História de livros

Um ano atrás comprei, depois de anos de procura, uma coleção da “Clássicos da Literatura Juvenil”.

Uma das melhores coisas em comprar livros usados é tentar descobrir as histórias por trás deles. Aqueles livros pertenceram a alguém, às vezes foram lidos por alguém. Existe uma razão para terem chegado ali. Nem sempre é uma história bonita.

Há um pequeno nicho de gente que passou a cultuar sebos e livros usados nestes tempos malucos, como cultuam vitrolas e discos de vinil — deram até para tecer loas a máquinas de escrever, mondrongos que deveriam estar bem enterrados no quintal de uma fábrica de notebooks. É gente que perde de vista o que é realmente importante — sebo é bom não porque é sebo, mas porque vende livros mais baratos e às vezes difíceis de achar —, mas também gente acostumada com um mundo fácil demais, insosso demais, talvez, que busca um romantismo que só existe de verdade em suas cabeças.

Tenho a impressão de que a maioria desse pessoal que cultua livros usados, geralmente superficial e tão empolgada com a ideia que eles materializam quanto com o livro em si, gostaria um pouco menos se soubesse como a maioria deles vai parar nos sebos: com a morte de alguém, cuja biblioteca livreiros compram por metro a preços que envergonhariam qualquer cidadão; eles sabem que muitos dos livros apenas acumularão poeira e prejuízo, mas sabem também que ali há coisas boas o suficiente para recuperar, com alguma sorte, o investimento.

Talvez seja uma história parecida com essa que está atrás dessa coleção que agora é minha.

Durante quase dois anos, uma mãe comprou, religiosamente, esses livros para sua filha. A cada duas semanas, ela passava na banca para pegar o último volume, que vinha embalado em plástico e trazia uma etiqueta prateada redonda com o preço. Muitas vezes, ela ou a filha tirava a etiqueta com cuidado e a colava na terceira capa de cada livro. Graças às etiquetas coladas com zelo eventual posso saber quanto custavam. Elas avisam que um novo volume saía quinzenalmente às terças-feiras. No início, novembro de 1971, custava 8 cruzeiros. Em maio de 72, o preço aumentou: 9 cruzeiros. Finalmente, a partir de fevereiro de 73 passaria a custar 10 cruzeiros.

Desconfio que tenha sido a mãe a colar as etiquetas. Talvez para não esquecer quanto gastara. Mas talvez porque dava tanta importância àquele objeto que não queria perder nenhum dos elementos que o fazia tão valioso ao ser exposto na banca de revistas, a oportunidade de levar literatura com boas referências para sua filha e valorizar um pouco mais o esforço em desasná-la com elegância: “Olha, eu gastei oito cruzeiros com cada um desses livros, se você aproveitou ou não, tanto se me dá.”

Não guardava apenas isso. Tudo o que vinha no pacote era colocado com cuidado dentro dos livros. Em maio de 1972 a Abril lançava outra série de fascículos, “Os Cientistas”; dá para acompanhar o lançamento nos livros daquele mês. No volume 12 foi guardado um folder anunciando a nova coleção; no 13, um folder maior detalha a coleção e os brindes que a acompanhavam.

No volume 29 um papelinho anunciava, com um ano de atraso, que a partir daquele número o texto dos livros seguiria as normas do novo acordo ortográfico, de dezembro de 1971. Ia-se o acento grave de sòzinho, e sem o acento diferencial como distinguir êle da letra ele, ou o govêrno que governo?

Mas algo aconteceu quando a coleção chegou ao número 41.

Faltavam apenas dezoito semanas para completar a coleção. Durante quase dois anos, ela comprou religiosamente cada livro; mas de repente parou. Nunca mais, disse o corvo.

Faltava tão pouco. E agora só me resta imaginar por quê.

A hipótese mais óbvia: faltou dinheiro. Era 1973 — o ano do fim do milagre econômico, do choque do petróleo. Ou o casamento acabou e outras prioridades surgiram. Mas duvido, duvido muito. Ela deixou de comprar porque cansou de ver os livros intocados na estante. Porque não valia a pena continuar comprando livros que ninguém lia.

