Karate Kid

Assisti na TV, há algum tempo, a Karate Kid II, um filme extremamente bobo e de que não gosto nem um pouco.

Mas como até nas piores ostras pode-se encontrar uma pérola, perto do final há uma cena interessante. A mocinha do filme, apaixonada pelo Karate Kid, e sabendo que ele vai embora, resolve fazer a cerimônia do chá para ele. No filme essa cerimônia é descrita como uma coisa que se faz quando um casal se apaixona, o que é uma deturpação deslavada. Mas tudo bem, isso não importa.

A cerimônia do chá é um belíssimo ritual, como é quase tudo que diz respeito às relações pessoais de qualquer tipo no Japão, pontuado pela rigidez de procedimentos e respeito às tradições e convenções.

Aí comecei a viajar. O filme é da era Reagan. Se você acha que o governo Bush é retrógrado é porque não pegou esse tempo; o de Bush é só mais burro e mais inescrupuloso. Os anos 80, nos EUA, viram uma espécie de reação puritana à revolução sexual de 20 anos antes. Por exemplo, eles tinham a mania de distribuir evangelhos em motéis (sempre imaginei a grande utilidade desses livrinhos para um sujeito como o Marlon Brando de “O Último Tango em Paris”, mas não conte isso a eles). Havia uma campanha pela castidade a qualquer preço, “don’t get aroused“, essas coisas.

E então comecei a pensar que, afinal de contas, Karate Kid podia não ser um filme tão ruim assim. Olha que lindo, que típico de sua época: a substituição do velho, sujo e vil sexo extra-marital por um ritual puro, rígido e sublime que tem maior significado espiritual do que a mera troca de fluidos corporais e eventuais palavras obscenas, essa coisa do Diabo. Karate Kid usava uma metáfora interessante para definir a moral de sua época.

De repente o filme tinha mais profundidade do que a carinha de bebê de Ralph Macchio fazia supor.

Mas aí, encerrada a cerimônia do chá, vem o gesto simbólico e clichê: ela solta os cabelos, num sorriso convidativo e purificado pelo compromisso assumido pelos gestos sincronizados dos dois.

Ah, não. É sacanagem. Não dá para ser feliz desse jeito.

Menos ainda porque exatamente quando o Ralph Macchio, que consegue a proeza de ser mais bobo do que eu, entende o recado e se anima a provar que apesar de todas as aparências ele ainda tem um tiquinho de testosterona naquele corpo raquítico, cai uma tempestade e eles têm que ir embora.

De promessa de metáfora até inteligente de sua época o filme volta ao seu amontoado de clichês, e eu volto à sensação de que fui feito de bobo.

Eu juro: nunca mais penso quando estiver vendo um filme.

DiVX

John C. Dvorak está pintando um panorama róseo para o DivX neste artigo da PC Magazine.

Para quem não conhece, o DivX é um formato de compressão muito mais avançado que o usado no DVD. Filmes codificados em DivX ocupam cerca de 700 MB. E fazem a festa de milhares de cinéfilos que usam as redes de trocas de arquivos como o eMule.

O DivX é a única razão para eu, por exemplo, ter uma conexão que chamam de “banda larga”. Onde mais eu iria encontrar Triumph des Willens, o documentário maldito de Leni Riefenstahl sobre o congresso do Partido Nazista em Nuremberg, 1934? Ou “Um Cão Andaluz”, de Buñuel e Salvador Dalí?

Graças ao DivX, tem-se acesso a um mundo cinematográfico que as leis de mercado não costumam deixar acessíveis.

Lula e as criancinhas

Lula anda acreditando demais no próprio mito. Descontando-se as imensas diferenças, de governo e de caráter pessoal, foi o que aconteceu com Collor.

Na coluna do Ancelmo Góis de hoje, uma nota diz que Lula se emocionou no velório dos mortos no acidente de Alcântara porque cresceu vendo caixões de crianças mortas no Nordeste, e pensou no desamparo dos filhos das vítimas.

A emoção nostálgica de Lula é um desrespeito ao mortos que estava velando, principalmente, mas também ao povo brasileiro.

