Augusto

Andei lembrando de Augusto esses dias.

Ainda posso vê-lo, muito magro, batendo as sete freguesias a pé, invariavelmente carregando alguns discos debaixo do braço. Ou sentado comigo num ponto de ônibus lembrando músicas um tanto obscuras dos Beatles, Stones ou Dylan. Ou ouvindo o Sgt. Pepper’s em CD pela primeira vez e dizendo “olha esse baixo!”

Nos conhecemos no Cine-Foto Walmir, numa época que eu voltava da escola a pé e nunca lanchava para poder comprar um disco no fim do mês. O Cine-Foto Walmir era a melhor loja de discos de Aracaju, a única, na metade dos anos 80, a ter um catálogo consistente de rock. Um amigo que morreu cedo demais, Jorge Eduardo, então namorado de uma tia, me levou lá pela primeira vez e me mostrou o Led Zeppelin II; a partir daí virei frequentador assíduo, embora comprasse poucos discos e ouvisse trechos de muitos. Fazia isso em livrarias e bancas de revistas, também.

A vendedora era Irani, morena deliciosa, de seios insolentes e bunda ofensiva — e tem coisa mais bela para um adolescente que rock and roll e uma bunda grande e peitos que fazem bullying com você? Foi ela quem, algum tempo depois, me apresentou o rapaz magrinho que estava na loja ao mesmo tempo que eu. Sabia que os dois eram fãs dos Beatles e achou que já era tempo de nos conhecermos.

Eu não conhecia outros beatlemaníacos em Aracaju e aquilo foi quase uma revelação.

Não lembro como, mas o assunto resvalou para livros sobre a banda, então raríssimos pelo menos em nosso canto do mundo; e eu falei que tinha o livro do Geoffrey Stokes. Augusto achou que era o do Peter Brown, The Love You Make, provavelmente o livro que todo mundo queria ler na época, porque contava os podres da banda e que nunca foi publicado em português. O mal-entendido foi desfeito logo, mas eu tinha uma coisa que qualquer pessoa quereria: o Decca Tapes.

Saímos de lá e fomos conversando até sua casa. Augusto me emprestou um disco que eu não tinha, “Álbum Branco”. De lá fomos na minha, onde emprestei a ele o Decca Tapes e, imagino, o livro de que tinha falado.

Minha mãe achou estranho eu chegar com um desconhecido, passar um tempo ouvindo discos no meu quarto e ele sair de lá com um disco meu, que eu não costumava emprestar. Eu tinha 15 anos. Olhando para trás, soa como maluquice duas pessoas que não se conhecem irem às casas uma da outra e saírem de lá com um disco. Isso nunca se repetiria depois, pelo menos não comigo.

Ainda lembro do que foi ouvir o “Álbum Branco” naquela noite. O tempo passaria e discos dos Beatles se tornariam atemporais para mim, porque os ouvi tanto que não podem me lembrar nenhum tempo ou lugar específicos; mas de vez em quando, quando ouço de novo esse disco, consigo lembrar exatamente o que senti enquanto ouvia embasbacado algo que, para mim, era totalmente inesperado.

Nos meses e anos seguintes, Augusto seria companhia constante. Discos iam e vinham o tempo todo — mais vinham do que iam: eu, que tinha muito menos, oferecia o que podia, e era pouco. O meu Decca Tapes eu sei que circulou a cidade inteira, passando de mão em mão e de gravador em gravador.

Devo a Augusto toda a base que tenho de rock and roll. De Elvis a Velvet Underground, de Muddy Waters ao Clash, dos Doors aos Sex Pistols — essencialmente, quase tudo o que importa no rock eu aprendi graças a ele. Meus gostos e desgostos — como a antipatia inamovível pelo Pink Floyd, o desprezo pelo heavy metal — foram formados aí, a partir dos discos que Augusto me emprestava.

Foi ele também quem me emprestou o On the Road, de Kerouac, e “Morangos Mofados”, e “Porcos com Asas”. Mas livros eu tinha mais, e imagino que muitos saíram de lá de casa. A isso se seguiam o tipo de discussões que só adolescentes podem ter. Ele, por exemplo, concordava com a ideia de Lennon de que primeiro você muda para poder mudar o mundo. O velho leninista aqui, ao contrário, achava é que o negócio é descer o sarrafo, que todo mundo muda rapidinho. Continuo achando.

E então Augusto começou a me dar discos. Não precisava ser aniversário, nada disso: de vez em quando ele aparecia com um disco de presente. Fui ver agora quantos discos Augusto me deu. Contei 32. Help!, Yellow Submarine, Wild Life. Sua generosidade era impressionante. Cheguei a ter três White Albums em casa, todos dados por ele. E percebi agora que, com uma exceção, todos os álbuns de Lennon que tenho me foram dados por ele, provavelmente em uma tentativa vã de me convencer de que John era melhor que Paul. A preferência por Lennon ou McCartney era uma de nossas diferenças; outra é que ele tinha adoração por louras, enquanto eu sempre entendi que menino pobre não pode se dar a esses luxos: para mim valia até cor-de-burro-quando-foge.

Certa época ele se apaixonou por uma potiguar e sua conta de telefone ficou tão alta que começou a criar problemas em casa. Então ele passou a ligar da minha, o que fez com que em seu devido tempo o nosso telefone fosse cortado, por falta de pagamento. Se lembro bem, ele acabou conseguindo encontrar a moça em Natal, mas voltou de coração partido. No fim das contas, não adiantou nada. Só o prejuízo que ele deu em duas casas.