São os brindes involuntários, os mementos esquecidos dentro dos livros, que contam essa história. No volume 2, “O Conde de Monte Cristo”, um cupom de caixa registradora da Eletro Radiobraz S/A, que em 12 de dezembro de 71 tinha loja à Brig. Gavião Peixoto, 354, Lapa, City, São Paulo; isso foi depois dela abrir o capital, antes de ser vendida ao Pão de Açúcar e muito antes de ver sua marca desaparecer. Naquele dia, alheia a tudo isso, a mulher que comprava esses livros toda quinzena fez as compras do mês, no valor total de Cr$ 131,21. No volume 6, “Alice no País das Maravilhas / Alice no País do Espelho”, um cartão singelo de Natal de 73, em que sua colega Cibeli faz votos de um feliz Natal. No volume 16, “Mulherzinhas”, uma natureza morta decalcada em papel de seda com caneta esferográfica.

É a nota fiscal que permite concluir que esses livros foram comprados por sua mãe, que fazia compras na Eletro e guardou o cupom no livro que tinha acabado de comprar para sua filha.  São o cartão e o desenho que me dão a certeza de que ela comprou os livros para sua filha, que leu apenas os títulos mais atraentes para meninas, nos quais eventualmente guardava pequenas coisas do cotidiano, e deixava os outros descansando na estante, relatos de aventuras tão masculinas, com todo o material que ainda hoje está guardado lá, como folders e avisos.

É uma história possível entre tantas, não há nada de novo nisso. O que é novo é que depois de tanto tempo finalmente percebo algo que sempre me passou batido: o quanto essa coleção era masculina. Era para garotos, antes que meninas.

Ao longo de alguns anos, li e reli todos aqueles livros. Mas perdi a conta de quantas vezes reli “A Ilha do Tesouro”, “O Conde de Monte Cristo”, “Aventuras de Tom Sawyer”, “Os Três Mosqueteiros”, “David Copperfield”, “Odisseia”, “Beleza Negra”, “Robin Hood”, “Sem Família”, “Os Patins de Prata”, “Robinson Suíço”, “Caçadores de Cavalos”, “Nevada” e “O Corsário Negro”. São os livros que definiram minha infância, provavelmente. E quase todos eles são literatura que apenas um garoto privilegiaria.

Eu nunca tinha percebido isso, e é bom ver que mesmo quarenta anos depois ainda consigo descobrir algo novo nesses livros. Parece pouco, em se tratando de obras simplificadas para crianças. Não é.

O fim da estrada

A Apple Corps. divulgou ontem uma pequena montagem de cenas do documentário que Peter Jackson está fazendo com o material que deu origem ao filme Let it Be.

É empolgante. É uma colagem alegre e quase inimaginável para quem conhece o filme original. Ao que tudo indica, Jackson deu preferência às sessões gravadas no estúdio da Apple — para voltar à banda, George Harrison exigiu que saíssem do estúdio de cinema da Twickenham, onde começaram as gravações do filme —, notoriamente mais alegres. Pelo visto, ele vai cumprir a tarefa de recontar o fim dos Beatles de acordo com o prisma que a Apple quer que passe à história.

Não é algo menor. O filme de Jackson é provavelmente o último esforço de Paul McCartney e Ringo Starr, e em menor medida de Yoko Ono, de controlar a maneira como a sua história é contada. Eles têm idades que variam dos 78 aos 87 anos. É fácil perceber a importância emocional que isso tem para eles. O filme está fora de circulação há décadas. E só para que se tenha ideia, o trecho de menos de 5 minutos impressiona também como um desfile de amigos mortos. John, George, Linda McCartney, Maureen Starkey, George Martin, Mal Evans, Billy Preston: estão todos lá, e todos já se foram. Este filme deve ser a última nota de envolvimento pessoal e emocional da empresa chamada Beatles. Depois dele, tudo de novo que viermos a ver dos Beatles será somente mais tentativa de ganhar dinheiro.

