Deixa estar

No primeiro quarto de século depois do fim dos Beatles, apenas um disco inédito (sem contar o Let it Be, um álbum póstumo, de certa forma) foi lançado pela EMI/Apple: o Live at the Hollywood Bowl, em 1977.

De repente, em 1994, a Apple decidiu abrir seus arquivos. A partir daí foram lançados o Live at the BBC, o projeto Anthology, e finalmente o pior de todos, o Let it Be… Naked. Relançaram também em DVD ou nos cinemas a maioria dos filmes da banda, como A Hard Day’s Night, Help!, Magical Mystery Tour e o desenho animado Yellow Submarine.

Mas ainda está faltando um grande projeto, talvez o último deles: o relançamento do filme Let it Be.

A história do filme é simples: logo após o fim das gravações do “Álbum Branco” — quando a coisa começou a ficar feia para os Beatles –, e sentindo que a crise era muito séria, McCartney resolveu que estava na hora de voltarem a tocar ao vivo, porque isso poderia recolocar a banda nos trilhos. As sugestões que foram surgindo a partir daí incluíam um show num anfiteatro vazio no norte da África, que se encheria aos poucos com gente de todas as cores, credos e raças, idéia depois reciclada pelo Pink Floyd em Pompéia.

Apesar de toda a grandiosidade das idéias, àquela altura já seria uma grande vantagem simplesmente juntar os quatro beatles em qualquer lugar. Se resignaram a gravar um documentário para a TV mostrando a banda no processo de gravação de um novo disco. A idéia seria mostrar os Beatles “sem as calças”, como dizia Lennon. Ensaiando, gravando suas músicas ao vivo como nos primeiros tempos. Tudo deveria ser o mais natural possível.

Até isso deu errado. Com os Beatles apenas adiando um fim inevitável, o filme foi posto de lado e acabou sendo lançado nos cinemas, o que explica os ângulos esquisitos de várias tomadas. O disco com parte da trilha sonora seria lançado um mês após o anúncio oficial do fim dos Beatles.

É quase impossível fazer uma análise objetiva de Let it Be porque aquilo não é bem um filme, é James Stewart apontando o binóculo para o apartamento de Raymond Burr.

Do ponto de vista cinematográfico Let it Be é um fime horroroso. É mal dirigido, mal editado — é um fracasso tosco. Michael Lindsay-Hogg, o diretor, poderia ter feito um trabalho bem melhor dentro das diretivas “naturalistas” que recebeu. Não fez, e acima de tudo Let it Be é um filme extremamente chato.

Mas é também um documento importante.

Ele acabou entrando para a história como o registro do processo de desintegração da banda mais influente da história. Mas na verdade não é isso que ele mostra. Se tivesse sido lançado exatamente como é, mas a banda não tivesse se separado naquele momento, ele seria visto como uma alegoria da superação: o filme começa em um ambiente muito tenso, nos estúdios de Twickenham, melhora quando vão para a Apple e tem sua apoteose no show no telhado, interrompido pela polícia. Poderia ser visto como uma prova de que o amor pela música e a camaradagem entre quatro sujeitos que cresceram juntos supera tudo.

Infelizmente os Beatles se separaram menos de um ano depois das gravações e, para todo mundo, o filme é um epitáfio.

A Apple vem realizando um trabalho incessante em cima do filme. Há anos vem trabalhando nele — e algumas cenas do filme restaurado já foram vistas no Anthology. Ainda não se sabe quando será lançado, e a cada Natal os boatos redobram. Talvez tenha ficado mais fácil depois da morte de George Harrison, um dos que mais carregavam mágoas daquela época, mas ainda é um tema de que nenhum dos sobreviventes gosta de falar com honestidade. O Let it Be é o retrato mais acabado do que são as relações entre os ex-beatles: um saco de gatos em que dinheiro e mágoas desempenham papéis equivalentes.

Mas eles sabem que, quando relançarem o filme, as vendas em DVD vão ser excelentes. E o dinheiro pode até ser equivalente às mágoas, mas Paul McCartney, Ringo Starr, Yoko Ono e Olivia Harrison sabem que mágoas não enchem bolsos.

