Sobre música datada

Serge pergunta:

Qualquer sucesso dos Beatles parece uma música que poderia ter sido composta ontem, ou seja, não é datada, enquanto quando ouvimos os sucessos do Elvis, é sempre bom, mas parece coisa do passado. As da década de setenta, paradoxalmente, estão ainda mais datadas que as da década de cinquenta. A que voce acha que se deve isso?

A resposta é simples, e está contida no post anterior.

Porque os Beatles codificaram essa linguagem musical, como Napoleão fez com o Código Civil francês.

Não acho que isso se deva unicamente à sua qualidade intrínseca. Independente dela, essa codificação se deve principalmente a uma convenção, à conjunção perfeita entre os astros. O mundo decidiu, em algum momento, que os Beatles eram o padrão musical a ser seguido, o marco inicial da música que se faria depois.

Eles pegaram aquela música gestada em campos de algodão e acrescentaram a ela a tradição de séculos da música popular europeia, de Bach (que está na base da progressão de acordes de Blackbird, por exemplo) ao vaudeville inglês. Esse talvez seja o seu grande diferencial musical.

Toda a música pop ocidental deriva daí. Talvez não haja comparação possível, por exemplo, entre o Led Zeppelin e os Beatles. Mas o que o Zep, ou qualquer outra banda, fazia tinha no horizonte a música que os Beatles estavam fazendo ou fizeram antes. Podia ser vista como um ponto de partida, um ponto a ser evitado, ou alvo de um esforço deliberado para ignorar, podia ser qualquer coisa: mas era impossível não reconhecer a sombra massiva dos quatro cabeludos de Liverpool.

É a mesma razão pela qual as músicas de Elvis the Pelvis soam menos datadas hoje do que as de Elvis the Putz. Em 1956, Elvis definiu o padrão comercial daquela música que vinha sendo gestada por uma infinidade de artistas, ao miscigenar definitivamente o rhythm and blues e o country and western. Os Beatles não existiriam, literal ou figurativamente, sem Elvis. Em 1972, Elvis já não tinha nenhuma relevância musical havia mais de uma década, e sua música não trazia absolutamente nada de novo. Claro que no período que se seguiu à sua volta da Alemanha Elvis apresentou algumas belas canções, como Suspicious Minds — mas agora havia uma diferença crucial, ele tinha deixado marcar o passo da caminhada, e todas elas, sem nenhuma exceção, vinham a reboque do som que que se fazia na época.

É também a razão pela qual o Kind of Blue, de Miles Davis, parece ter sido lançado ontem (e o Bitches Brew, não).

No caso dos Fab Four, há outros elementos. Em primeiro lugar, os Beatles tinham uma dupla de compositores excepcional. Não apenas pela genialidade musical, mas pela sua dedicação e habilidade como artesãos.

Lennon e McCartney tinham ojeriza ao clichê musical. Estavam sempre em busca de algo novo, diferente. E mesmo quando usavam sequências conhecidas de acordes, algo difícil de evitar dentro da linguagem musical do rock, faziam isso sob uma melodia que trazia algo de permanente e inovador.

A primazia da canção ajudava. Diferente de outras bandas, em que as canções costumam se ajustar ou ser reflexo claro das características de seus integrantes, nos Beatles acontecia o contrário. Eles davam a cada canção o que ela precisava — Yesterday não precisa de nada mais que violão e um quarteto de cordas? Vão ali tomar um chá, John, George e Ringo. Cada canção era maior que a banda.

Sempre defendi que a música dos Beatles é revolucionária desde o início. Mas outras bandas inovadoras se acomodaram com o primeiro impacto, com o seu próprio jeito de fazer música, e nunca passaram disso — provavelmente porque isso era tudo o que tinham, e não é pouco. Ao contrário, os Beatles estavam constantemente tentando evoluir, ir além do que já tinham conseguido. No fundo, eles competiam com eles mesmos.

E é bom não esquecer que a maior banda de todos os tempos era, antes de tudo, um grande conjunto. Eram todos grandes instrumentistas, sem exceção. Alcançaram um nível de interação e harmonia musical entre seus membros sem paralelo em sua geração. Ficava mais fácil fazer da contribuição de cada membro algo individual, claro, mas também em perfeita harmonia com as outras.

