Disquinho

Descobri dia desses que tenho mais historinhas da Disquinho do que imaginava. Achei na internet, baixei inclusive muitas que não conhecia, e esqueci, porque isso não é mais coisa para ouvir, mas sim para saber que se pode ouvir na hora que quiser.

As histórias da Disquinho são histórias infantis e de ninar clássicas, editadas a partir do início dos anos 60 em compactos sob a direção de João de Barro, pseudônimo de Braguinha.

Todo mundo na faixa dos 50 para cima lembra de pelo menos algumas dessas histórias. E como boa parte delas foi relançada em CD no início dos anos 2000, um bocado de gente na faixa dos 20 lembra também, porque pais e mães insistem em acreditar que seus filhos vão gostar das mesmas bobagens de que eles gostavam em seu tempo, tolos que são.

Para mim, que passei a infância indo dormir com elas recontadas pela minha mãe, essas histórias são especiais. Nunca esqueci de muitas delas: “A História da Baratinha”, “O Soldadinho de Chumbo”, “O Patinho Feio” — não apenas das histórias, mas também de cada canção, das mais tristes (“Vou-me embora pra bem longe/Essa é a triste verdade/Talvez algum dia encontre/A paz e a felicidade”) às mais engraçadas (“Sai daí, sapo danado/Sapo velho cururu/Sapo não vai para o céu/Na viola de urubu/Vou jogar você lá embaixo/(Tá errado, seu doutor)/Desta vez eu te esborracho/(Tá errado, sim senhor)/Mas agora eu te perdoo/Bicho feio da lagoa/Só pra ver no fim da festa/Como é que sapo voa”)

Mais tarde, eu contaria boa parte delas para a minha filha. A preferida era a “História da Baratinha”, porque podia ser aumentada a critério do sono da freguesa.

No original, apenas uns poucos animais passam e assustam a senhora dona Baratinha, que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Mas na labuta de jogar uma criança nos braços de Morfeu nenhum bicho é demais, e então a noite via um desfilar de bichos de todos os quadrantes na porta de dona Baratinha, moça séria que só queria casar. Para isso aprendi que águias crocitam, crocodilos bramem, pardais pipilam, capivaras assoviam.

Percebi também que se você não sabe que som o diabo de um bicho faz, você pode inventar qualquer coisa que uma criança não vai lhe corrigir — mas se ainda lhe resta um pingo de decência nessa alma apodrecida pelo sono, é recomendável aprender para contar certo no dia seguinte.

O tempo é relativo

Encontrei este texto que não publiquei, não faço ideia da razão; acho que porque disse coisas semelhantes em outros textos. Pela referência a Doris Day, é de 2019. E o que me deixou fascinado é que todos os nomes citados no segundo parágrafo morreram nesses três anos.

Quando Kirk Douglas e Olivia de Havilland morrerem — e aos 102 anos de idade, esse dia parece cada vez mais próximo — morre, definitivamente, a Era Dourada do cinema.

Há uma lista maior de sobreviventes, com gente cujos nomes são fáceis de reconhecer e que estreou no cinema na década de 40. Rhonda Fleming, Sidney Poitier, Angela Lansbury, Marsha Hunt, Jane Powell — astros não tão grandes em seu tempo mas que conseguiram a proeza de se afirmar, ao menos em parte e independente do seu talento ou beleza, por terem vivido mais que os outros. Mas esses não contam. Das estrelas, mesmo, aqueles que aproveitaram o melhor que o studio system podia oferecer, restaram apenas aqueles dois. Doris Day, que morreu dia desses, virou estrela justamente no crepúsculo dessa era, nos anos 50, quando a Universal já tinha feito o acordo com a CBS para disponibilizar seus filmes para a TV, e que para mim é o grande marco do fim da era de ouro da velha Hollywood.

Mas isso faz pensar em como o tempo é relativo, bem mais do que eu pensava quando tinha uns 20 anos e ainda não tinha visto tanta coisa e tanta gente passar diante dos meus olhos.