Mais ou menos nessa época comecei a trabalhar, e o primeiro CD que comprei, o Let it Be, foi para dar de presente a ele. Que obviamente repassou a alguém.

Deve ter sido mais ou menos nessa época que descobri que Augusto era, na verdade, uma espécie de Robin Hood dos roqueiros, tirando de quem tem tinha muito para dar a quem não tinha nada. Pegou de volta vários dos discos que tinha me dado, alguns outros sumiram, meu livro do Stokes desapareceu e não sei quem pegou. No fundo acho que foi ele: pegava, emprestava a alguém e esse alguém não devolvia. Mas gosto mais de acreditar em outra hipótese bem plausível, que ele encontrava alguém mais despossuído, alguém tão ansioso para conhecer música quanto eu quando o conheci, e então agia como um redistribuidor de renda e de cultura.

É um papel nobre, esse, e eu nunca reclamei. Fazia parte do seu jeito de ser, e mais que isso, era justo. Eu jamais poderia pagar o que Augusto tinha feito por mim — e considerando que ainda tenho aqueles 32 discos, ele pegou de volta muito poucos. Era justo que, agora, eu desse a minha pequena contribuição à evangelização roqueira que Augusto empreendia cidade afora.

Acabamos nos afastando em alguns momentos — a vida afasta as pessoas o tempo todo, adolescentes crescem e descobrem novos interesses. Uma dessas foi a última. Eu sequer consigo lembrar a razão, se é que houve alguma, nem quando foi. Só sei que foi assim, diria João Grilo, e desde então não ouvi falar dele.

Mas anteontem estava relendo uma “Heróis da TV” antiga, dessas que andei baixando na internet, e na seção de cartas apareceu o seu nome. Foi uma surpresa absoluta. Eu jamais teria imaginado que, em algum momento, Augusto tinha gostado dos super-heróis da Marvel, ainda mais no mesmo ano em que comecei a comprá-las. Muito menos que ele escrevia cartas para revistas; em todo aquele tempo, super-heróis nunca tinha sido um assunto comum. E então fiquei pensando que, no fim das contas, tínhamos mais coisas em comum do que eu imaginava.

Lembranças da Bahia

Dia desses encontrei um blog em que lembravam da Salvador dos anos 80, com uma lista que enumerava lembranças e fatos e que circulou por email há uns 20 anos.

Eu não ligo para essa Salvador. É a do axé, do trabalho, da mudança das lâmpadas brancas de vapor de mercúrio para as vermelhas de vapor de sódio. A Salvador de que eu gosto é a dos anos 70, aquela que apenas entrevi, quando a Barra era uma espécie de pequeno paraíso na terra e a vida era mais doce, como um vento de fim de tarde fazendo cafuné em no seu cabelo na rede. Há outro blog dedicado a esse tempo, bem mais interessante.

Esse eu também não vivi, porque não tinha idade; mas foi nesse clima, nesse modo de ver o mundo, que fui criado e virei gente.

Eu lembro do Parquinho, na TV Itapuã/Tupi, apresentado pela Tia Arilma, que depois iria apresentar o Recreio nas tardes da TV Aratu/Globo (e garantiria a maior audiência no horário para a Globo em todo o Brasil). Era uma coisa bisonha que eu detestava, uma espécie de show de calouros em que crianças esquisitas e sem respeito próprio iam dublar músicas de sucesso, dançar porcamente as danças burlescas da época com a desculpa canalha da inocência infantil, e se submeter ao ridículo da plateia. Foi lá que Mara Maravilha começou — na época ainda “Miss Mara”, provavelmente inspirada em uma cantora da época, Miss Lene, que hoje deve cantar forró em algum lugar do Ceará ou casou com um gringo qualquer e se foi do Brasil dando-lhe merecida banana. Havia também outra cantora mirim, uma menina chamada Geisa, que chegou a lançar um compacto nacional e apareceu no Fantástico em 1982. Geisa saiu na frente rumo ao sucesso, mas Mara se revelou mais permanente, pelo menos até aceitar Jesus e virar mais uma maluca que fica arranjando nigrinhagem por aí — e mesmo nisso ela é baiana da gema.

Parquinho bom, mesmo, era o parquinho de seu Roque, que ficava no Campo Grande e depois se mudou para o Tororó; depois, quem se mudou fui eu. Não sei, na verdade, se ele era o dono ou apenas o gerente; mas era seu Roque que nos deixava andar um pouco mais nos brinquedos, como o autopista e o carrossel, e ninguém pode ser mais dono do que isso, não para mim.

Turistas que hoje vão até a Ribeira se deslumbrar com sorvetes de frutas ou tapioca não conhecem o verdadeiro sabor de um sorvete: a melhor sorveteria da cidade era a Primavera, com loja no Relógio de São Pedro (havia também uma na Joana Angélica, que eu não conhecia ainda) e uma kombi que, ao menos nos fins de semana, batia ponto no Campo Grande, em frente ao Hotel da Bahia; era também no Campo Grande que íamos à Nubar, originalmente destinada aos ingleses e que naquela época recebia damas chiques para o chá das cinco, mas também a nós. Hoje, imagino que o fato de sermos todos lourinhos ajudava.

Uma das entradas do Clube Baiano de Tênis, na 8 de Dezembro, ficava perto de minha casa; eu e Jailton entrávamos ali dizendo que íamos chamar um primo meu. E quando vinha passar férias em Aracaju eu aproveitava para dizer que aqui eles tinham o Clube Sergipano de Conga.