Não é preciso lembrar de “anjinhos” no Nordeste para se emocionar com aquela cena. Duas dezenas de homens mortos e carbonizados não bastam para que se chore sua perda? Evocar nordestinos mortos pela fome para justificar lágrimas em um velório é tirar dos técnicos de Alcântara o valor de seu sacrifício.

Enquanto isso, o orçamento de 2004 destina menos dinheiro às áreas sociais que o de 2003, de FHC.

Real Dolls, fake lives

Um dos sites mais engraçados que conheço — e ele está no ar há muito tempo — é o Real Doll.

Engraçado e triste, como um palhaço bêbado tropeçando no picadeiro.

No Real Doll se encontra a última geração de bonecas e bonecos infláveis, imitando com a maior semelhança possível mulheres e homens de verdade. Custam uma fortuna, cerca de 6 mil dólares, e até mesmo deram origem a uma cultura própria, como se deduz a partir dos links incluídos no site.

É engraçado porque mostra quão impressionantes são, e a que ponto podem chegar, a indústria do sexo e a inventividade humana nesse setor.

Mas é, principalmente, triste e degradante. É difícil imaginar o que leva alguém a escolher conviver com um arremedo de ser humano como uma real doll. É uma escolha consciente pelo isolamento da realidade, um misantropismo sociopata em que as pessoas se contentam com imagens vagas de humanidade.

As real dolls extrapolam o conceito de masturbação, porque o que se tem ali é uma réplica sem vida de um ser humano. O sexo continua sendo solitário, mas nessa solidão se percebe a necessidade quase doentia de companhia. Deve ser triste, até mesmo sórdido, fazer uso de uma boneca dessas. É, provavelmente, o pior tipo de solidão que o homem conseguiu encontrar para si mesmo.

E, para quem se empolgar, só um lembrete: depois de usar tem que lavar.

Luther King

Hoje faz 40 anos que Martin Luther King disse que tinha um sonho.

É melancólico que a retórica de King, importante nos dias da “luta pelos direitos civis” americana, tenha sido enterrada pelos ativistas sociais negros nos Estados Unidos debaixo de mensagens quase igualmente racistas como as Malcolm X e Louis Farrakhan.

Só para que se possa lembrar os valores realmente importantes, o discurso “I Have a Dream”, um dos mais belos da história, pode ser ouvido e lido aqui.

Fantasma

O Fantasma foi criado por Lee Falk em 1936. Era uma época em que o mundo começava a ver imagens em movimento da África, e o continente negro se consolidou como sinônimo de mistério e exotismo, uma relíquia do colonialismo inglês e reflexo do sucesso de Tarzan nas telas.

Que eu saiba foi o primeiro super-herói a se casar nos quadrinhos, na década de 70, mas a essa altura ele já não tinha praticamente nenhuma relevância. Um pouco depois, nos anos 90, virou moda “matar” os super-heróis, a partir da morte do Super-Homem — que precisava desesperadamente de um aumento de vendas. Nessa época eu defendia uma solução para o Fantasma que, modestamente, considerava brilhante: ele também devia morrer. Mas, ao contrário do Superman e tantos outros, devia morrer de verdade.

Era simples. Ele era o único super-herói que realmente podia morrer, porque sua estrutura permitia isso.

A lenda do Fantasma é uma das mais interessantes do mundo dos quadrinhos: tudo começou quando um navio foi atacado pelos piratas Singh, no século XVI, e Christopher Walker foi o único sobrevivente. Nas praias de Bengala (um absurdo geográfico interessantíssimo) ele fez o juramento de dedicar sua vida (e, sem consultá-los, as dos seus descendentes também) a combater a pirataria e o Mal.

A partir daí se sucederam Fantasmas. Quando um Fantasma morria e seu filho (todos recebiam o nome do pai, ou seja, Kit Walker) assumia o seu lugar; daí a lenda do “Espírito-Que-Anda”. Aquele cujas aventuras líamos era o vigésimo segundo.