Do nada ao lugar nenhum

A manchete de ontem do Jornal da Cidade, o maior de Sergipe, diz o seguinte:

Senadores acusam governo Lula de perseguir Sergipe

O líder do PFL no Senado, José Agripino Maia, usou ontem a tribuna para acusar o governo Lula de perseguir Sergipe. “Se a situação do empréstimo que o governo do Estado está pleiteando junto ao BNDES não for resolvida em uma semana, em nome do PFL saberei reagir à altura contra essa perseguição política”. Segundo Agripino, a discriminação está relacionada ao fato de Sergipe ser administrado por um governador pefelista. Outros senadores se solidarizaram com José Agripino e com Sergipe. O presidente Renan Calheiros disse que cabe ao Senado defender a federação e os interesses dos Estados.

A notícia completa pode ser lida aqui.

Há algo muito esquisito quando senadores de um Estado defendem tão altruisticamente outro. É tão incomum quanto ver um parlamentar recusar a aposentadoria a que tem direito depois de dois mandatos. Mas o altruísmo de Agripino tem razões simples.

O empréstimo em questão é para a construção de uma ponte ligando Aracaju a Barra dos Coqueiros, do outro lado do rio Sergipe. São quase 200 milhões de reais. Ela já é conhecida como “a ponte que liga o nada ao lugar nenhum”. Não há necessidade real de sua construção, porque Aracaju não tem nada a oferecer à Barra dos Coqueiros, e vice-versa.

Quando o governador João Alves Filho anunciou a construção da ponte, garantiu que ela seria construída com recursos próprios. Era uma forma de se livrar da saraivada de críticas que vinha recebendo por apresentar um projeto tão esdrúxulo, tão desnecessário. A princípio não se acreditou na bravata, porque João Alves sempre faz esse tipo de promessa. Uma das mais curiosas foi o anúncio de uma fábrica de catchup de goiaba — seja lá o que isso for — a ser construída no alto sertão sergipano. Ele justificou a promessa lembrando que às vezes o jovem sertanejo não tem catchup para comer no seu hambúrguer. Deve ser verdade. O problema é que normalmente, além do catchup, ele não tem hambúrguer e nem sequer farinha para comer.

Ainda assim, se algum dia sair do papel, a fábrica tem tudo para ser um sucesso — assim que alguém encontrar uma mísera goiabeira no sertão, o que até agora, em toda a história do Brasil, ninguém conseguiu.

Enquanto isso o governador tem feito uma série de viagens internacionais, segundo ele para prospectar investimentos estrangeiros. Até agora nenhum dinheiro apareceu, mas as viagens constantes para lugares como Paris têm feito a alegria de sua entourage, composta inclusive por colunistas sociais — que, como se sabe, são fundamentais em uma negociação econômica.

Quando viu que a ponte realmente ia sair do papel, a oposição sugeriu que se chamasse Zé Peixe, em homenagem a um antigo prático que conhecia como ninguém a barra do rio, extremamente perigosa, e que virou personagem folclórico. Nada mais justo. Ela, no entanto, vai se chamar Construtor João Alves, pai do governador e meu ídolo pessoal, pelo seu singelo apelido de João Pica d’Aço e por ainda mais singelas aventuras com o sexo oposto. É essa a maneira como se faz política em Sergipe, não muito diferente — se diferença há — do modo como se faz política em todo o Brasil.

A promessa auto-suficiente de João Alves não se comprovou, e provavelmente nunca esteve em seus planos. Agora ele faz algo relativamente comum: tenta fazer com que a União pague pelos seus delírios megalomaníacos.

A primeira tentativa de chantagem do governo de Sergipe foi através do então presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, com quem o governador sempre teve boas relações. A ponte entrou na pauta das negociações da forma mais simples: ou o empréstimo saía ou matérias de interesse do governo não seriam aprovadas. O governo, refém de uma crise que se estende até hoje mas que era então muito mais grave, chegou a anunciar que o empréstimo ia sair. No meio tempo, entretanto, Severino caiu e o poder de fogo de João Alves foi reduzido a quase nada. Agora ele volta a disparar sua baterias, e de maneira mais organizada por fazer parte de um jogo institucionalmente mais legítimo.

Essa é a oposição ao governo Lula, ou pelo menos parte dela. É capaz de jogar todo o seu peso para a aprovação de uma medida desnecessária e lesiva aos cofres públicos. A ponte é apenas mais uma obra faraônica, feita para reforçar o nome de João Alves e, segundo boatos, garantir recursos para a campanha do ano que vem, quando ele enfrentará uma campanha extremamente difícil. É também uma obra burra: isso poderia ser feito com obras mais relevantes e necessárias, como por exemplo uma ponte ligando Sergipe à Linha Verde, o que aumentaria o turismo proveniente da Bahia. Ou na recuperação das rodovias estaduais, abandonadas de maneira criminosa.