Assisti à “Bela Adormecida” da Disney no cine Astor — que depois de anos exibindo apenas filmes pornográficos, provavelmente em vídeo, fechou definitivamente há algum tempo — e a Superman II no Liceu — que fechou e pegou fogo, ou pegou fogo e fechou, não sei direito. Mas os meus cinemas, mesmo, eram o Tamoio, o Bahia e, principalmente, o Guarani.

Fui ao cinema sozinho pela primeira vez assistir a um filme de Terence Hill e Bud Spencer chamado “Nós Jogamos com os Hipopótamos” em 1980, no cine Guarani, que menos de um ano depois viraria Glauber Rocha; peguei um ônibus no fim de linha da Graça, que na época ficava na rua Catarina Paraguaçu, ao lado do então Campo da Graça, palco de grandes glórias do Bahia mas que já se preparava para dar origem a dois edifícios, Wimbledon e Forest Hills, e desci na praça Castro Alves; naquele dia de dezembro descobri que podia viver nos cinemas nos sábados à tarde.

Muita gente que estranha uma criança de 9 anos indo sozinha a um cinema me justifica pensando que talvez aquela fosse uma Salvador diferente, em que andar sozinho pela cidade não era uma sentença de morte assinada e reconhecida em cartório. Eles estão errados. Não era a cidade, que Salvador nunca foi flor que se cheirasse. Nós é que éramos diferentes.

Lembro quando a discoteca Maria Phumaça, na Barra, pegou fogo; eu passava em frente a ela todo dia, voltando do colégio. Ela me parecia lindíssima, com seu trenzinho na frente. Queria crescer para poder entrar ali, mas ela não me esperou. Quenga.

Havia pelo menos duas lojas da Brink Bem, uma na 8 de Dezembro e outra na esquina da Marques de Leão com a Miguel Burnier. Eu frequentava as duas.

Mas há poucas lembranças como a do jingle de abertura da TV Aratu:

Bom dia, bom dia, Bahia do meu coração
Que tenhas um dia tranquilo assim
Com a graça de Deus e o Senhor do Bonfim
Canal 4 está chegando em seu lar
TV Aratu está no ar
Bom dia, bom dia, Bahia.

E o final clássico:

TV Aratu, canal 4
Salvador, meu amor, Bahia

Eram tempos diferentes, porque a TV Aratu, na época retransmissora da Globo, saía do ar no início da madrugada. E quanto voltava, primeiro era com um color bar; depois vinha o jingle, e finalmente uma lista da programação daquele dia. E no entanto a sua programação era melhor que a da Globo do Rio, porque já nos anos 70 ela tinha o Corujão da Madrugada, e exibia três ou quatro filmes seguidos, sem intervalos comerciais, nas madrugadas do sábado para o domingo. Durante décadas achei que aquilo era uma exclusividade de Salvador. Mas São Paulo tinha uma sessão semelhante, chamada Comando da Madrugada.

Havia iguanas nas árvores da Piedade, e lembro exatamente da primeira vez que os vi porque entrei em pânico — para a diversão dos lambe-lambes que funcionavam ali, bando de filhos da puta que não entendem o que é ter 6 anos e se imaginar na selva sem o Tarzan para te proteger. Me disseram que elas ainda estão lá, mas deve ser mentira, deve ser safadeza de baiano tentando engrupir turista, porque eu não vejo mais.

Eu achava que os Harlem Globetrotters eram brasileiros porque se apresentaram no Balbininho, que não existe mais. Eu não sabia que os negões do Harlem jamais dariam nem para a saída na Liberdade.

Fui ao aniversário de 25 anos da Publivendas no Teatro Maria Bethânia. Hoje a Publivendas se chama Morya e o teatro se tornou primeiro um restaurante, depois um bingo e hoje é um hospital ou coisa parecida. No palco havia uma mesa enorme com frios, comidas e comidas e comidas, e enquanto as pessoas confraternizavam e falavam mal uns dos outros eu comia. É a lembrança mais antiga que tenho de casquinha de siri, mas naquela época eu preferia lagosta, e era ela que eu atacava; continuo preferindo, a propósito.

Assisti à chegada da TV Bandeirantes na Bahia e a única coisa interessante nela, o programa de Daniel Azulay, me cansou muito rápido.

Estudei no ISBA, o que era mais que adequado: quem nasceu de frente para a praia tinha que estudar de frente para a praia. E quando morava na Barra, nos períodos em que não ia no ônibus da escola ou que meu tio Romário — que, bom vagabundo, estudou no Pio X, em uma casa da Euclides da Cunha que não existe mais há muito tempo— ia me pegar, eu vinha para casa nos ônibus da Vibemsa, que não eram verdes ainda nem tinham desaparecido para dar lugar a três empresas diferentes; eram ônibus com motor traseiro e eu gostava de ir em pé, ao lado do motorista, olhando o caminho. Acho que aprendi com eles o tempo da marcha, e talvez seja por isso que, tantos anos mais tarde, eu me divertia trocando marchas sem precisar pisar na embreagem.

E no período em que morei em Itapuã, nada pode superar a volta para casa, os mais de 20 quilômetros ao longo da praia, vendo a lua nascer enorme e afogueada no mar, ouvindo “Bandolins” ou “Beleza Pura”.