The Beatles: Get Back pode ser finalmente a peça que vai encerrar um ciclo fundamental nas vidas dos dois sobreviventes, amarrar as pontas soltas numa história que, pela sua dimensão cultural e histórica, parecia ter sido apenas interrompida. A palavra final e positiva sobre a trajetória da banda.

Seja como for, qualquer coisa que Peter Jackson soltar vai colocar em evidência o trabalho porco realizado pelo diretor de Let it Be, Michael Lindsay-Hogg. Quer dizer então que ele tinha tudo isso à disposição, mas tudo o que conseguiu foi aquela hora e meia de chatice depressiva?

Eu e milhares de fãs falamos mal de Let it Be há décadas. Mas ver essas cenas tão antagônicas ao material lançado em 1970, em vez de confirmar minha opinião, me fez pensar que talvez eu estivesse um pouco errado ao sempre ter condenado o trabalho do pobre rapaz, porque embora a maneira como editou o filme seja imperdoável em sua incapacidade de construir uma narrativa melhor, ele acabou sendo criticado por algo de que, afinal, tem um pouco menos de culpa do que se acredita.

Imagine-se na pele de Michael Lindsay-Hogg nos primeiros dias de 1969. Você não tem nem a experiência nem o talento necessários para fazer um documentário do porte de um Let it Be; até agora, tudo o que você fez foram uns clipezinhos para a TV, e depois disso não voltaria a fazer nada digno de nota. Você é a pessoa errada na hora errada.

Durante as gravações, você se vê envolvido em toda a crise que estava levando a maior banda do mundo ao final. Acompanha as tensões, talvez seja forçado a tomar lado inúmeras vezes. Quando as gravações chegam ao fim, já faz tempo que você perdeu a objetividade necessária para avaliar corretamente o que tinha acontecido naquele mês trágico.

O material que você tem à disposição é enorme, mas foi colhido sem um roteiro prévio para lhe guiar, e principalmente sem uma ideia clara de como construir um filme a partir daí. Tem de tudo: discussões, brincadeiras, a presença lúgubre de Yoko Ono em um número excessivo de cenas. Você não sabe como organizar tudo isso e construir o drama necessário a uma narrativa. Também tem música, muita música, mas você não entende o que deve e não deve ser aproveitado, e por isso vai se concentrar no que lhe pediram: um documentário com as músicas de um disco que talvez saia um dia. Vendo o tamanho do buraco em que se meteu, você está tentando fazer algo com aquilo quando chega a notícia de que Paul anunciou o fim da banda.

Você devolve a pergunta a Lênin: que fazer?

O que a gente pode perceber vendo o material de Peter Jackson é que, em primeiro lugar, Lindsay-Hogg cometeu o erro grave de dar ao baixo astral visível em Twickenham a aparência de normalidade, e isso é indesculpável. A verdade é que a maior parte do mal estar da banda se devia ao fato de estar em um lugar estranho, desconfortável, gelado, que não fazia nada para mitigar uma crise que não parava de crescer. Não era um reflexo do cotidiano real. Mas há outro aspecto: ele deve ter percebido que, se tivesse feito um documentário que enfatizasse os momentos alegres das sessões, seria universalmente ridicularizado e acusado de falsear a história. Linday-Hogg fez um filme póstumo, e por isso o condenou.

Tudo isso me leva a pensar que há a possibilidade de Jackson construir uma narrativa tão falsa quanto a do Let it Be, uma imagem em negativo do filme original: onde aquele era apenas baixo astral, tensão e brigas, este pode vir a ser exclusivamente alegria, descontração e harmonia. É muito simples fazer isso: basta cortar todas as cenas de tensão, basta esquecer que eles quebraram o pau a ponto de George deixar a banda, ou não explicar por que George chamou Billy Preston para aquelas sessões, não mostrar por que decidiram se apresentar no telhado da Apple em vez de um anfiteatro romano.

