As espetaculares oportunidades aracnídeas desperdiçadas

Só o Homem-Aranha para me tirar da minha aposentadoria como frequentador de cinemas.

Acho que todo mundo que escreve sobre filmes de super-heróis deveria lembrar de uma coisa antes: eles estão aí já há quase um século, e fazem parte do imaginário das pessoas de maneiras mais profundas do que se imagina. Personagens como Bruce Wayne, Peter Parker ou Mary Jane Watson são mais familiares à maioria da humanidade do que nomes como Bazarov, De Rubempré, Vronski ou Murdstone. No entanto, se ninguém em sã consciência respeitaria um filme em que o sr. Pickwick se tornasse parte de algo como a Liga Extraordinária, ou que transformasse Julien Sorel em um super-herói atlético, as pessoas parecem aceitar candidamente as barbaridades que se faz com as histórias dos super-heróis.

Resumindo a história original em algumas linhas: o secundarista Peter Parker é uma dessas vítimas preferenciais de bullying que é picado por uma aranha radioativa e, em vez de câncer, desenvolve superpoderes. Ao deixar escapar um bandido que posteriormente mata seu tio, ele descobre que “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Passa a atuar como um vigilante uniformizado, combatendo principalmente supervilões como o Abutre e Duende Verde enquanto tira fotos de si mesmo para um jornal chamado Clarim Diário, onde tem um rápido namoro com Betty Brant. Parker entra na universidade e conhece Gwen Stacy, que virá a ser sua namorada, e também Mary Jane Watson e Harry Osborn, seu futuro melhor amigo. Harry é filho do Duende Verde, que causa a morte de Gwen Stacy e morre em seguida. Parker então começa a namorar Mary Jane, com quem se casará mais tardes, até que os editores percebam a grande cagada que é casar um herói e desfaçam tudo.

Basicamente, essa foi a história do Aranha durante 50 anos. O que faz produtores de cinema quererem mudá-la é um mistério para mim. Não apenas por causa do seu tempo de serviço; mas porque esse é um excelente argumento, que pode ser desenvolvido de maneiras fascinantes.

Por exemplo, eu faria uma trilogia diferente (alguém um dia pode me explicar por que Hollywood desenvolveu essa tara em trilogias? Eu não consigo achar explicações razoáveis). Filme 1: Conhecemos Peter Parker, o babaca. Vítima eterna dos colegas, desprezado pelas meninas — com exceção de Liz Allan, o que ele não percebe. Parker é picado por uma aranha, tenta ganhar a vida como um Hulk Hogan genérico, mas deixa escapar o bandido que mata seu tio. Para purgar seu pecado vira herói, e aparece então seu primeiro grande inimigo, o Abutre (na verdade o primeiro vilão do Aranha foi o Camaleão, mas ele não daria um personagem adequado ao cinema). Parker começa a tirar fotos de si mesmo para ajudar a sustentar a casa, que vende para o Clarim Diário, onde conhece não apenas J. J. Jameson — cujo filho salva e, por isso, ganha sua inimizade eterna –, mas também Betty Brant, com quem passa a ter uma relação complicada, estabelecendo um pequeno triângulo confuso com Liz Allan. O filme termina com o Aranha derrotando o Abutre, mas perdendo suas mulheres. Porque o Aranha sempre se ferra no final.

Filme 2: Parker entra na faculdade. Conhece Gwen Stacy e Harry Osborn, e também Mary Jane Watson. Muita tensão sexual entre Parker e Stacy, mal resolvida. Aparece um novo vilão, o dr. Octopus. Tia May adoece, Parker se vira para tratá-la, a vida se torna um inferno. Jameson consegue fazer com que o Aranha seja procurado pela polícia. Parker finalmente começa a namorar Gwen Stacy, mas logo depois seu pai (que já tinha deduzido a identidade secreta de Parker) morre ao salvar uma criança durante uma luta entre o Aranha e o Octopus. Ele pede para que Parker cuide de Gwen, mas ela agora tem horror ao Aranha, complicando a vida do nosso herói. Ah, sim: no final o Aranha derrota o Octopus, mas eis que surge um tal de Duende Verde. Porque o Aranha sempre se ferra no final.

Filme 3: esse seria o filme “montanha russa”, o clímax em que a base delineada no filme anterior teria como cobertura uma ação assustadora. Agora o Duende Verde se torna um grande problema para o Aranha, que mora com Harry Osborn. O namoro com Gwen fica cada vez mais complicado. Parker enfrenta novos vilões (à escolha do freguês: pode ser o Kraven, pode ser o Rei do Crime ou o Electro, mas eu recomendaria muito o Escorpião). Depois de derrotá-los, eis que reaparece o Duende e mata Gwen Stacy. Ele morre num confronto com o Aranha, que termina o filme de maneira bem filosófica no Empire State. Sabe como é: o Aranha sempre se ferra no final.

Digam o que quiserem: eu gosto mais da minha trilogia do que dos filmes do Aranha feitos até agora. O engraçado é que esses filmes não mudam nada em relação à história tradicional dos personagens; são basicamente os dez primeiros anos das revistas do Aranha condensados em seis horas. Infelizmente, essa nova trilogia só existe na minha cabeça, e o que eu queria comentar mesmo era esse filme novo do Aranha.