Mas lembrar tanto do ISBA, que foi demolido dia desses para dar lugar a mais um prédio estúpido, é uma injustiça com o Pequenópolis onde estudei depois, porque foi no Pequenópolis que peguei num peitinho pela primeira vez, e isso é inesquecível quando se tem 10 anos; foi um acidente, mas ali eu senti o gosto do sangue. Essas coisas, como se sabe, viciam que é uma coisa.

Olha, o tempo em que eu era baiano é que era bom.

Uma estreia na vida

Em 2009 eu estava numa cidadezinha perto de Londres, St. Albans. Visitava uns primos de minha então mulher. Cidadezinha simpática, aquela: tem umas casinhas em estilo Tudor, uma torre onde um rei francês qualquer ficou preso, umas ruínas romanas, um pub interessante que se diz o mais antigo da Inglaterra, o Ye Olde Fighting Cock, e a catedral onde João Sem Terra assinou a Carta Magna.

Eles tinham um casal de amigos, também brasileiros, que apareceu por lá. Eram os típicos emigrantes brasileiros: vindos do sul ou sudeste, jovens de classe média, tinham ido para Europa fazer serviços que jamais fariam aqui: ela era babá e ele entregador, acho.

Enquanto conversavam, eu olhava para eles e ficava pensando num passado que já era distante, mas não tão distante quanto agora. Foi naquele momento que percebi que talvez devesse ter feito as coisas de maneira diferente.

20 anos antes, finzinho de adolescência, o que eu mais queria era ir para a Europa, o centro do mundo, o lugar dos museus, das bibliotecas, dos escritores, dos cafés, das moças com um je ne sais quoi. Passar um ou dois anos conhecendo o que podia, vivendo a vida cosmopolita de um jovem despreocupado com o futuro.

Só não fui porque, além de frouxo, eu sentia que não podia largar as tantas responsabilidades. Tinha trabalho, faculdade, família. Não podia abrir mão de nada daquilo.

Foi ali em St. Albans, olhando aquele casal, que finalmente entendi que podia ter ido. A água que tinha passado embaixo daqueles 20 anos de ponte tinha me mostrado que não havia nada que eu não pudesse recuperar depois. Que minha família viveria sem mim, que eu poderia retomar a faculdade depois, que sempre haveria trabalho para eu fazer. Mais importante: talvez até tivesse voltado melhor, mais disciplinado, mais adulto, menos arrogante.

Naquele momento me arrependi de não ter feito o que quis ter feito um dia.

No fim das contas aquilo apenas se juntava a uns tantos arrependimentos que eu sempre tive, e a mesma água debaixo da ponte que tinha me mostrado isso tinha me feito não me preocupar com o que deixei de fazer na vida.

Porque sempre achei que a coisa mais idiota que alguém pode dizer é que só se arrepende do que não fez. É gente que não aprendeu nada na vida. Nunca me arrependi dessas coisas imaginárias, só das bobagens tantas e tantas que fiz ao longo da vida. Mas daquela vez fiquei pensando que tinha tomado a decisão errada. Anotei e deixei para lá, que o que não tem remédio, remediado está.

Mas St. Albans é longe demais, no espaço e agora no tempo. Lembrei disso porque, conversando com o Bia dia desses, ele me disse que devia ter feito isso e aquilo. O Bia é mais velho, mas lá no fundo é mais jovem que eu. Não fico penndo nessas coisas. Até porque essa ânsia de cosmopolitismo, que eu já tive, embora talvez de maneira mais difusa, é coisa de jovem. Hoje o que eu realmente gosto é de ficar deitado na rede, lendo no silêncio, sem sinal de celular e olhando os cachorros, beber vinho nas noites mais frias enquanto converso sobre o passado com essa mesma família que eu não pude abandonar por um ou dois anos.

Claro que não sei se se fiz o melhor que podia. Mas sei também de outra coisa: não importa. Talvez isso seja o melhor de envelhecer. É ficar em paz com o seu passado e fizer: eu fiz o que pude. Tá bom assim.

Disquinho

Descobri dia desses que tenho mais historinhas da Disquinho do que imaginava. Achei na internet, baixei inclusive muitas que não conhecia, e esqueci, porque isso não é mais coisa para ouvir, mas sim para saber que se pode ouvir na hora que quiser.

As histórias da Disquinho são histórias infantis e de ninar clássicas, editadas a partir do início dos anos 60 em compactos sob a direção de João de Barro, pseudônimo de Braguinha.

Todo mundo na faixa dos 50 para cima lembra de pelo menos algumas dessas histórias. E como boa parte delas foi relançada em CD no início dos anos 2000, um bocado de gente na faixa dos 20 lembra também, porque pais e mães insistem em acreditar que seus filhos vão gostar das mesmas bobagens de que eles gostavam em seu tempo, tolos que são.

Para mim, que passei a infância indo dormir com elas recontadas pela minha mãe, essas histórias são especiais. Nunca esqueci de muitas delas: “A História da Baratinha”, “O Soldadinho de Chumbo”, “O Patinho Feio” — não apenas das histórias, mas também de cada canção, das mais tristes (“Vou-me embora pra bem longe/Essa é a triste verdade/Talvez algum dia encontre/A paz e a felicidade”) às mais engraçadas (“Sai daí, sapo danado/Sapo velho cururu/Sapo não vai para o céu/Na viola de urubu/Vou jogar você lá embaixo/(Tá errado, seu doutor)/Desta vez eu te esborracho/(Tá errado, sim senhor)/Mas agora eu te perdoo/Bicho feio da lagoa/Só pra ver no fim da festa/Como é que sapo voa”)

Mais tarde, eu contaria boa parte delas para a minha filha. A preferida era a “História da Baratinha”, porque podia ser aumentada a critério do sono da freguesa.