Se alguém parar para ouvir Don’t Bother Me, a primeira composição de George Harrison a ser gravada pela banda, vai perceber isso claramente. A estrutura da canção obedece a um padrão simples, descendo de Bm a Em. Mas é no refrão que ela registra o tempo exato de sua composição: não pode haver nada mais Swinging London do que a sequência de Em e A tocada na guitarra — não, é mentira, aquele C e Em de Goldfinger é ainda mais típico. E no entanto, a maneira como a banda toca a música (principalmente o baixo fantástico de McCartney) dá a ela uma dimensão que, sendo outros a tocarem-na, ela jamais poderia alcançar. Os ex-beatles, sem exceção, se ressentiriam da ausência dessa interação durante todas as suas carreiras solo.

A produção também é outro fator importante. Os Beatles tiveram a sorte de cair nas mãos de um grande produtor (e de um excelente engenheiro de som, Norman Smith) que entendia com perfeição o seu papel e as ideias do grupo, e isso ajudou a fazer com que suas gravações soassem diferentes e melhores do que suas contemporâneas.

Mas tudo isso é uma tentativa de explicar o inexplicável. A resposta a essa pergunta é, na verdade, a resposta de um bilhão de dólares. E quem souber, nunca mais vai bater um prego numa estopa para ninguém. Basta pegar quatro cabeludos e montar uma banda.

Réquiem para uma música que morreu

Passei diante de um bar dia desses e de lá dentro ouvi uma banda tocando uma canção do Legião Urbana.

Nada demais. Ou melhor, nada demais se aquela não fosse uma canção com 35 anos de idade.

Essa é a maior prova de que a música pop morreu. Esse é o seu enterro, uma banda tocando “Geração Coca-Cola” em 2020, e aqueles garotos balançando as carcaças ao som de uma canção talvez mais velha que seus pais são a sua second line.

Penso nisso sempre que vejo a meninada ouvindo Beatles como se fosse a última sensação da semana que vem.

Alguns anos atrás, eu estava na fila do show de Paul McCartney em Fortaleza quando olhei em volta e percebi que havia centenas de meninas de 15, 17 anos esperando a abertura dos portões.

Uma garota que tinha feito alguma amizade com minha filha na fila, provavelmente impressionada porque tínhamos adentrado os portões da casa de McCartney em St. John’s Wood alguns dias antes, comentou: “Poxa, eu queria ter um pai assim.”

Ela só não apanhou ali porque eu estava mais preocupado em mijar numa garrafa de água mineral no meio da multidão, e as meninas cumpriam o digno papel de barreirinha.

Porque pouco antes, olhando para a multidão de adolescentes ansiosas para ver um ancião tocar as mesmas músicas que vem tocando há 60 anos, eu só conseguia me perguntar: onde vocês estavam 30 anos atrás? Onde vocês estavam quando eu tinha que me sujeitar a blocos de carnaval em busca da única coisa que me interessava mais que Beatles e Balzac?

Saibam vocês que carnaval é coisa tão ruim e medonha que as pessoas têm que encher a cara para suportar.

Onde vocês estavam quando eu tinha que beber cachaça barata para suportar o batuque irritante e eletrônico daquela música que vinha da terra que me havia parido, enquanto meus olhos se tornavam mais míopes ante a visão tenebrosa das pessoas dançando o fricote e a dança da galinha? Onde vocês estavam quando eu me esgueirava pelo Bar do Bruno, por biroscas inconfessáveis, e calado e com um sorriso bovino ouvia Joana, José Augusto, Roupa Nova, Rosana?

Era uma pergunta retórica, apenas. Eu sabia a resposta. Elas estavam ouvindo a música do seu tempo.

Até então eu me dava por satisfeito por ter chegado aos tempos atuais em idade provecta e não precisar ouvir nem fingir tolerar as barbaridades que hoje passam por música popular. Mas depois daquele momento, quando vejo essa meninada ouvindo essa música tão velha, por melhor que seja, é inevitável pensar em como gostaria que tivessem ouvido quando eu era também adolescente, e lido as coisas que eu lia, e me preservado de descer tão abaixo da minha própria dignidade. Mas para além da minha vida mesquinha e precária, há algo mais grave que isso.

