Uma prece a Oxum

Durante muitos anos acreditei que macumba era coisa de baiano pobre.

No modo simplório como eu via as coisas, gente com algum nível econômico simplesmente evitaria essas obrigações, por não acreditar, por estar enraizada na tradição iluminista ocidental.

Mas a vida vai nos ensinando algumas coisas.

Moro em um bairro bem razoável de Aracaju, a 13 de Julho. Para os padrões da cidade, bem diferentes dos cariocas, é um bairro razoavelmente caro. De acordo com aquela tese, seria o último lugar onde despachos dariam o ar de sua graça.

Um domingo desse eu ia caminhando pela rua com minha Febem particular (minha filha e meus dois sobrinhos) rumo a uma doceria que minha filha adora. E de repente vejo no chão algumas tigelas de barro quebradas e dois bonequinhos de pano, pretos como azeviche.

Yo no creo en brujas mas não custa desviar.

Os dois bonequinhos provavelmente significam que aquele é um “ebó de amor”, que alguma mulher (é sempre mulher que faz essas coisas) alucinada de paixão resolveu que um homem vai ser seu — ou que não vai ser de outra pessoa. Não é uma encruzilhada; está diante de um edifício, onde ele ou ela — ou quem sabe os dois juntos — devem morar.

Escrevi paixão, mas ainda não me convenci. Isso não pode ser paixão, e ainda menos sonhar em ser amor. É algo pior, baixo, mesquinho.

É ódio.

Lemingues

Cresci acreditando que lemingues, quando em vez, piravam o cabeção e pulavam em bando do penhasco mais próximo.

Agora, através de uma notícia lida através do Boing Boing, fico sabendo que tudo aquilo era uma fraude criada pelos cinegrafistas da Disney.

Nessas últimas décadas, o suicídio coletivo dos lemingues se tornou um fato consumado. Vi em inúmeros lugares gente de boa fé especulando sobre as razões do desvario: controle populacional era a tese aceita mais amplamente, mas não faltava gente para dizer que tudo aquilo era pura e simples maluquice. Nunca se chegou a nenhuma conclusão definitiva.

Não se chegou porque elas não existiam. O mito de lemingues como pequenos Jim Joneses é só isso, um mito: a situação mostrada no filme foi fabricada artificialmente durante a produção de um documetário da Disney. Isso é ainda mais canalha porque muita gente — eu inclusive — cresceu utilizando como referenciais aqueles documentários. Eu os via todo sábado, na Disneylândia.

Mas o que é o problema de um bobo crédulo em um mundo louco? Nada. Complicadas, mesmo, são duas perguntas que a questão levanta.

A primeira: onde é que o mundo jornalístico ou científico, sei lá de quem é a culpa, estava para perpetuar uma lenda urbana desse tipo?

Segunda: o que fazer com aqueles milhões de cópias de Lemmings, o joguinho de computador cuja premissa se tornou, de repente, mais falsa do que os peitos da Pamela Anderson?

A Disney devia arder no inferno por isso.

O fim de uma dúvida cruel

Ao longo dos últimos meses, várias pessoas vieram parar aqui em busca de uma resposta para uma das mais intrigantes dúvidas da humanidade: quem inventou o papel higiênico.

Agora eu sei.

O primeiro papel higiênico foi criado pelo Birô de Suprimentos Imperiais da China em 1371. Produziam anualmente 720 mil folhas. O mais curioso era o tamanho dessas folhas: cada uma media 2 pés de largura por 3 de comprimento.

O pinto pode ser pequeno, mas em compensação…

Aquilo a que chamam pragmatismo

Como era mesmo aquele papo de “oposição”, “republicanismo”, “princípios”?

(Foto tirada em agosto de 2003, na Aldeota, em Fortaleza. Lucio Alcântara foi o candidato — eleito — do PSDB ao governo do Ceará em 2002. Lula, obviamente, apoiava o candidato do PT. Mas nem todos os “princípios”, o “republicanismo” e o fato de ser o “fiel depositário da moralidade política” do país impediram o PSDB de tentar surfar a onda vermelha.)

Don Rosa II

Eu já tinha ouvido falar do Don Rosa antes, mas foi o Inagaki quem me chamou a atenção para ele.

Li sua primeira história há algumas semanas e achei muito, muito boa. Não mais que isso. Um grande roteirista, um desenhista razoável, e tudo estava de bom tamanho.

Li a segunda e a terceira e minha opinião mudou radicalmente. O sujeito é um gênio.

A primeira história, na Tio Patinhas 472, é “Uma Carta de Casa”. Quanto ao traço, uma olhada com um pouquinho mais de atenção me deu a impressão de que Rosa, embora parta de princípios “barkianos”, tem uma influência insuspeita: Robert Crumb. Há algo de sujo em seu traço que me lembrou Fritz the Cat; obviamente seria algo como Crumb para o estilo Disney, mas ainda assim é um estilo muito mais “udigrudi” que o normal.

Mas há outros elementos, muito mais importantes. Não é a arte que faz de Rosa é um gênio: são os seus roteiros.

A diferença no relacionamento tradicional entre o Donald e o Tio Patinhas me chamou a atenção imediatamente. Donald era só o sobrinho atrapalhado, irritável, meio burro e submisso do tio quaquilionário. Rosa realçou outros elementos para criar um elo a mais entre eles, como um gosto comum por aventura. Mas o principal, mesmo, é que ele tornou Donald finalmente um adulto. O sarcasmo aberto, até amargo, com que Donald fala da avareza do tio não era algo comum no universo Disney. De repente, Donald se torna um igual de Patinhas: é um adulto como ele. E entre os dois há um abismo ético que não se via antes, não dessa forma.