Se isso acontecer, este filme será um epitáfio menor do que poderia ser. Uma narrativa equilibrada, que desse aos bons e maus momentos seu peso real dentro daquele mês, e mostrasse as contradições e a variedade de sentimentos conflitantes seria melhor. Não é possível entender o Let it Be sem ter em mente que, mesmo quando estavam se divertindo, a crise estava lá; e mesmo quando brigavam, uma ligação mais forte que o normal ligava aqueles quatro sujeitos. É essa complexidade que deve ser mostrada no filme.

Eu torço para que o filme de Peter Jackson dê a Paul e a Ringo a paz que, no outono da vida, eles parecem precisar. Jackson pode vir a redimi-los, finalmente. The Beatles: Get Back pode ser o final da longa e sinuosa estrada. É o bastante.

McCartney III

Sempre que Paul McCartney lança um disco, é inevitável que as pessoas se façam uma pergunta: será que é o último? Aos 78 anos, ele lançou hoje McCartney III, em que, como nos álbuns com títulos semelhantes lançados em 1970 e 1980, toca todos os instrumentos.

Se for o último, McCartney pode bater as botas tranquilo: é o melhor álbum do velho sir em um bom tempo. Melhor certamente que New, de 2013, e na minha opinião melhor que o Egypt Station, de dois anos atrás. E é melhor principalmente por uma razão simples: a simplicidade.

Os últimos discos de McCartney parecem assolados pela praga da superprodução. Esse sempre foi um defeito seu, é verdade. Mas nos anos 2010 ele parece ter sido elevado à vigésima sétima potência. Em New, em que a maioria das canções é pouco inspirada, McCartney tentava obter uma sonoridade moderna que lhe soa estranha. Em Egypt Station, um número maior de boas canções às vezes patinava na necessidade de ser moderno, no excesso de sons. Daí porque a simplicidade de McCartney III é tão bem vinda.

Talvez isso se deva ao fato de que o disco, não planejado, é um produto das circunstâncias, daquilo que Macca aqui chama de rockdown, num trocadalho do carilho que quase se pode tolerar. A consciência da pandemia, a angústia existencial que tomou conta da humanidade, os dilemas que todos têm que enfrentar no conflito entre ganhar a vida e não morrer, tudo se reflete no álbum.

Como seus antecessores, McCartney III não foge à sonoridade da música pop inglesa atual. Talvez nem pudesse. Mas desta vez Paul parece estar no controle, o que parece lhe permitir adotar a abordagem mais simples em muitos anos e ressaltar a qualidade (ou não) de cada canção. Em seus melhores momentos, traz canções curtas que funcionam muito bem. Em seus piores, traz o velho McCartney que não sabe a hora de parar.

A crítica tem saudado o experimentalismo do disco. É possível ver isso em algumas canções, mas é exagero. Talvez mais acertado seja chamar o disco de simples, contido, e muito bom.

Faixa por faixa:

Long Tailed Winter Bird é um instrumental construído sobre um riff de violão com traços indianos que deriva para um típico groove “mccartneyano”, e serve admiravelmente como introdução ao disco. É provavelmente a música que define o clima do disco como “experimental”, e é surpreendentemente boa. Traz ecos também do primeiro disco do Fireman.

Find My Way é uma bela canção pop que poderia ter sido composta nos anos 80. Simples, direta, agradável como pouca coisa que McCartney fez nos últimos anos. Dela McCartney tirou o primeiro clip.

Pretty Boys fala sobre a relação de fotógrafos e seus fotografados, aparentemente sobre suas sessões como beatle; se você não sabe disso, no entanto, provavelmente achará que é sobre michês. Como provavelmente a pessoa mais fotografada na história da humanidade, McCartney parece ter uma relação ambígua em relação a isso, e o seu lado negativo está explícito aqui. É uma balada que lembra muito as que ele vem soltando ultimamente, mas a instrumentação mais esparsa, contida, ajuda a lhe dar uma beleza que muitas vezes falta em suas similares.

Women and Wives é uma balada em que McCartney abusa de acordes que se tornaram comuns nos seus últimos discos e um piano que parece saído de Chaos and Creation in the Backyard para filosofar sobre o sentido do casamento, suando um moralismo familiar que eventualmente marca sua obra e, eventualmente, o aproxima de George Harrison.