Eu era adolescente e gostava de música de velho, a verdade é essa. Por causa dos Beatles descobri Chuck Berry e Little Richard, e o blues de Chicago, e o jazz de Charlie Parker — na verdade o caminho contrário ao que devia seguir, mas isso é outra história. Em 1985 Beatles tinham acabado havia apenas 15 anos, mas já eram coisa do passado e fora de moda. Já tinham sido até mais, na verdade, mas a morte de Lennon tinha lembrado as pessoas de sua existência e aos poucos seu nome vinha sendo rememorado; além disso, em 1983 houve uma certa comemoração pelos 20 anos de seu primeiro disco — ou era 84 pelas duas décadas de chegada à América, eu não lembro, memória de velho é uma droga.

E era assim que tinha que ser. Porque os Beatles acabaram em 1970 mas a música pop continuou evoluindo. Hard rock, rock progressivo, heavy metal, o punk e a new wave — e do outro lado dos trilhos o funk e o soul, até mesmo a discothèque — e finalmente o rap e o hip-hop, talvez a única coisa realmente forte, verdadeira, que conseguiu enfrentar os anos 90 e 2000, mas que também já se esgotou a ponto de chamarem Kanye West de gênio.

Se você era jovem nos anos 70 e 80, as rádios e as lojas de discos lhe ofereciam a cada dia algo novo, algo que, bom ou ruim, dava um passo à frente em relação à música que você ouvia ontem. No final dos anos 70 e durante a maior parte dos 80, a maior banda da história era uma lembrança e uma referência. Não havia por que lamentar o seu fim, nem mesmo tentar fazer parecer atual o que naquele contexto tinha cumprido seu papel histórico, por mais importante que fosse, e agora era apenas mais uma banda do passado, entre tantas outras e tantos ritmos diferentes. A linguagem que os Beatles tinham criado havia se estabelecido definitivamente, e partir dali milhares de músicos em todo o mundo continuaram a criar algo novo, sem parar.

Algo aconteceu nos anos 90, no entanto: a música pop se esgotou e a internet chegou ao comum dos mortais.

É só olhar para trás e ver que, no campo da música popular, o melhor que aquela década e as seguintes produziram, e continuam produzindo, representava antes de tudo um diálogo com o que veio antes. Oasis nunca passou de sub-Beatles requentado para os anos 90, alimentando-se de tudo o que tinha acontecido naqueles 25 anos. Nirvana é uma apropriação muito própria do punk, e o último suspiro de uma linguagem que tinha esgotado suas possibilidades. O mesmo vale para a MPB, com a diferença de que aqui eram os nomes de sempre tentando fazer o que sempre fizeram enquanto competiam com a revolução do axé music, o pastiche de terceira que é a música sertaneja e a chegada do funk carioca ao resto do país — ou, o que se tornaria praticamente a norma nessa música de “elite”, meninos requentando o que já era velho antes deles nascerem.

E essa é a parte boa. A parte ruim é muito pior do que os mais horripilantes pesadelos de Thomas Edison. À medida que a tecnologia tornou a produção musical acessível a qualquer um, e depois que a internet quebrou o monopólio de distribuição de produtos culturais, abriu-se uma caixa de Pandora que, a cada dia, não cansa de lançar horrores a uma humanidade que não tem mais na música a relação de definição de identidade e comunhão que teve em décadas anteriores. Não é apenas a produção computadorizada, homogeneizante e desumanizadora. Acontece que, bem ou mal, a estrutura de produção e distribuição de produtos culturais fazia uma triagem mínima — havia, afinal, um lado bom na indústria musical. E assim como, tendo nas redes sociais a ferramenta necessária para ignorar a mediação da mídia, o povo elegeu Bolsonaro, ao poder produzir e distribuir música sem intermediários ele gerou essas atrocidades que hoje passam por música e que fazem o mainstream musical de hoje: um mundo que adora Anitta.

Mas os resultados vão muito além da estética.

Durante algumas décadas do século XX, a música unificou e canalizou as ideias de gerações, tornou-se um elo de ligação entre pessoas das mais variadas origens e destinos. Isso acabou, fragmentando-se em produtos direcionados para nichos e que se prestam essencialmente como combustível para pequenos transes hedonistas e efêmeros.