No original, apenas uns poucos animais passam e assustam a senhora dona Baratinha, que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Mas na labuta de jogar uma criança nos braços de Morfeu nenhum bicho é demais, e então a noite via um desfilar de bichos de todos os quadrantes na porta de dona Baratinha, moça séria que só queria casar. Para isso aprendi que águias crocitam, crocodilos bramem, pardais pipilam, capivaras assoviam.

Percebi também que se você não sabe que som o diabo de um bicho faz, você pode inventar qualquer coisa que uma criança não vai lhe corrigir — mas se ainda lhe resta um pingo de decência nessa alma apodrecida pelo sono, é recomendável aprender para contar certo no dia seguinte.

De onde vêm as palavras

Eu menti. Menti descaradamente, mas peço perdão porque não foi intencional.

Alguns anos atrás, respondendo a um comentário do Serge, falei que os quadrinhos Disney não foram importantes para o desenvolvimento do meu vocabulário.

Eu realmente acreditava nisso. Mas depois que escrevi me peguei pensando nas revistinhas que li quando tinha 6, 10 anos. E aí lembrei dos vândalos.

Passei anos tentando descobrir em que revista eu tinha lido uma certa história do Zé Carioca. Nela o Zé, em um dos quadrinhos, olha para uma porção de colcheias e semicolcheias caindo do céu porque um pandeiro mágico fora destruído, enquanto o inventor do instrumento, fora de quadro, grita: “Vândalos!”

Foi na Disney Especial “Os Mágicos”, de maio de 1979, e se chamava “O Pandeiro Mágico”. A partir do dia em que li essa história, e por um bom tempo, imaginei que vândalos fossem aquilo, aquelas figuras de notação musical.

Lembrando disso percebi que ao menos uma base do que entendo do mundo aprendi naquelas revistinhas, principalmente nas histórias escritas por Carl Barks. Até hoje, por exemplo, se imagino um país longínquo penso que o seu nome termina em “-istão”, porque o Tio Patinhas e os sobrinhos sempre precisavam resolver problemas e roubar tesouros em cusdemundo como Longistão ou coisa parecida.

“Expediente”, por exemplo — no sentido de lista de funcionários —, é palavra que aprendi também lendo as Disney Especial.

Durante anos achei que “dervixe” era outra dessas palavras, mas há pouco finalmente achei a história em que os tinha visto — e nela a palavra dervixe não era usada, e sim acrobatas; o que mostra um aspecto ainda mais curioso, aquele em que a imagem é tão forte que quando você descobre a palavra que a define automaticamente a associa a ela.

Essas são as de que lembro agora, sem pensar muito. Não faço ideia de todas as que aprendi naquelas revistinhas — ah, lembrei de outra, “cosmonauta” —, porque revistas não têm o caráter de permanência dos livros.

O meu problema, o que me faz desprezar tão injustamente as revistas em quadrinhos, é que ao mesmo tempo em que as lia, também lia outros tipos de livros, como a tal “Clássicos da Literatura Juvenil” de que já cansei de falar aqui. E lia também os livros do meu pai, com preferência para os policiais da Colecção Vampiro. Além disso, depois que ficou fácil achar essas revistas digitalizadas, reli várias delas e a verdade é que lembrava de muito poucas histórias, e por associação achei que não aprendi tanta coisa assim.

Claro que nem tudo era essa maravilha de que lembro e falo, e eu certamente tinha dificuldades para entender grande parte do humor e da ironia, e levei a sério demais livros como “As Aventuras de Huck”, embora mesmo depois de ler o original não consiga concordar com Hemingway, que dizia ser esse livro o ponto de partida da literatura americana. Da mesma forma, hoje tenho certeza de que acabei por menosprezar a importância daquelas revistinhas porque não consegui resolver uma dicotomia curiosa: nas últimas décadas, uma progressiva estupidificação cultural mundial se esforça para elevar os quadrinhos a um patamar literário imerecido, o que me incomoda porque, no exagero contrário, nunca achei que sequer chegassem perto de literatura séria.

No fim das contas, o fato é que eu lembrei dos vândalos, mas não posso fazer ideia de todas as palavras que aprendi naquelas revistas, de lugares do mundo reais ou imaginários. Devo mais a elas do que consigo imaginar. E isso nem sempre é bom: se você quer me enrolar, é só me falar de um país qualquer cujo nome termine com “-istão”. Eu vou acreditar que ele existe.

Ao sol que arde em Itapuã

Entre 79 e 80 as pessoas ainda veraneavam em Itapuã; como na minha casa as coisas eram diferentes, fui morar ali, em frente ao Hotel Quatro Rodas, então em construção, numa rua perpendicular à que hoje se chama Passárgada. Diante da casa havia um grande areal que se estendia até o Abaeté; e para chegar à praia passávamos pela casa de Vinícius de Moraes, que acabou dando nome à rua que a separa do mar, rua da Curva do Vinícius.

A casa pertencia a um sueco, se não me engano cônsul honorário. Tinha nome como um estate inglês, Vila Niva, com placa no portão a lhe dignificar. Corria uma lenda de que ele morara ali com uma sueca em um andar e uma brasileira no outro. Devia ser só isso, mesmo, só uma lenda, mas gosto de achar que é verdadeira porque ela reafirma minha fé na humanidade.