Lavatory Lil é um ataque de McCartney a alguém que lhe sacaneou — e é impossível não achar que ela é dirigida à sua ex-mulher, a perneta que lhe passou uma rasteira memorável. Lembrando muito um blues inglês dos anos 60, é uma das melhores canções do disco, com uma das letras mais diretas e bem construídas. Uma espécie de Poison Ivy com mais veneno, mais raiva e um bom riff copiado de John Lee Hooker. É a melhor canção do disco, a mais espontânea, a mais vibrante, e que serve para lembrar que McCartney, quando quer, é um grande roqueiro à moda antiga.

Deep Deep Feeling é aparentemente uma tentativa de traduzir a angústia de viver sob o lockdown. Deve ser por isso que dura intermináveis oito minutos. Se você olhar por este prisma, a canção cresce e adquire um significado maior. Se não, vai achá-la apenas excessiva, longa demais, com bons elementos aqui e ali. Uma canção que poderia ser boa se fosse editada com cuidado, mas que ainda soa melhor do que soaria se fosse tocada apenas no violão. É também a mais claramente experimental.

Slidin’ seria melhor se fosse uma homenagem à heroína, mas parece ser sobre paraquedismo — ou sobre um urubu, ou uma muriçoca, sei lá. Bom rock, talvez um pouco excessivo — não à toa tem a participação de Greg Kurstin na produção —, mas longe ser uma das piores canções do disco.

The Kiss of Venus vem num tom em que McCartney não pode mais cantar, mas ele insiste. Não muito inspirada, traz uma letra barroca que, diz o autor, é filosófica e profunda. Na verdade é um monte de bobagem enfileirada para parecer fazer algum sentido. Truque velho, que às vezes funciona, mas não aqui.

Seize the Day é uma boa canção, evocando um pouco da criatividade melódica de McCartney. Em alguns momentos ela ameaça crescer e desabrochar, mas para logo com essa frescura e volta a ser a musiquinha menor que é.

Deep Down é talvez a música mais chata do álbum. Basicamente um trecho artificialmente estendido muito além do razoável em estúdio, uma espécie de jam session do eu sozinho. Muita gente, no entanto, vê nela o ponto alto do disco. Tem gente para tudo nesse mundo.

Winter Bird/When Winter Comes é a música perfeita para encerrar o disco: uma típica balada ao violão de McCartney, um lembrete de que nesse estilo ele sempre foi insuperável. Gravada há mais de 30 anos, numa sessão em que George Martin estava presente, ela traz um McCartney com uma voz muito mais jovem, mas já um cinquentão relembrando dos tempos em que saiu dos Beatles e morava numa fazenda na Escócia.

O resultado é isso: o melhor disco de McCartney nesta década.

Que um homem de quase 80 anos consiga fazer um disco como esse é um milagre inexplicável. Independente de sua qualidade, McCartney III já cumpre um papel importante, agregar mais um elemento à lenda de Paul McCartney, definitivamente o maior nome da música popular de todos os tempos. É esse aspecto maior que a vida, o fato de ser um tijolo não importa se grande ou pequeno numa obra monumental, que é visto antes de qualquer outra coisa em um novo disco de McCartney. Não poderia ser diferente.

Propaganda de cigarros

Uns anos atrás, em São Paulo, fui comprar um maço de Free e me entregaram uma caixinha azul, de Kent. “Moça, eu pedi Free. Isso é Kent, eu nem sabia que ele tinha sido relançado.” A moça me disse que aquele era o cigarro que tinha ficado no lugar do Free.

Foi estranho, mas tudo bem. Ao longo da minha vida, vi marcas e marcas de cigarros surgirem e desaparecerem. Continental, Minister, Belmont, Arizona.

Até a marca Carlton tinha desparecido. Algum tempo antes pegaram uma das marcas mais tradicionais do mercado, o cigarro que fumo há décadas, e trocaram seu nome para Dunhill, uma marca popular lá nos estrangeiros mas absolutamente desconhecida aqui. Mantiveram a identidade visual antiga, ao contrário do que fizeram com o Free; mas o Carlton, mesmo, aquele raro prazer, acabou.

