiu forças para salvar a si e ao Ladrão Boliviano.
Chegaram à praia.
O Alex, extenuado, disse: “Guapo, estoy fodido”. O Ladrão Boliviano começou a chorar. “Desculpame, Alex, pero no habia outra manera de cogerte.”
O Alex não ligou. Olhou em volta para ver onde estavam: umas cabanas de pescadores, apenas. “Nossa, Miami é uma bosta”, pensou. Já se preparava para desmaiar de cansaço quando viu policiais mexicanos se aproximando. Eles estavam no México. Seriam salvos. Mas sabia que desde que o Fox virou presidente os mexicanos olham enviesado para os cubanos. Então fez um apelo: “Yo soy brasileño!”, para garantir que não seria mandado de volta para Havana.
Os policiais mexicanos começaram a chutar a cara do Alex. “Brasileño de mierda, no les queremos aqui! ¡Desgraciados! Ustedes vienen y quitan todos los trabajos de nuestros inmigrantes ilegales. Por su culpa, miles de mexicanos no pueden ser busboys en EUA y llevan una vida de miséria aqui. Brasileños jodidos. No saben nada de lo que tenemos que pasar por su culpa. ¡Necesitamos el dinero norte americano, hijos de puta!”
Foi quando um deles reconheceu: “¡Callate! Que estás hablando con el Boquita de Oro!” A fama do Alex já tinha atravessado o golfo e chegado à terra da tortilla. E então os policiais fizeram fila e deram os pés para o Alex lamber.
Com os beiços inchados e ensangüentados, o Alex caiu de boca nos pés calejados dos policiais ali mesmo, na praia, sob o murmurejar suave das ondas.
Sangue, areia e chulé. O Alex nunca tinha feito algo parecido, e aquelas sensações novas invadiram o seu corpo. Ele se sentia Tyrone Power cortejando Rita Hayworth, ou vice-versa, e ficou excitado. Os mexicanos notaram o aumento do volume nas calças do Alex e, incomodados, deram-lhe um chute no saco e uma coronhada na cabeça. Mas o Alex estava enlouquecido; e chupava seus pés com a fúria e o abandono dos amantes que sabem que aquela é a última vez. Ele sabia que ia morrer, e agradecia aos deuses dos pés pela morte linda que lhe fora concedida.
Mas chegou a hora de colocar nesta história um deus ex-machina, que deveria ter aparecido no e-mail anterior mas faltou porque tinha dançado salsa até amanhecer. Agentes da polícia secreta cubana (os originais, aqueles com uma vasta pentelheira) chegaram e mataram os policiais mexicanos. Alex Castro não podia morrer ao fugir de Cuba. Seria má propaganda para o regime. Os sujeitos pegaram o Alex e o Ladrão Boliviano, levaram-nos para um hotel vagabundo em Monterrey e desapareceram, que um deus ex-machina não pode ficar no mesmo lugar por muito tempo.
Bem, é isso. O e-mail do Alex termina aí. Ele está no México, e está bem. Volta para o Brasil em poucos dias. Disse que o Ladrão Boliviano está se recuperando, e pretende ficar em Mérida: já recebeu uma proposta de emprego em um campeonato anual de arremesso de anões — foi criada uma categoria especial para ele, a categoria “cotocos”. Mas chora sempre que lembra que breve chegará o dia em que terá que se separar do seu amigo brasileiro. O Alex também ouviu falar da jinetera. Depois de lamber o pé monstruoso e salvar a vida de Fidel, ela agora está por cima da carne seca. Não bate mais calçada, e sua grande diversão é sair à noite pelas ruas de Cuba em seu novo Packard 1948 e cuspir na cabeça das outras jineteras. Quanto ao santero que o dedurou, conseguiu se salvar apesar de Iemanjá tê-lo mandado à merda; hoje é pastor da Universal, e segundo as más línguas do Malecón — que ainda é conhecido por Maricón, graças ao Alex — é servido todas as noites por aquele grupo de presos que tentou currar o nosso herói. É um homem feliz. E o Raúl, o pai putativo do Alex, continua presente às solenidades oficiais, sempre dois passos atrás de Fidel, cuja morte espera com um misto de ansiedade e tristeza.
As pessoas em Cuba, nas noites quentes de verão, sentam na amurada diante da praia de Varadero e lembram os bons tempos de Alejandro Cruz y Almeida, El Boquita de Oro. Contam histórias que presenciaram e histórias de que apenas ouviram falar. A lenda cresce a cada dia, fica mais rica, peripatética, e detalhes são criados a cada nova noite em que, com seus charutos de um peso, os cubanos se reúnem para rememorar a espantosa saga de Alex. Todos hoje conhecem as histórias do grande Alejandro, como conhecem o navegar intrépido do Granma; o seu duelo com Fidel, a forma como nadou até Miami com cinco aleijados engatados em seu rabo, o dia em que chupou os pés de 5 mil pessoas em uma hora, a rebelião que comandou em Sierra Maestra, o modo como renegou seu pai Raúl Castro e adotou um novo nome para lutar pelo socialismo. Nos terreiros de santería derramam rum para Alejandro antes de Exu; e falam do seu .cu mágico. Uns dizem que ele desapareceu no ar, durante o legendário duelo com Fidel, mas que voltará à frente de um exército de chupadores de pé quando chegar a hora de levar Cuba de volta ao socialismo. Alejandro Cruz y Almeida é hoje um herói nacional, como o Che foi um dia. Cuba hoje está coberta de colchas vermelhas bordadas com a cara do Alex; ele trouxe de volta o espírito da revolução, quando bandeiras rubro-negras tremulavam em cada casa, comemorando a conquista da dignidade. Estão pensando até em mudar o nome da Biblioteca José Martí para Biblioteca Nacional Alequito Boca de Oro. Assim que Fidel morrer.
Mas para mim, que contei a sua história tal como me foi relatada por ele mesmo — sem aumentar ou diminuir, que licença poética é dispensada por tão bela e educativa história —, não sobrou nada. O filho da puta não trouxe mesmo a porra do meu Cohiba.
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Republicado em 30 de agosto de 2010