É ainda nesse aspecto, a psicologia dos personagens, que Rosa acrescenta outros avanços. Ele tenta dar mais profundidade ao Tio Patinhas, tirando um pouco o foco de sua avareza e ganância e ressaltando o gosto pela aventura. Tenta humanizar o personagem e adaptá-lo ao início do século XXI. Rosa conseguiu o que ninguém antes dele havia conseguido: atualizar os personagens míticos de Walt Disney para uma era diferente sem conspurcar sua essência. A Marvel deveria ter olhado para ele antes de emporcalhar o Homem-Aranha com aquela palhaçada do Ultimate Sei-Lá-O-Quê.
Don Rosa é, como disse o Inagaki, um bom motivo para comprar a Tio Patinhas todo mês. Mesmo que isso signifique ter que ler aquelas histórias horrorosas e histéricas produzidas na Itália.

(Para quem não conhece o macete, velhíssimo, é só olhar para a primeira letra dos códigos que estão no primeiro quadro da história. Por exemplo, B99265 significa que a história foi produzida no Brasil, I é Itália, etc.; a Abril divulgou esses números com estardalhaço na época em que o estúdio brasileiro produzia grandes histórias).

A Revolução dos Bichos

A lista dos melhores livros do século do Liberal Libertário Libertino já deu uma surpresa. “A Revolução dos Bichos”, de Orwell, foi incluído entre os 30 mais.

Nada demais nisso, se o livro não fosse uma droga.

Li aos 11 anos. Reli alguns anos depois. Mais uma vez, agora em inglês para ver se a tradução não tinha deixado nada passar.

E em qualquer língua, em qualquer tempo, o livro continua uma droga.

É só uma alegoria óbvia e boba. Como literatura, é lixo. É o tipo de coisa que qualquer idiota pode escrever, daria um bom esquete de TV, uma sacada legal de um roteirista competente — “que tal transformar Lênin e Stálin em porcos?” — mas nunca um livro, nem mesmo um bem curto como aquele.

No entanto, em época de guerra fria, entende-se que as pessoas pegassem um comunista arrependido como Orwell e alçassem seu livro à categoria de obra-prima. Que me perdoem todos os fãs da obra, mas aquilo é só propaganda. Só isso, não tem grandes méritos além desse.

Sua virtude é ser anti-comunista, só isso. E ser curto. Se alguém quer uma boa crítica de esquerda — ou seja, trotskista — ao stalinismo, que leiam “Memórias de um Revolucionário”, belíssima crônica da Revolução Russa travestida de autobiografia de Victor Serge. De direita? É só pegar um livro qualquer do Soljenitsin. Mas todos esses dão trabalho, são longos; melhor, no caso, ficar com a maior parte da crítica feita à Revolução Russa, boba e rasteira, mas perfeitamente aceitável em um mundo que comemora incessantemente a vitória do capitalismo, às vezes de maneira impensada e irracional.

O que eu não entendo é que, 15 depois da queda do Muro de Berlim, quando as pessoas deveriam ter mais o que fazer além de repetir os clichês com as quais cresceram, elas continuem repetindo que aquele livro é uma obra-prima.

Um post de Natal

O Túlio perguntou se sou ateu.

A pergunta deve se dever à última alegria do post anterior. Crentes não costumam debochar d’Ele; é o limite que a maioria das pessoas encontram, é a última fronteira: brinquem e serão excomungados. O Paulo tirou uma conclusão que parece semelhante, mas que é bem diferente.

A resposta é não. Não sou ateu. Nem de longe, e nem que quisesse. Fé não se explica, e não se evita.

O fato de acreditar em Deus não me impede de achar também que, de certo modo, sua existência seja criação dos seres humanos. Deus também foi criado à minha imagem e semlhança. Assim como Ele existe independentemente do que eu acho ou deixo de achar, o fato de eu ter uma visão bem particular não afeta em nada a Sua existência. As coisas existem independentemente de como eu as veja — e é por isso que a única discussão em que não entro é aquela sobre a existência de Deus, a mais estéril que eu posso imaginar: no fim das contas, tudo se resume a acreditar que Ele existe ou não.

Tampouco sou religioso. Não sou sequer cristão, nesse sentido — já que não acredito em Jesus Cristo como o tal filho de Deus ou parte daquela coisa absurda e incompreensível que é a Santíssima Trindade. Na verdade, vejo Jesus como um fenômeno histórico brilhante. Acho o budismo, que virou moda, uma desculpa apropriada para o século XXI, candomblé — que deveria ser a religião oficial do Brasil — uma lindíssima manifestação animística, e por aí vai.

Talvez por não ser cristão eu não tema mesmo a Deus. A relação aqui é outra.

Mas o fato de não ser cristão não me impede de achar o espírito do Natal uma das coisas mais belas que o ser humano conseguiu inventar. O Natal é uma lembrança do que existe de melhor em nós. Nos lembra que acreditamos — e acreditar é talvez a coisa mais importante do mundo — que alguém foi capaz de dar sua vida por amor ao próximo. Poucas coisas, em toda a história, foram tão importantes quanto essa idéia. Seja obra de quem for — de Jesus, de Mateus, de Paulo, do Vaticano reunido em segredo de Estado — é uma espécie de testamento máximo de humanidade. Nada pode ser mais importante do que isso. Nem mais desejável.

Feliz Natal.