O episódio representa muito mais que uma questão local. É essa oposição que, ano que vem e ao lado do PSDB, vai apresentar uma alternativa a Lula, e que ultimamente andou tomando as cores da moralidade — cores que não combinam com o verde e amarelo do PFL, a propósito — e passou a representar uma antítese ética do governo Lula para uma parcela meio ingênua do eleitorado. Essa oposição, na verdade, nunca agiu de forma diferente. E em meio à derrocada moral que atingiu o governo, aqueles desiludidos pelas quebras de promessas do PT se voltam para uma tábua de salvação que, na verdade, nunca existiu.

Joel Silveira

Achei o livro num sebo da Sete de Setembro. No saldão, sempre a seção mais interessante de qualquer sebo, cinco livros por três reais (e Norman Mailer, e Stephen Crane, e Chico Anysio e Graham Greene).

Eu já conhecia o Joel Silveira jornalista. Desde os anos 80, na verdade, na Revista Nacional que circulava encartada em alguns jornais em todo o país e que me parecia ser um dos últimos vestígios de uma época em que o Rio de Janeiro era o centro do Brasil. Eu não gostava dele. Me parecia um sujeito com uma língua muito malvada. Mas aos 15 anos, bobo como todos os que têm 15 anos, eu estava mais preocupado com Jack Kerouac.

Foi só há pouco tempo que descobri o homem que conquistou o ódio eterno dos granfinos de São Paulo, o correspondente de guerra na Itália. Foi quando conheci de verdade o seu estilo, algo que o coloca acima do jornalista comum: em “A Feijoada que Derrubou o Governo”. Aprendi a respeitar o sujeito ali.

Mas eu não sabia que ele era contista.

Da Sete de Setembro fui para a Colombo comer o de sempre, bomba de creme e viradinho de banana. E li o livro quase inteiro ali, porque é um livro curto que pode ser lido numa daquelas mesinhas. Por coincidência o lugar tinha uns paralelos interessantes com o livro. A Colombo é o que restou do Rio antediluviano; o livro traz os resíduos de uma Aracaju que morreu há muito tempo.

O livro que achei no balcão de saldos tem uma capa em preto e rosa, paupérrima, e um título indigente: “Vamos Ler Joel Silveira”. É uma coletânea esquisita, quase inexplicável. Pela data, 1982, e pelas características, parece ser obra de um editor que arranjou algum bom esquema com o MEC, durante a bagunça do governo Figueiredo, e ajudou alguns amigos. O livro foi lançado pela Editora Cátedra / Pró-Memória / Instituto Nacional do Livro.

Há um tom fúnebre nos contos de Joel Silveira, uma nostalgia mórbida e desesperançada, e a seleção neste livro reforça esse aspecto. Todos os contos são aparentemente autobiográficos; e talvez um freudiano qualquer ressaltasse neles a necessidade edipiana em Silveira de matar seu pai e de matar, também, a Aracaju que ele conheceu — Joel Silveira, cansado de brigas constantes com o pai, foi para o Rio com 18 anos. Talvez, mas isso não interessa. Nesses contos, seu alter-ego Jorginho é um adolescente às voltas com o fim do mundo que conhecia e a necessidade de enfrentar um mundo novo. O que há ali é um escritor interessante, talentoso, econômico para a época — um tempo em que o Brasil não conhecia Hemingway, ainda.

Se não há grande profundidade psicológica em seus personagens, seus atos e a descrição do ambiente são suficientemente marcantes para que as histórias fiquem martelando em sua cabeça; mas, principalmente, há uma verdade em tudo o que está ali que não é comum. Vários dos contos estão carregados de sexo; mas não é aquela lenga-lenga da descoberta do corpo feminino numa província esquecida por Deus. Está cheia de vivência real, que sem descuidar dos aspectos exteriores que condicionam os relacionamentos tampouco esquece que tudo aquilo, afinal, é mais antigo que o velho solar que vive seus últimos dias e assistem à desintegração de uma família. Nada é tirado de seu contexto e nada perde o que lhes faz verdadeiros. A impressão que fica é a de que o jornalista Joel Silveira alimenta e fortalece o contista. Nisso ele é um mais que legítimo autor da geração de 30.