Os fundos da casa davam para o terreno imenso onde ficava o bar de Juvená. Era o bar onde eu comia ostras, às vezes uma ou duas dúzias de uma vez só, e onde Fia Luna tocava seu atabaque nos fins de semana. Lembro de brincar algumas vezes com o filho de Juvená — Ricardo ou Rodrigo, um nome assim; mas geralmente eu brincava sozinho, porque aquele mundo de areia era grande o bastante para dar espaço à minha imaginação.

Havia um restaurante de caça no centro de Itapuã. Nunca comi lá, nem sei se existe ainda; mas se eu já tivesse comido cotia naqueles dias tenho certeza de que seria cliente fidelíssimo. Havia também uns botecos onde jukeboxes tocavam Odair José, Carlos Alexandre, Amado Batista, Altemar Dutra — aquela boa música brega dos anos 70, quando os artistas populares ainda tentavam fazer com honestidade e verdade o melhor que podiam, ainda que o resultado fosse um pastiche de jovem guarda e música romântica de seu tempo.

Havia também uma loja de caça e pesca. Foi lá que comprei uma vara de pescar — de bambu ainda, não era dessas modernas — e uma faca de caça, com cabo imitando marfim, que me fazia sentir o próprio Tarzan. Comprei também uma bússola, objeto mais inútil que comprei na vida, porque o que importava eu sabia: a direção do mar.

Tudo o que eu conseguiria pegar com aquela vara, e mesmo assim um ano depois, na Barra — lugar que sempre me tratou com o carinho e o amor maternal que eu merecia —, seria um baiacu pequenininho. Baiacu é rima, não é peixe.

A praia era delimitada pelo farol de Itapuã ao sul e por umas pedras ao norte. Era perigosa, violenta, e eu não costumava entrar nela. Mas entre as pedras a maré baixa formava uma pequena piscina natural, e era lá que eu passava dias quase inteiros, entre uma maré alta e outra. Um bocado de peixes nadava por ali, e havia um coral rosa numa de suas reentrâncias, na minha imaginação grande como as cavernas submarinas onde o Almirante Nelson e o Capitão Crane enfiavam o Seaview — ou ao menos o Sub-Voador.

Nunca consegui apanhar um daqueles peixes, mas uma vez arranjei um martelo e um formão e arranquei um pedaço daquele coral tão bonito; eu não sabia que era um ser vivo, e ninguém pode imaginar a minha tristeza quando vi aquele rosa dar lugar ao que parecia apenas um pedaço de areia dura — nem o meu arrependimento por ter destruído aquilo.

Mas do que mais lembro, mesmo, é do cheiro. O cheiro do mar e da vegetação de restinga, o cheiro da areia branca.

Havia lagartixas e calangos e tijubinas, os mais bonitos. Bonitos, mas muito difíceis de apanhar. Era mais fácil pegar as lagartixas comuns, que eram mais lentas e delas havia a literalmente dar com o pau. Me tornei um exímio caçador de lagartixas, já que não podia caçar as raposas que diziam haver por lá e pendurar suas peles na parede, como eu via penduradas em “Daniel Boone”.

Tudo isso pertence a um tempo que já passou há muito. O único problema é que o passado nunca morre de verdade, vence a todos, inclusive o futuro que invariavelmente se transforma nele.

Há alguns anos achei na internet uma faca bem parecida com a que tive, e comprei: hoje ela é pequena para minha mão. E agora, em vez da bainha de couro, vem numa bainha chocha de poliéster.

Itapuã é contramão para mim, lugar para passar quando chego e quando saio de Salvador — e a minha cidade não é essa em que os baianos hoje vivem e da qual reclamam diuturnamente, ela existe em outro tempo. Faz muitos anos que não ando por Itapuã; mas passando de carro dá para perceber que embora alguns marcos ainda estejam lá, como a quase centenária padaria Portugal, o bairro está cada vez mais caótico, e não devia ser à toa que Caymmi foi morar em Rio das Ostras, bem longe da praia que não abriga mais jangadeiros como Chico, Ferreira e Bento, e onde Rosinha de Chico não vigia mais as ondas, dizendo “Morreu… Morreu…”

Mas uns anos atrás, depois de uma dessas campanhas em que a gente se ausenta do mundo esperando que ao final ele melhore, resolvi passar uns dias ali. Me hospedei no Quatro Rodas, que agora se chama DeVille.

O cheiro ainda está lá, em algumas partes a areia branca ainda está lá, mas tem cada vez menos areia e cada vez mais casas, e o cheiro parece meio diluído em meio aos tantos não-cheiros da civilização que finalmente alcançou Itapuã. Fia Luna não toca mais, agora é nome de rua em Stella Maris. A casa em que morei foi demolida para dar lugar a um desses villages de casas quase geminadas que estão na moda. Onde havia uma casa grande e uma casa de empregados e muita areia e um bocado de árvores agora há oito casas, se contei direito; e o areal em frente há muito deu lugar a muros feios e casas feias, típicas daquela maldição que flagela os baianos e os condena a enfeiar a cidade o quanto podem, até deixá-la irreconhecível em sua fealdade. Da casa sobrou apenas um pedaço do muro de pedra e alguns coqueiros, agora enormes. Mais nada. Quem morou ali um dia escolheu o lugar para se perder do mundo na imensidão dos areais de Itapuã, mas o progresso chegou e trouxe o aperto da cidade para mais longe.