Para mim, o Velho Oeste americano sempre foi algo tão distante quanto os tempos medievais, ou quanto a Revolução Francesa. Basicamente porque havia uma série de símbolos e elementos que faziam parte do meu cotidiano e eram tão comuns quanto o oxigênio que eu respirava, e que não faziam parte do seu: luz elétrica, televisão, automóveis, telefones, asfalto. A própria ideia de fronteira, de conquista de um mundo novo, era uma completa estranha para mim. Ninguém é criança impunemente em Salvador.

Não é difícil entender: para quem tem vinte anos ou menos, basta imaginar um mundo sem telefone celular, sem chaves remotas em automóveis e sem internet. Daí porque Tombstone para mim não tinha absolutamente nada a ver com a Salvador

Mas o Velho Oeste nunca foi tão distante assim. E para mim, os melhores exemplos são Wyatt Earp e Bat Masterson, duas das grandes lendas do oeste.

Earp era um desses sujeitos sempre atrás de uma maneira de ficar rico, muitas vezes lidando com a violência própria daquele tempo e lugar. Seguia o dinheiro e, nas três primeiras décadas deste século, os dólares estavam em Hollywood. Earp foi consultor de filmes, apareceu em The Half-Breed, com Douglas Fairbanks, foi amigo de Tom Mix (o que deu em um filme ruim estrelado por Bruce Willis, Sunset). Masterson terminou seus dias como colunista esportivo num jornal novaiorquino, mais próximo daqueles jornalistas interpretados por Humphrey Bogart do que de Billy the Kid. Tenho a impressão de que alcançaram uma dimensão histórica imerecida simplesmente porque viveram mais tempo e puderam contar suas próprias histórias. Mitificaram miudezas. Quando se pensa em um episódio como o duelo no OK Corral entre os Earp e Doc Holiday contra os Clanton como um dos acontecimentos legendários da história americana, a vontade que dá é mandá-los passar uns dias numa operação policial no Complexo do Alemão. Ou talvez nem precise: Columbine e as tantas chacinas periódicas nos EUA são muito mais importantes do que um tiroteiozinho safado num cudemundo qualquer do Arizona.

Masterson morreu em 1921, Earp em 1926. Isso quer dizer que hipoteticamente minha bisavó, que tinha a idade do século, poderia ter ouvido histórias contadas por eles. E eu, já adulto, poderia ter ouvido dela essas histórias, em primeira mão. É essa possibilidade que encurta a passagem, que cria wormholes e torna qualquer espaço de tempo maior ou menor dependendo do seu ponto de vista.

Cabeça de desocupado é o escritório do diabo, e isso me faz pensar em como o tempo, afinal, não é tão relativo — a começar por pensar nisso, o tipo de coisa em que só se pensa depois que muita água passou por debaixo da ponte. O rio não para de correr, isso é clichê velho. Mas quando o clichê acontece com você, é diferente.

Em 2010 tomei um susto ao ver que 1990 já tinha sido há 20 anos. Não pela passagem do tempo em si, porque já fazia tempo que minhas memórias abrangiam décadas. Mas pela diferença fundamental que aquela data marcava na qualidade dessas memórias.

Durante todos os anos anteriores, quando eu lembrava de mim mesmo 20 anos antes estava lembrando de outra pessoa. Porque uma criança de 7 anos não é o mesmo que um homem de 19. Em todo esse tempo, quando lembrava de mim mesmo eu lembrava de alguém ainda em formação, ainda descobrindo o mundo e seus significados. E eu certamente não via o mundo aos 9 anos como via aos 30.

Mas a partir de 2010, quando voltava 20 anos no tempo, passei a lembrar de um adulto. A mesma droga entra ano e sai ano, pau torto já incorrigível e conformado.

Eu pensava que isso era ruim. O que eu não sabia é que isso podia piorar.

Mais dez anos se passaram e agora é 2000 que foi há quase duas décadas. Coisas que para mim foram ontem na verdade aconteceram há 10, 20 anos. Xingo Kubrick por me fazer acreditar que em 2001 eu estaria tentando desligar o HAL-9000, ou os tantos diretores de filmes B que fizeram ter a esperança de veranear em Andrômeda ou Aldebaran. Eu ainda quero as minhas roupinhas de papel alumínio, cadê elas?