É por isso que aqueles garotos ouvindo Legião Urbana me incomodaram tanto. É muito triste quando uma geração inteira se resigna a aceitar como referencial a música de meio século atrás, porque ficou mais fácil convencê-la disso. Alguém consegue imaginar a juventude dos anos 60 ensaiando uma mudança profunda de costumes e percepções enquanto ouvia a música feita não 30, mas 15 anos antes — ouvindo Frank Sinatra e Glenn Miller? Um doidinho em Hashbury balançando a carcaça em meio a uma miríade de cores de LSD e ao som de Al Jolson?

Eu não. Talvez seja mais uma das tantas deficiências minhas. Não importa. O que sei é que sinto um desânimo profundo ao ver relançamentos de discos dos Beatles entre os mais vendidos. Não significam uma vitória da boa música. Significam, ao contrário, a sua derrota.

A morte do faroeste

Achei por acaso um excelente canal sobre cinema no YouTube. Se chama EntrePlanos e tem uns tantos vídeos muito bons sobre faroeste. Com informação sólida e bons argumentos, ele me pareceu bem acima da média. Outros canais que vi por aí não passam de amontoados de lugares comuns ou bobagens ignorantes e descontextualizadas. O EntrePlanos me lembrou que aqueles que sentem falta da era áurea dos blogs apenas não sabem procurar: os canais do YouTube são os blogs de hoje.

Um vídeo me chamou a atenção. Fala sobre o fim da era dos westerns no cinema. Ele começa fazendo um paralelo entre o domínio dos filmes de super-herói hoje com a era de ouro do faroeste. Particularmente acho uma comparação complicada, até por uma diferença de escala, mas é válida e interessante. A maior parte dos cerca de quinze minutos de vídeo é muito boa — ele traz uma excelente explicação sobre as razões pelas quais os bangue-bangues se tornaram um gênero de sucesso no mercado. Talvez fosse possível acrescentar outro, uma reinterpretação da opinião de André Bazin de que o western era o único gênero que só se pôde realizar completamente no cinema (o que, a propósito, reforça a comparação do EntrePlanos com os filmes de super-heróis neste século).

Mais adiante ele estabelece uma dicotomia equivocada entre faroeste e ficção científica — na verdade, os anos 50 foram o ápice do sci-fi em termos de alcance popular, com uma enormidade de filmes B que faziam a alegria das matinês e vesperais (“Matinê”, de Joe Dante, é uma homenagem a esses filmes, e sobre isso escrevi algo aqui há muitos anos e não vou me alongar.) Também atribui importância demais a “O Portal do Paraíso” na agonia do bangue-bangue; quando o filme de Cimino saiu, o western já estava morto havia tempo, e nem mesmo ele impediu que logo depois alguns faroestes bem-sucedidos, como Silverado e Pale Rider, fossem feitos.

Há um momento, no entanto, do qual discordo absolutamente: quando o canal fala das razões pelas quais o bangue-bangue virtualmente acabou.

Segundo o EntrePlanos, uma nova mentalidade surgiu no final dos anos 60. Ele credita a derrocada dos westerns à mudança no cenário político e cultural. Hippies, protestos contra a guerra do Vietnã, o movimento pelos direitos civis, o questionamento do mito americano. Uma nova geração não mais se sentia à vontade com a representação de índios malvados, mocinhos impolutos, etc.

É uma visão rósea e excessivamente acadêmica. Não é apenas revisionista, mas equivocada.

Para começar pelo menos importante, é claro que o faroeste tradicional estava cada vez mais em desacordo com os tempos. Mas ele vinha mudando. Índios já não eram unicamente retratados como assassinos selvagens havia um bom tempo. Mesmo mexicanos — pense em quantos westerns americanos tradicionais se passam em Sonora, Los Angeles, San Francisco, San Antonio e não trazem sequer um mexicano, nem mesmo aqueles gordinhos vestidos de branco e ostentando um bigodão, subservientes, preguiçosos e frouxos, nem mesmo bandoleros ou señores rancheros — àquela altura vinham aparecendo mais e melhor. Os americanos apenas não conseguiam (e não conseguem até hoje) retratar a importância dos trabalhadores chineses na construção do Oeste americano.