O que eu nunca tinha visto era uma marca ser diretamente substituída por outra, assim, na cara dura. E o problema é que eu não entendo essas mudanças.

Entenderia em outros tempos. Como subsidiária da British American Tobacco, faria sentido à Souza Cruz unificar suas marcas globalmente. Uma grande campanha aclimataria o consumidor à nova marca, agora encontrável em virtualmente todo o mundo civilizado, e no longo prazo ela economizaria em posicionamento de marketing, provavelmente também em propaganda.

Mas desde o século passado a publicidade de cigarros é proibida nestas plagas. A única explicação que consigo encontrar é que eles decidiram que este é um mundo globalizado e que vai ficar mais fácil para um brasileiro em Berlim comprar a mesma marca de cigarros que compra em Chorrochó. Dunhill aqui, em Roma, em Londres.

O único problema dessa explicação é que a conta não bate. O custo da mudança da marca, mesmo que os cigarros permaneçam os mesmos, não faz sentido para mim. O volume de fumantes brasileiros que viajam regularmente é muito pequeno para fazer valer a pena o investimento industrial feito nessa mudança. E o número de viajantes que não levam alguns pacotes do seu cigarro nas malas é próximo a zero. Ao mesmo tempo, quero crer que homens de marketing regiamente pagos não fariam uma coisa aparentemente sem sentido como essa sem pelo menos uma justificativa, por equivocada que venha a se mostrar depois.

Mas para mim é difícil entender essa mudança. Ainda hoje, muitas pessoas vão atrás do Free, como eu ainda peço Carlton. Me lembra aquelas mercearias parisienses que, quase vinte anos depois do fim de sua moeda nacional, ainda exibem placas com os preços de suas mercadorias em francos. Kent, para elas, é a penas o Free disfarçado. Não justifica a mudança.

***

Isso me lembra que houve um tempo em que a propaganda de cigarros podia ser brilhante.

Tenho a impressão de que a maior parte das pessoas com menos de 40 anos repete a expressão “Lei de Gérson” sem fazer a mínima ideia de que ela nasceu de um comercial de cigarros Vila Rica, em que Gérson dizia “O negócio é levar vantagem, certo?” Ou, se ainda lembram do “fino que satisfaz”, não lembram que era assim que Pedrinho Aguinaga, “o homem mais bonito do Brasil”, descrevia o Chanceller.

A campanha de lançamento do Plaza ainda é um exemplo de excelente propaganda conceitual, de uma sutileza que não se usa mais. Carlton, por sua vez, era sinônimo de elegância, de requinte e sofisticação, e sua propaganda, feita pelo Zaragoza, estava à altura. Um raro prazer.

Mas em termos de sucesso popular acho que nada se compara aos comerciais de Hollywood. Músicas de sucesso embalando imagens de jovens praticando esportes diferentes e caros, como se ainda tivessem pulmão para isso depois de fumar dois maços do bom e velho “Ao Sucesso”. Ainda hoje se encontra, no YouTube, coletâneas desses comerciais, cobrindo décadas.

E tem a campanha do próprio Free. Eu lembro do seu lançamento. Na época, estava na moda uma tal de “propaganda comportamental”, lançada nestas plagas em comerciais antológicos da Calvin Klein pela então Fischer,Justus. “Cada um na sua, mas com alguma coisa em comum” era um conceito absolutamente brilhante para um produto que buscava um público mais jovem, nos bons anos 80.

Mas isso faz parte de um passado quase tão distante quanto o cartaz do Rhum Creosotado que recebia o sujeito que acabava de pagar a passagem do bonde:

Não dá para questionar a proibição da propaganda de cigarros. O único argumento possível é o de que, se algo pode ser legalmente consumido, deveria poder ser anunciado, e as pessoas deveriam ter o direito de poder escolher. O argumento não se sustenta muito bem diante dos dados e necessidades da saúde pública, mas é válido. Velhos como eu só veem um problema nisso: para quem gosta de propaganda, o fim dos comerciais de cigarros tornou os intervalos na TV um pouco mais pobres.