Tudo isso é coisa que as pessoas que nasceram depois do bug do milênio jamais poderão compreender, e é até melhor assim. Eles não tiveram o ano 2000 como a expectativa de um marco fundamental a separar o passado do futuro. Quem já nasceu com o bug do milênio como passado, no entanto, tem uma vantagem: a própria concepção de futuro mudou, e a julgar pelos filmes de ficção científica o futuro é só um presente piorado e muitas vezes distópico; a minha geração e as que me antecederam tiveram direito a alguma esperança.

Penso nisso e solto uma risadinha anasalada de velho.

Dona Canô

Uma entrevista de Maria Bethânia ao Pasquim, agora disponível na hemeroteca da Biblioteca Nacional, traz duas coisas curiosas, que saltam aos olhos.

A primeira é a relutância de Bethânia em fazer elogios ou críticas a Gal Costa — ela insiste em não cair na pressão dos jornalistas e se limita a dizer que Gal é uma cantora “moderna”. Eram outros tempos, mais de cinquenta anos atrás, e o que se depreende disso é que Bethânia via Gal como uma concorrente, num tempo em que nenhuma das duas ainda tinha se firmado como um grande nome da música mercado. E, dependendo do olhar sobre a sua atitude e o próprio significado da palavra “moderna”, conclui-se também que Bethânia não era particularmente fã do estilo de Gal, talvez até se julgando superior em estilo e em repertório.

A outra coisa, e essa é mais interessante, é a importância de seu pai no imaginário e nas relações de hierarquia da família.

Dona Canô já entrou para a história como a grande matriarca dos Velloso, a figura central da família. A impressão que se tem hoje — me corrija se eu estiver errado — é que aquela família existia em função da grande senhora, que ela era assumia o papel de líder da casa, o esteio sobre o qual se instituiu uma família com importância incomparável na evolução da cultura nacional.

Não é o que se vê na entrevista. Ali está claro que a família girava em torno do pai, ele era o grande referencial da família. É dele que Bethânia fala, não é da mãe.

Mas ele morreria logo e, dos anos 70 em diante, quando os Velloso de Santo Amaro da Purificação ganharam o país e o mundo, Dona Canô se tornou a grande matriarca da família, e essa é a versão que vai ser contada.

Moral: a História se constrói do fim para o começo.

Os que vestem as cuecas por cima das calças

Faz 12 anos que deixei, de uma vez por todas, de comprar revistinhas de super-heróis.

Já tinha deixado antes, várias vezes. Das primeiras por falta de dinheiro, depois porque passava por ciclos de desinteresse e cansaço.

Ainda assim, acompanhei essas revistas com alguma regularidade durante umas três décadas, mesmo que pulando alguns períodos de quando em vez. Quando comecei a ler as danadas, no início dos anos 80, elas apresentavam basicamente as histórias do começo dos anos 70, boa parte das quais já publicadas pela EBAL e RGE. Foi a melhor fase do Capitão América — meu primeiro super-herói —, e o início de uma das mais chatas do Homem-Aranha. Stan Lee ainda escrevia muita coisa e era tudo muito repetitivo: o Capitão-América se sentia deslocado no mundo e tinha problemas com a namorada. O Homem Aranha se sentia deslocado no mundo e tinha problemas com a namorada.

Para uma criança de dez anos, era um mundo atraente e com o qual ela podia facilmente se identificar. Larguei aí pelos 13.

Mais tarde, acompanhei a revolução iniciada por “O Cavaleiro das Trevas” e aquelas que se seguiram: Watchmen (a série em quadrinhos mais superestimada da história), “A Piada Mortal”, “Asilo Arkham”, umas tantas por aí — sem falar no Spirit de Will Eisner — e voltei a comprar as revistas mensais.