Não é possível assistir a “O Espetacular Homem-Aranha” sem compará-lo à trilogia de Sam Raimi. Junto com os dois primeiros Supermen, de 1978 e 1980, o “Homem-Aranha 2” é o melhor filme de super-heróis já feito, e mesmo os defeitos que tinha foram herdados do filme inicial: erraram ao colocar Mary Jane na história desde o começo — e ainda por cima escolheram a Mary Jane errada. A decisão de utilizar uma teia orgânica gerou um comentário excelente do Henrique Plácido aqui neste blog: “Se é pra ser anatomicamente correto, ele tinha que soltar teia do cu”. Robbie Robertson era interpretado pelo ator errado, assim como ambos os Osborns, e o uniforme do Duende Verde parecia contrabandeado de um episódio dos Power Rangers. Mas o resto foi excelente. De J. J. Jameson à tia May, o elenco era perfeitamente adequado — Alfred Molina como o Dr. Octopus é inesquecível. Além disso, o filme mostrava o máximo possível de respeito ao uniforme original, em um tempo em que virtualmente nenhum uniforme é deixado intacto — olha o Batman aí, que depois de 7 filmes ainda não aprendeu a fazer seu uniforme.

Nessa comparação é fácil perceber que “O Espetacular Homem-Aranha” acaba sendo um filme contraditório. De um lado, umas poucas melhorias bem vindas; do outro, um amontoado de boas oportunidades perdidas, com boas ideias sendo jogadas fora por um roteiro que, se não é ruim, não amarra todas as pontas.

A principal melhoria está nos efeitos especiais. 10 anos fazem muita diferença, e hoje eles estão próximos à perfeição. O resultado é fluido, realístico. O elenco é surpreendentemente bom, e Andrew Garfield é uma excelente surpresa, apesar da estranheza inicial causada por sua carinha enjoada de menino punk punheteiro viciado em Rivotril, adequado ao público de “Crepúsculo”. Seu desempenho impressiona porque, ao contrário que agora andam dizendo, Tobey McGuire foi um excelente Peter Parker. Mais otário até do que o Parker original, McGuire resgatava o seu espírito, aquele dos estertores extemporâneos da década de 50 — o sujeito que enquanto vencia grandes vilões não conseguia colocar a mão embaixo do sutiã da namorada. No entanto também passava uma certa passividade; Garfield transmite melhor a angústia e as contradições da adolescência e de um personagem dividido, dando nova vida ao personagem e iluminando facetas que andavam meio esquecidas.

Martin Sheen está adequado ao papel do tio Ben, embora um ator menos famoso fosse mais recomendável. Mas nem a pau que a Noviça Voadora pode ser a tia de Parker: Sally Field como tia May é uma escolha tão ruim quanto Kirsten Dunst para Mary Jane, talvez pior. Quanto ao capitão Stacy, o fato é que durante anos, desde que se começou a falar em um filme do Aranha, aí por 1990, eu tinha meus favoritos para o papel. Primeiro Ralph Bellamy, então ainda vivo; depois James Cromwell com sua altivez patrícia, ainda hoje minha opção preferencial para o papel. Mas Dennis Leary não faz feio como o personagem. Rhys Ifans, um excelente ator, está bem como o dr. Curt Connors. O único problema é que destruíram o personagem, ao tirar dele a mulher e o filho, o que possibilitava conflitos entre o reptiliano e o humano que davam grandeza e importância ao Lagarto.

Levar Parker de volta para a escola secundária foi uma escolha acertada, porque possibilita uma série de conflitos bem adequados ao público-alvo. No entanto é mal aproveitada, e o resultado é que tudo é excessivamente superficial. Parker sempre foi mais importante que o Aranha, e se compreendessem melhor isso poderiam evitar absurdos como a transformação de Flash Thompson em amiguinho do peito sem nenhuma explicação. Esse é o tipo de coisa que dá para fazer rapidamente: nas revistas, por exemplo, Parker e Harry Osborn vencem a antipatia inicial e se tornam amigos em exatamente cinco quadros. Se o filme não consegue fazer algo semelhante, é por pura incompetência.

O uniforme sofreu uma modernização desnecessária e, o pior, inadequada. E isso vai ser sempre incompreensível para mim. Eu entendo que algumas modificações — em nome principalmente das características técnicas do meio — às vezes são necessárias; daí porque as linhas de teia no uniforme do Aranha de Raimi mudaram de cor e ganharam relevo. Mas Batman: Dead End provou há muito tempo que é possível, sim, fazer um filme de ação respeitando o uniforme dos personagens. Isso talvez não incomode a maioria dos espectadores: mas incomoda aqueles que, como eu, estão às voltas com o personagem há tempo demais.

O grande equívoco de “O Espetacular Homem-Aranha”, no entanto, é a maneira como trataram Gwen Stacy.

Gwen é um personagem que morreu há 40 anos, no que é uma das melhores histórias em quadrinhos de todos os tempos. Sua ignorância a respeito da outra identidade do namorado gerou situações dramáticas interessantes que carregaram as histórias do Aranha durante alguns anos. No entanto, no filme ela não apenas conhece a identidade secreta o Homem-Aranha, como ainda o ajuda. No fim das contas, o filme a trata como os quadrinhos trataram Mary Jane depois de casada. É um desperdício enorme, quase vergonhoso, porque as possibilidades dramáticas, especialmente quando se faz um filme voltado para o público adolescente, são enormes. Dizem que isso foi feito para aproximar o filme de uma série alternativa do Aranha, a “Ultimate”. Pois é. Deve ser.

No fim das contas, o novo filme do Aranha fica apenas um pouco abaixo do primeiro filme, lançado dez anos atrás, com erros e acertos diferentes e perdendo a vantagem da novidade. Um filme razoável, com erros e acertos, nada mais que isso. Como aliás é uma boa história em quadrinhos.