Essa estrutura, para quem gosta de quadrinhos, é perfeita. Porque permite a renovação do personagem a cada 20 anos. Na minha concepção, o Fantasma seria o primeiro super-herói cujas aventuras poderiam transcorrer em tempo real, envelhecendo com seus leitores, morrendo e cedendo lugar à nova geração quando fosse perdendo força. Por exemplo, hoje praticamente todos os personagens em quadrinhos têm dificuldades em explicar sua cronologia (no Homem-Aranha, Flash Thompson lutou na Guerra do Vietnã, que acabou há mais de um quarto de século). Com o Fantasma isso não precisaria acontecer, ele podia simplesmente começar um novo personagem do zero. Sempre que o personagem estivesse cansado, poderia se casar — sem problemas, porque daqui a alguns anos ele poderia se casar novamente, ou melhor, o seu filho poderia. Para o público adolescente, as aventuras de cada sucessor trariam, renovadas, as mesmas emoções que seus pais haviam lido tempos atrás.

Era o plano perfeito, mesmo, e só idiotas como os donos do Fantasma não percebiam. Ahn… Eu disse perfeito? Que bobagem.

Àquela altura aquilo era impraticável. O Fantasma perdeu força simplesmente porque a África não existe mais no imaginário mundial. Os autores bem que tentaram atualizar o personagem, com Diana Palmer, por exemplo, passando a trabalhar na ONU. Mas o problema do Fantasma era estrutural, era o fato de ser indissociável de um lugar que perdia gradualmente o seu interesse. Na década de 30 ainda era o continente negro, cheio de mistério e animais enormes, e gigantes Masai e anões pigmeus. Cecil Rhodes e Livingstone eram personagens recentes. Os safáris eram chiques. Resumindo, o mundo do início do século XX permitia a existência do Fantasma, tornava-o crível e factível, qualidades fundamentais para o sucesso de qualquer personagem.

Hoje a África não tem mistério nenhum. Tem tutsis e hutus massacrando-se uns aos outros, tem a África do Sul recuperando-se do apartheid, tem a Libéria e a Somália, tem o Ebola e uma população miserável condenada a morrer de Aids. Quando dizemos que a África é selvagem, certamente não é no mesmo sentido que dizíamos há um século.

A tecnologia e a informação já tinha assassinado outro personagem de Lee Falk, Mandrake (surgido na esteira do sucesso dos ilusionistas no início do século passado, com gente como Houdini, em quem era descaradamente baseado), porque suas mágicas já não convenciam, e porque aquele mundo — com princesas Narda e príncipes negros Lothar servis — tinha acabado. Demorou um pouco mais para a vida matar o Fantasma. Mas conseguiu.

Editorial

A Julia tem me sugerido colocar um contador de visitas neste blog.

Nunca.

A razão é bem simples. Na hora em que eu souber quantas pessoas vêm até aqui (meu ego gosta de imaginar milhares de pessoas vindo regularmente e se retirando em silêncio), ele deixa de ser o que deveria.

O fato é que nunca gostei muito de blogs. “Hoje saí com o Pê, comentei que o cabelo da Quê tá horrível, ri muito com a Pê”. As vidas dos outros, mesquinhas e pequenas como a minha, definitivamente não me interessam. É por isso que aqui neste blog há tão pouca informação pessoal.

Passei a escrever este blog para poder tirar da cabeça, ou registrar de alguma forma, uma série de bobagens em que penso diariamente. Um comentário para mim mesmo. Disseram que ele é eclético; na verdade é anárquico, no pior sentido da palavra. É só um amontoado de idéias desconjuntadas e mal-cozidas, só isso.

(Quase 150 posts depois, eu mesmo ainda não sei direito o que é este blog. Não é um diário online; tampouco um blog jornalístico. Provavelmente é apenas Rafael se dando o direito de ser cabotino quando quer, contando muitas vantagens e poucas desventuras [inversamente proporcional à vida real], escrevendo o que quer na hora que quer.)

Mas com um contador isso acabaria. Por vício profissional, talvez mesmo de caráter, eu passaria a escrever para as pessoas que viessem aqui. Tentaria descobrir quais os posts preferidos e me ateria a esse estilo. Não que isso fosse uma decisão consciente, mas depois de tantos anos escrevendo para convencer os outros, isso é inevitável. Além disso, se eu finalmente percebesse a verdade — 3 visitantes por dia — ia acabar revoltado e jogando tudo para o ar.

O blog continua sem contador, Julia.