Joel Silveira lançou dois livros de contos e duas novelas. Há ainda um de crônicas, mas esse é provavelmente mais próximo do jornalismo que da literatura. Não faço idéia de onde se possa achar esses livros, e não seria má idéia para Sergipe, onde Silveira já foi Secretário de Cultura, reeditá-los agora. Sergipe é pobre em bons escritores, e ainda cai no erro de valorizar apenas uns poucos, os inegáveis como Tobias Barreto, Silvio Romero, Manoel Bonfim, o brilhantíssimo e pouco conhecido poeta simbolista Hermes Fontes e, mais recentemente, Francisco Dantas e Antônio Carlos Viana. Enquanto isso ficcionistas com talento também inegável — e esse é o caso de Joel Silveira, como deve ser o de vários outros — vagueiam em um limbo injusto, enquanto esperam que uma posteridade imaginária lhes faça uma justiça que, provavelmente, não virá.

É uma pena. Porque o que Joel Silveira conta nessas poucas histórias é o panorama de uma Aracaju em que as pessoas moravam no centro e a cidade morria na colina de Santo Antônio, de um lado, e na Barão de Maroim, de outro. Uma cidade que ainda não tinha se aventurado além da rua Lagarto e que respeitava, como ainda hoje, os limites do rio Sergipe. Ainda com bondes, ainda com o Alto da Areia que já foi desmontado há tanto tempo. É uma cidade da qual, hoje, só restam fantasmas murmurejando em quase silêncio nos ouvidos dos mais velhos, que esperam sentados em cadeiras na porta de casa a hora de finalmente seguir o caminho dessa Aracaju que conheceram mas que morreu há muito, muito tempo.

Axioma de Prodt

A Brittany Murphy pegou o menino do buffet e traçou o garoto ali mesmo, na escada. Chapadona, a moça. Viajandona.

O chato em toda essa história é que todo mundo sai perdendo. Ela porque o seu vício e seu comportamento tipo, assim, sem limites estão fazendo uma carreira que parecia promissora descer escada abaixo (sem trocadilhos).

E o rapaz porque, além de pegar uma moça que, para começo de conversa, nem é essas coca-colas todas — além de estar para lá de Bagdá –, ainda por cima não pode sequer espalhar a história, porque nenhum de seus amigos vai acreditar. “O quê? A lourinha de Sin City? Não, porra, eu sei que não é a Jessica Alba, a outra. Uma ova que você comeu!”

Isso lembra um artigo de Marlon Prodt, escrito há uns 15 anos e do qual a Superinteressante publicou uns trechos. O sujeito criou o que se passou a chamar o Axioma de Prodt. Diz o seguinte: “Sua credibilidade diminui na exata proporção ao aumento da sua sorte”.

O sujeito que traçou a Brittany Murphy, mais do que ninguém, sabe disso.

No Natal de 1914

O último sobrevivente aliado da trégua do Natal de 1914, durante a I Guerra Mundial, morreu ontem. Ele tinha 109 anos.

O episódio é um dos mais famosos da guerra: britânicos e alemães interromperam o morticínio, apertaram-se as mãos, trocaram pequenos presentes e até mesmo jogaram futebol no dia 25 de dezembro de 1914. Fãs dos Beatles conhecem o episódio, lembrado por Paul McCartney no videoclipe de Pipes of Peace. A trégua ressalta a imbecilidade da guerra e lembra que não é o povo que a quer. A guerra é decidida por gente que não morre nela.

Aquela trégua foi, provavelmente, o último suspiro da era vitoriana, em um momento de crise em que noções arcaicas de honra e humanidade eram subjugados, definitivamente, pelas novas armas de destruição em massa e por uma nova concepção de guerra. Vista assim, a trégua foi um anacronismo. Não havia mais espaço para o cavalheirismo em um mundo povoado por tanques, aviões e metralhadoras, um tempo em que as mortes causadas pelo homem, pela primeira vez na história ocidental, se contavam na casa das dezenas de milhões.

Costumamos nos lembrar, principalmente, da II Guerra Mundial. Pelas dimensões, pelos 60 milhões de mortos, pela exacerbação do mal contida no nazismo, e porque é relativamente recente. Mas a I Guerra, sob vários aspectos, foi a mais importante da história. Marcou a ruptura entre dois mundos diferentes, o final da era vitoriana e o início de um um novo tempo. Por mais aterradora que tenha sido a II Guerra, e mesmo levando em consideração que o mundo que emergiu dali era bem diferente, ela não forjou esse novo mundo: ele nasceu ali, nas trincheiras da Bélgica. Foi a I Guerra quem deu origem à União Soviética e elevou os Estados Unidos à categoria de potência econômica e bélica. Acima de tudo, foi a I Guerra que mostrou à humanidade que o horror podia não ter limites.