Se fosse essa a razão, bastava mudar o enfoque ideológico e pronto. Mas isso não aconteceu, que me perdoe “O Pequeno Grande Homem”, ou “Meu Ódio Será Tua Herança”, ou tantos outros.

A verdade é que a decadência do faroeste como gênero cinematográfico se deve a dois fatores, e a política não era um deles.

O primeiro foi o simples esgotamento. Pensando bem, os faroestes resistiram tempo demais: os filmes de super-herói têm uns vinte anos e já se esgotaram. Mas nos anos 70, o bangue-bangue já não tinha mais nada de novo a dizer. O spaghetti western não fez muito para reverter a situação. Diante daqueles filmes, um americano se sentia ainda pior que um brasileiro horrorizado diante de um francês tentando lhe mostrar como fazer samba; embora a essência não fosse tão diferente assim — o faroeste sempre foi sobre a conquista da fronteira e os conflitos que vêm daí, e por exemplo os filmes estrelados por Kirk Douglas, quase sempre, traziam personagens ambíguos, quase anti-heróis (em The Last Sunset, por exemplo, ele conscientemente comete incesto) —, havia um mundo de distância estética, e também uma maneira não muito agradável de recontar a história americana mitificada pelo faroeste.

O outro fator, talvez o mais importante, foi a TV.

A principal mudança que a televisão infligiu ao cinema tem origem no fato de que ela passou a oferecer dramaturgia gratuita e confortável a milhões de pessoas, que agora já não precisavam ir ao cinema.

Agora, adivinha o que essas pessoas viam na telinha.

Mesmo antes do acordo entre a Universal e a NBC, através do qual o estúdio jogou boa parte do seu acervo na TV, faroestes já tinham se tornado o esteio da programação televisiva americanas. Desde o fim dos anos 40, quando ela começou a se popularizar, todos os canais apresentavam um volume desproporcional de westerns. “Cisco Kid”, “O Homem de Virgínia”, “O Homem do Rifle”, “Durango Kid”, “Bat Masterson”, “Zorro” (de capa e espada), “Zorro” (The Lone Ranger), “Roy Rogers”, “Bonanza”, “Chaparral”, “Laredo”, “Lancer”, “Big Valley”, “Os Pioneiros” — o número de seriados de faroeste exibidos à exaustão entre as décadas de 50 e 70 é quase impossível de ser contado. Na verdade, era ainda pior do que se pode imaginar: em um tempo em que o satélite não existia, esses seriados não desapareciam da programação quando sua produção era cancelada: sempre havia um estado, uma cidade onde eles seriam novidade, e “Cisco Kid” era exibido logo depois de “Bonanza”. De maneira caótica, mas simultânea, sempre havia um western sendo exibido em alguma TV. Mais de vinte anos de faroestes esquemáticos ao extremo conviviam alegremente e chegavam às casas de milhões de americanos.

O gênero já vinha se esgotando no cinema e encontrou na TV uma sobrevida, até mesmo uma reinvenção. Mas paradoxalmente, essa sobrevida nos lares americanos acelerou ainda mais a sua decadência nas salas de cinema.

Na verdade, ao contrário do que diz o EntrePlanos, o público mais fiel do faroeste não foi tão afetado pela mudança de percepção sobre a Guerra do Vietnã. Ele continuaria o mesmo, vivendo no mesmo meio-oeste, com os mesmos valores que hoje fazem a delícia de organizações como a NRA; em 1972 votaria em Nixon, oito anos depois, em Reagan, e nos anos 80 iria aos cinemas assistir a “Rambo II”, “Rocky IV” e a “Cobra”; mais recentemente votaria em Trump, e continua não gostando de índio, de preto ou de mexicano. Mas algo muito importante tinha mudado: ele já não tinha mais razões para sair de casa e assistir um faroeste. Seus ídolos, como Audie Murphy, John Wayne, James Stewart ou Randolph Scott, estavam velhos ou morrendo. As únicas novidades estavam na TV, e lhe bastavam.

Para eles, o faroeste não morreu. Só mudou de casa.