Mas isso durou pouco tempo. Em 1992 a necessidade de cativar novos leitores fez com que os quadrinhos descambassem por caminhos estranhos. Para mim, o começo do fim se deu com a morte do Super-Homem. Descobriram uma fórmula mágica para conseguir um aumento expressivo de vendas por algum tempo, e dali em diante todos os super-heróis morreriam corriqueiramente, real ou figuradamente.

A gota d’água foi quando substituíram o Peter Parker pelo seu clone, numa história impossível para quem tinha lido as histórias originais. Parei de ler as revistas nesse momento, e voltei quando a Abril lançou aquelas edições premium caríssimas. Logo depois a Abril perdeu a Marvel e desistiu da DC, e eu desisti também.

Algum tempo depois voltei a comprar as revistas do Batman, porque ele vinha sendo bem tocado. O Homem-Aranha, por sua vez, tinha umas fases razoáveis e outras muito ruins, porque se tornou um personagem convoluto demais, com reviravoltas inacreditáveis demais; mas também voltei a comprar suas revistas algum tempo depois.

Parecia namoro de adolescente, com vaivéns constantes até que se cansa de uma vez. Deixei de comprar as revistinhas definitivamente em 2012, quando me irritei com problemas de distribuição das últimas que ainda comprava — “Batman”, “Homem-Aranha” e “Vertigo” — e acedi ao cansaço que elas já me causavam há algum tempo. Adeus, passem bem.

De lá para cá, de vez em quando batia uma certa saudade das revistinhas de super-herói. Chegava numa banca e me espantava com a abundância delas, títulos e mais títulos que me faziam perguntar onde é que arranjam tantos compradores, afinal. Não faço ideia dos números de circulação; imagino que não se comparam a seu auge na Abril. Mas dia desses percebi que, quarenta anos atrás, havia muito mais personagens à disposição. Cada revista trazia três, quatro personagens diferentes, uma fórmula simples da Abril que tornava suas revistas mais interessantes que as originais americanas. Passei a achar que não estão lendo mais histórias do que eu lia. Apenas estão pagando mais por elas.

Mas de uns dois meses para cá resolvi baixar algumas revistas na internet. Alguns malucos reúnem os lançamentos de cada semana nos Estados Unidos e os disponibilizam nos torrents da vida.

E são coisas tão estranhas para este ancião.

À primeira vista, são mudanças demais. As revistas do Aranha estão ainda mais chatas e confusas para mim. Universos demais para quem não consegue lidar sequer com um. Mary Jane Watson está casada com outro sujeito? Otto Octavius virou o Homem-Aranha? É complicação em excesso, e algo que me parece uma bagunça dos alicerces originais sobre os quais se construíram esses personagens. É como os X-Men tivessem contaminado todo o universo Marvel, e ele não ficou melhor por isso. O Batman me parece um pouco melhor, porque seu filho é um personagem bem interessante e atualiza a dinâmica da dupla dinâmica, se perdoam isso que acabei de escrever.

É claro que sei que aqueles que acompanham essas revistas devem pensar diferente de mim. Que tudo para eles faz sentido, e suas sensibilidades são diferentes da minha. Pode ser, estou pouco me lixando. A verdade é que não consigo mais ler essas revistas. Passo os olhos, leio apenas algumas partes de cada uma delas.

Percebi que super-heróis já não me interessam, de nenhuma forma. Mas ainda me interesso por Bruce Wayne, Peter Parker, Steve Rogers.

É assim que leio essas revistinhas hoje, sempre que lembro de baixá-las: pulando as partes em que seres improváveis combatem o mal dando murros e pontapés, como faziam para as crianças de quase 100 anos atrás, e tentando acompanhar a vida privada de personagens fictícios que conheço há décadas demais para contar. O que transformou os super-heróis nos quadrinhos em algo um pouco mais que entretenimento para crianças, a ser abandonado a partir da primeira mão num peitinho, foi justamente a percepção que ainda mais importante que os poderes ou as peripécias ou a simples porradaria de sujeitos vestidos de maneira improvável eram os problemas do cotidiano que suas identidades civis poderiam ter. Foi essa a grande revolução que a Marvel protagonizou no início dos anos 60. Era Peter Parker, estúpido.