O mundo que emergiu da I Guerra era outro. Em 1914 os alemães saudaram os soldados que partiam para a frente de batalha com pétalas de flores. Eram ainda felizes descendentes de Frederico II da Prússia, ainda aqueles que viam na guerra um sentido para uma vida. 25 anos depois, os mesmos alemães olharam taciturnos suas tropas marchando em direção à Polônia. Não havia mais alegria ou orgulho. Eles já conheciam o horror da guerra. E essa transformação, essa perda definitiva da inocência — algo que não pertence apenas aos alemães, mas a toda a Europa; os franceses justificaram sua covardia em 1939 com essa lembrança — se deve a 1914.

No ano em que comemoramos os 60 anos da II Guerra, seria bom olhar um pouco mais para trás e lembrar das verdadeiras mudanças. A II Guerra Mundial, para quem a viu nascer, era pouco mais que o segundo turno da I, com um intervalo de 20 anos. Hitler, em parte, foi cria de Versalhes; e se a guerra do Holocausto e de Hiroshima chama a atenção pelos extremos de ódio e de capacidade de destruição a que se chegou, a primeira foi ainda mais importante por ter descortinado uma era de trevas possíveis, e todos então perceberam que os limites haviam acabado.

A morte do último sobrevivente aliado daquela trégua é também um lembrete de que, a cada dia que passa, mais e mais pedaços de um passado não tão distante desaparece. O mundo vitoriano pode ter acabado em 1914, mas enquanto houver sobreviventes daquela trégua, daquele pequeno momento de sanidade em meio à barbárie, ele ainda é mais que umas letras arrumadas em um livro qualquer de história, ainda que apenas nas lembranças de uns poucos. E talvez seja essa a sua verdadeira importância.

(A foto deste post faz parte de uma belíssima coleção de fotos coloridas da I Guerra.)

Quando Rubem Fonseca matou Mandrake

Certo, admito: sou pior que mulher de malandro. Eu apanho e volto, rabo entre as pernas, choro falso e já com vergonha dos vizinhos, esperando uma paz conjugal que nunca vai chegar. Eu sou pior que viciado.

É a única explicação que posso dar por ter comprado “Mandrake: A Bíblia e a Bengala”, de Rubem Fonseca.

O novo livro de um dos maiores escritores brasileiros vivos é um romance, ou quase isso. Só esse fato já devia me deixar com a pulga atrás da orelha. O seu gênio é o do contista, e nisso não há escritor melhor; mesmo hoje, quando sua verve parece ter diminuído irreversivelmente, ele ainda é capaz de lampejos de energia. Mas como romancista o máximo que se pode dizer de Fonseca, em qualquer época, é que ele é eficiente. Só isso, eficiente como um escritor noir razoável em seu décimo livro com o mesmo personagem. Descontando-se o estilo, tão diferente, há algo nos seus romances que os faz ter pontos em comum com os de Graham Greene: ambos escreveram livros leves com alguns toques mais profundos de alguma coisa. A diferença é que, enquanto Greene voou muito alto, Rubem Fonseca sempre esteve um degrau acima do mero romancista policial — mas sempre a uma grande distância de outros romancistas mais profundos e mais ambiciosos.

Mas isso vale para seus bons romances, “O Caso Morel”, “A Grande Arte” e “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”. Suas últimas obras de maior fôlego são, todas, ruins de doer. “O Selvagem da Ópera” é um fracasso sob qualquer ângulo que se tente imaginar, uma investida em um campo, o romance histórico, que Fonseca não dominava e não podia dominar; “E Do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto” é uma tentativa de paródia que, no entanto, não tem humor nenhum, ou se tem é um humor meio forçado e esnobe, um esnobismo que lhe tira toda a graça; “O Doente Moliére” é absolutamente medíocre, um conto que já nasceu aleijado, cresceu demais e morreu novela na sarjeta e pode apenas envergonhar seu autor; e “Diário de um Fescenino” é apenas mais do mesmo, os mesmos trejeitos esgarçados e conhecidos de tantos livros, diluídos em algo que parece cansaço.