Mas é como eu disse, o passado nunca é totalmente passado, e passei umas duas horas na piscininha como se ainda tivesse oito anos, porque ela continua igual ao que era há tanto tempo. Os peixes continuam nadando ali, tranquilos porque sabem que ninguém vai conseguir pegá-los com as mãos.

Eu só não sabia que já não era o caiçara que fui um dia, e a pele não aguentava mais, e saí de lá com ela vermelha, queimando, e queimaria por mais alguns dias. Mas não estava triste. Porque no lugar de onde eu tinha tirado o coral quatro décadas antes a vida tinha voltado, e ele estava lá, rosa, como se nunca tivesse passado pelas mãos de um menino que ainda não sabia nada da vida.

Autobiografia não-autorizada de um blog

Sem alarde, este blog completou 20 anos em julho.

Comecei porque morava em Niterói e tinha tempo livre demais nas mãos e queria escrever de uma maneira diferente do texto publicitário.

Porque o texto publicitário clássico era assim.

Era curto, “paragrafal”.

E feito de pontos. Fodam-se as vírgulas.

O texto publicitário queria sempre vender alguma coisa a você.

Escrever um parágrafo longo cheio de vírgulas era libertador. Encadear sentenças era tão bom, tão bom. Além disso, eu queria poupar amigos para os quais eventualmente mandava longos emails sobre alguns assuntos aleatórios. Eu simplesmente sentia vontade de escrever sobre qualquer bobagem que me viesse à cabeça. E aquele era o tempo certo.

Embora weblogs fossem notícia desde pelo menos 2001, foi só em 2002 que passei a ler alguns. Na verdade, descobri esse mundo por motivos torpes e errados — nenhuma surpresa nisso, imagino: foi procurando pelas fotos de uma tal festa Giovanna infame, na qual tiraram e divulgaram fotos de gente em posições de safadeza e de ai-meu-Deus, que cheguei ao blog da Lolla Moon. Aquele foi o primeiro que li e gostei; ela tinha um jeito próprio de escrever, um modo inteligente e vívido de descrever — ou reinventar, eu nunca soube — a sua realidade. Lolla Moon era um personagem, aparentemente, mas era muito bom. Tinha vigor e verdade.

E assim chegou a hora em que resolvi escrever o meu próprio blog. Se chamava “Pensamentos Mal Passados”, e tinha um subtítulo: “Um pouco de nada, e nada de muito importante”. Seu endereço era http://rafaelgalvao.blogger.com.br; escolhi o Blogger brasileiro porque na época ele permitia a hospedagem de imagens, ao contrário do Blogspot, cujos usuários tinham que recorrer a coisas como o Photobucket; eu intuía que mais cedo ou mais tarde sumiriam com suas fotos.

Entre primeiros leitores estavam as poucas amigas a quem avisei que tinha começado um blog, a Daniela Parahyba e a Mônica do então Atos Falhos (depois Monicômio). Através da Mônica veio o Biajoni, que então tinha um mini-portal chamado Tiro & Queda em Limeira e se preparava para iniciar uma carreira de escritor.

Foi a Dani quem fez o primeiro tema personalizado do blog, de acordo com um layout que mandei para ela. Ali ele já perdeu o nome — que cá entre nós não valia nada —, dando início à minha pequena egotrip homônima. Ainda mantive o subtítulo por alguns meses, mas mesmo este sumiu nas brumas do tempo.

De certa forma, foi só quando virou “Rafael Galvão”, o nome de guerra desta velha marafona das palavras, que ele passou a fazer algum sentido. Tinha começado tímido, sem cara definida; o primeiro post era uma despedida do browser que tinha possibilitado a minha entrada na internet, o Netscape. Naqueles primeiros meses o blog era composto essencialmente por comentários bobos sobre o que me viesse à cabeça; olhando em retrospecto, era essencialmente um Facebook avant la lettre, como quase todos os outros blogs. Mas aqui e ali havia uma coisinha mais legal, e aos poucos ele foi tomando uma cara própria, os textos foram aumentando de tamanho e diminuindo em quantidade. Em agosto de 2003 publiquei 100 posts, a maioria curtíssimos. Em 2005, a média já tinha passado para um por dia, smepre publicados à meia-noite. Dois anos depois, uns três por semana. Não vou falar da frequência atual.

O Blogger.br era uma droga, e no início de 2004 decidi aproveitar o domínio que já tinha, por causa do e-mail, e passei o blog para hospedagem própria, rodando o Movable Type, um sistema de gerenciamento de conteúdo danado de chique na época mas que se perderia ao tentar descolar um troco de gente que não ganhava nada por escrever. O primeiro provedor era nacional, se chamava Sunhost e era muito ruim. Passei para um pequenininho americano, chamado AddAction, onde fiquei por anos. Finalmente, já nos estertores do que eu chamo de “primeira fase”, passei para o Bluehost, o melhor de todos, até que o dólar disparou e voltei para o Brasil, como emigrante fracassado.

