Umas semanas atrás eu subi o rio que passa aqui em frente, passei pela boca do Pomonga, do Rio do Sal, do Parnamarim, e depois de atravessar um lugar onde o Cotinguiba e e o Sergipe se encontram e se espalham — um lugar que chamam de Doido e que não costuma ser frequentado por velejadores apesar da beleza absurda do lugar — entrei pelo Cotinguiba até uma prainha no meio do mangue que é um pequeno paraíso.
Chamam o lugar de Doido porque os ventos enlouquecem ali, ventos rondados e em rajadas, e as correntes ficam loucas também, e como se não bastasse quando a maré enche a loucura aumenta ainda mais, dizem que ali já virou até lancha. Normalmente dá para ver uma rajada de vento chegando por causa das ondulações da água, mas no Doido isso é impossível, porque o vento vem de todas as direções, todo o tempo, e se não chega a ser impossível não é muito agradável velejar ali.
Mas no verão ruim mesmo é a volta, no contravento, uma sucessão de bordos curtos com ventos imprevisíveis, uma briga constante para equilibrar o barco e um leme pesado, quase revoltado.
Foi durante a volta, uma proximidade excessiva da margem, um gybe dado sem a devida atenção, uma rajada de vento imprevista, e o barco virou. Pior, o mastro atolou na lama, e não conseguimos desatolá-lo. Uns pescadores que passaram e arrastaram o barco nos pouparam do vexame de ligar para a Capitania dos Portos para nos ajudar. O resultado foi um boné de que Oxum deve ter gostado e decidiu levar, uma bolina empenada pelo esforço infrutífero de desvirar o danado, uma buja rasgada e um mastro e uma grande que pingavam lama por todo o barco — triste figura aquela, uma bagaceira emporcalhada descendo o rio Sergipe, balançando por causa da bolina empenada e adernando aqui e ali quando não deveria adernar.
E assim que guardamos o barco e tiramos o mastro e gastamos metade da água de Aracaju para tirar a lama, a única coisa em que pensávamos era que não víamos a hora de voltar para o Doido. Porque como dizem aqui remédio para doido é outro na porta, e os Galvão nunca foram mesmo muito certos da cabeça, e não é um lugarzinho vagabundo de meio de rio que vai me virar de novo. E se virar eu vou continuar voltando, até a hora em que vento e rio desistam e admitam que a única solução é conviver comigo como conviveriam com um maluco inofensivo criado na casa vizinha.
Isso foi há quase um mês. E de lá para cá ainda não tive tempo de voltar para o rio, as semanas se sucedem sem intervalo e sem tempo disponível, e se eu não faço aquilo que realmente queria fazer imagine o que acontece com o blog.
Eu tenho a impressão de que um dia Deus e o Diabo se encontraram, e Deus entendiado e coçando o saco divino não tinha o que falar para o Coisa Ruim e disse observaste tu a meu servo Rafael? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, vagabundo íntegro e reto, temente a Deus na sua rede, e que se desvia do mal desde que isso não lhe dê muito trabalho, e o Diabo disse estende a Tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra Ti na Tua face, que esse Diabo é um danado que sabe mesmo das coisas, e Deus deixou o Diabo fazer o que quisesse comigo, e o Diabo disse vou fazer esse baiano preguiçoso arrenegar o dia em que nasceu, e me pôs a trabalhar como se eu merecesse tamanha sina tão triste, e eu que queria ir ao cinema não vou, e eu que devo umas cervejas ao Ricardo não vou, e eu que queria tanto vir a este blog não venho, e tudo fica por isso mesmo, mais ou menos como os livros que se empilham na estante e eu ainda não tive tempo de ler, mas que insisto em comprar assim mesmo porque no fundo devo ser um masoquista que gosta de ser assombrado por fantasmas de lombadas virgens, e um dia eu sei que vou acordar no meio da noite ainda sonhando que estou diante de um coelho branco e gritando oh dear, oh dear, I shall be late.
Tudo isso é para dizer que falta tempo, falta tempo e falta saco, e o blog tem ficado abandonado mas é assim mesmo, e a gente aprende a conviver com a culpa do trabalho não feito até o dia em que mete uma bala no ouvido e desiste de vez desse negócio, como acabou de fazer o Nelson, mas ele prometeu ressuscitar ao fim do terceiro dia. A gente fica esperando que as coisas um dia melhorem, e enquanto isso eu desejo um feliz Natal e um próspero Ano Novo para todo mundo.