Ou seja: um romance de Rubem Fonseca é quase uma certeza de café fraco, a mesma borra coada pela terceira ou quarta vez, e requentado.

Na verdade, “Mandrake: A Bíblia e a Bengala” não é propriamente um romance: são duas novelas curtas encadeadas, o que coloca o livro em um limbo que o faz não pertencer a nenhum gênero específico. Não há invenção aqui: o resultado parece apenas uma gambiarra, um recurso de aguém que tinha um prazo a cumprir e tudo o que tinha na mão eram duas novelas que se interligavam.

Fonseca reaproveita aqui um dos seus personagens recorrentes, o velho e bom Mandrake — outro é o protagonista sem nome de “Matéria do Sonho”. Funcionava perfeitamente bem em contos espalhados por vários livros, funcionou bem em “A Grande Arte”, apenas se perdeu em sua “parceria” com Gustavo Flávio. Seria uma dica que o mínimo que se poderia esperar do livro seria artesanato bem-feito.

Mas aqui o que salta aos olhos são os defeitos de Rubem Fonseca. Por exemplo, o seu truque mais gasto: a avalanche de informacões sobre um tema pouco usual (facas em “A Grande Arte”, sapos em “Bufo & Spallanzani”; agora o negócio são bengalas), sobre o qual ele discorre com a profundidade da antiga enciclopédia Conhecer. É um truque velho e que, em sua enésima repetição, é apenas cansativo e falso.

Resta então a história e os personagens. Mas aqui estão os mesmos personagens que já vimos tantas vezes antes em uma história que também já vimos. São histórias frouxas e repetidas, sem brilho, sem invenção.

Rubem Fonseca foi, provavelmente, o escritor brasileiro mais importante dos anos 60 e 70. Em 12 anos, ele pariu alguns dos livros mais importantes de sua época: “Lucia McCartney”, “Feliz Ano Novo”, “O Cobrador”. Havia algo de novo e brilhante, de genuíno. Mas hoje, e já há algum tempo, Rubem Fonseca apenas reescreve seus livros, cada vez de maneira menos inspirada. Um novo livro de Fonseca e se tem a impressão de estar diante de uma xerox da xerox anterior. E a cada nova cópia o resultado é mais impreciso e irregular, até não sobrar mais nada, até sobrar apenas um borrão que, com um pouco de esforço, lembra um teste de Rorschasch que faz como que nos lembremos que um dia um escritor espantou o país com contos que falavam de violência e amor de maneira indistinta e crua.

Smart Shade of Red

Durante a ditadura, o que se convencionou chamar de esquerda era, na verdade, um balaio de gatos de cores muito diferentes sob um guarda-chuva só, o MDB. ‘Na mesma agremiação havia de tudo: do Orestes Quércia ao pessoal do PCB, e mais tarde até do PCdoB.

A vida era muito simples. Para o pessoal da ARENA e, principalmente, para os militares que sustentavam um regime que apodrecia a cada dia, qualquer um que não apoiasse a ditadura era um comunista perigoso.

Com o fim da redentora o que se viu foram alguns anos de indefinição ideológica, em que gente que era do MDB se revelou mais próxima do PDS. Foram anos curiosos. E depois que o muro de Berlim caiu, a confusão ficou ainda maior.

Mas aos poucos as pessoas com juízo foram percebendo que nem todo mundo que era de direita era um ultra-liberal egresso da TFP, e que nem todo mundo que era de esquerda era guerrilheiro. As pessoas seguiram adiante, renovaram o jeito como pensavam.

Isto é, algumas.

***

Depois de meses achando que ele era um sujeito situado confortavelmente no centro, acabo de ser surpreendido pela informação de que o Adriano é um ser de esquerda.

Eu sempre gostei do Adriano. Sempre respeitei o sujeito. Vivo dizendo que não gostaria de discutir com ele. Mas eu me recuso a permanecer na mesma lama. O meu raciocínio, mecânico e obtuso como o daqueles que descobriram que ele é um cripto-comunista, é o seguinte: se o Smart é de esquerda, se está mais próximo de Cuba que da Europa, eu vou ter que me redefinir como terrorista anarquista, algo assim. Vou ter que andar com coquetéis molotov na mochila. Vou andar de braços dados com a Heloísa Helena e dar showzinho em CPI.

A inteligência humana me impressiona mais e mais, a cada dia.