Desde o início no Movable Type eu fazia meus próprios temas. A Dani, que nunca saiu do Blogger, não sabia mexer naquilo e eu tive que aprender na marra. O primeiro foi basicamente uma adaptação do modelo que ela tinha feito no Blogger, mas esses layouts me cansavam e durante algum tempo eu os mudava a três por quatro. Em 2006, o hábito da mudança periódica e a falta de tempo me fizeram, pela primeira vez, pegar um template pronto, embora eu ainda fizesse uma série de alterações. Em 2008, no entanto, um problema interno no provedor me fez migrar para o WordPress. E então a farra dos layouts acabou, porque a estrutura me parecia diferente, e eu já não sabia mexer naquilo nem queria aprender, e o jeito era pegar o que já estava pronto. Os templates posteriores foram gratuitos, encontrados no próprio WordPress, sem modificações. Infelizmente perdi virtualmente todos os primeiros layouts neste blog; alguns sobrevivem no WebArchive.

O blog começou a ser notado quando escrevi um post para o Kit Básico da Mulher Moderna. A Maneschy era minha amiga mas não sabia que eu tinha um blog; no entanto, no início de 2004, quando eu já morava em Aracaju, saiu algo sobre ele numa coluna d’O Globo, e ela veio me esculhambar por não ter lhe contado. Pouco tempo depois ela me pediu um post para o seu blog. “Mulheres Imperfeitas” (que depois republiquei aqui) fez um sucesso bem razoável, hoje inacreditável para quem lembra dos problemas graves que tive com um bando de feministas de caixas de comentários. Chega a ser irônico que o post que colocou este blog no mainstream da blogoseira fosse daqueles que agradam a 9 entre 10 mulheres, mas eu ainda não era o porco chauvinista que viria a me tornar pouco depois, e as moças gostavam de mim. Hoje, claro, apareceria alguém para dizer que o tal post é machista hétero patriarcal cis neurótico psicótico, mas naqueles dias o Facebook ainda não existia.

O post chamou a atenção do Alex Castro, que na época se escondia da polícia e tinha outro nome e escrevia o Liberal Libertário Libertino, um blog brilhante de que até hoje sinto falta, porque mesmo quando eu discordava absolutamente dele — e eu sempre discordo em quase tudo —, o Alex era, sempre foi, um grande escritor.

Através do Alex veio o Inagaki, que para mim é o sujeito que definiu o modelo do blog brasileiro, ensaístico, leve, sem um escopo definido e sem a preocupação de parecer uma coluna de jornal. Com o Ina veio uma explosão no número de leitores, o que sempre se dá em progressão geométrica: e em 2006, o blog tinha uma média de 3 mil visitantes únicos diários. De vez em quando fico impressionado ao ver que os anos entre 2006 e 2010 foram talvez os mais produtivos para este blog, e me pergunto onde arranjava tempo para escrever: nessa época, eu trabalhava feito um cão e tinha uma vida pessoal bastante agitada.

Uma “seção” que fazia algum sucesso eram “As Alegrias Que o Google me Dá”, em que eu dava respostas cretinas às perguntas esquisitas em mecanismos de busca que traziam pessoas aqui. O responsável por isso foi o Alex: foi ele quem elogiou a tal seção, e outros se seguiram. E como puta velha publicitário, a gente acaba tentando atender as preferências populares.

O mais curioso é que eu, pessoalmente, gostava mais de escrever as “Notícias Estranhas em um Blog Esquisito”, em que comentava notícias engraçadas. Isso só mostra que nunca consegui ter o dedo no pulso das massas. Eu não sei do que o povo gosta. E a esta altura da vida, isso não me importa.

Aquele período era o auge não apenas deste blog, mas de toda a blogoseira. Os primeiros diarinhos — mais ou menos nos moldes do Facebook de hoje — davam lugar a abordagens mais complexas. Acho que criamos, todos juntos, uma comunidade heterogênea e conflituosa, mas vibrante. Li muita gente boa ao longo daqueles anos; gente criativa, talentosa, gente engraçada e séria. São nomes demais para citar, mas é fácil lembrar da agonia romântica da Daniela Parahyba, da extrema sensibilidade caótica da Mônica do Monicômio; da ironia do seu marido, o Carlos Magalhães; a eterna busca do Marcos Donizetti, outro desses escritores talentosos que encontraram na facilidade de publicação um caminho; o Marcus Pessoa, que um dia ainda me convence a ouvir música eletrônica; a Lucia Malla que tem um dos melhores blogs de viagem ainda hoje; o Marmota e seu deslumbramento nerd diante do mundo; o Alexandre do Pinhead, cujo filho Valdemar eu vi nascer; a Carol do Appothekaryum, companheira de viagem em Botafogo e Copacabana; o Milton Ribeiro, gaúcho atípico; o Bia com um estilo próprio e instigante; o Reginaldo do Singrando, em seu bunker na usina de Paulo Afonso; o Allan com sua Carta da Itália e seus casos do grande Aldo, outro que vi mudar de vida ao longo desses anos; ao Ricardo, que chegou a morar um tempo em Aracaju justamente na época em que estava mais ocupado; Maray com suas reflexões maduras em seu Che Caribe; o Adriano, também chamado de Smart Shade of Blue e Hermenauta (criador, por sinal, do termo “blogoseira”), com sua lógica de engenheiro e seu humor de carioca canalha em Brasília; o Idelber sempre mercurial; a Luciana Rayol e seu lirismo adolescente e a devoção a Roberto Carlos no Cinta-Liga; o Bruno na simplicidade honesta do Ik Haat; a Viva, em blog nenhum e em todos os blogs.

São nomes demais para lembrar de todos. Mas nem eu, nem o Bruno, nem a Márcia vamos jamais esquecer uma belíssima noite de fim de outono no Belmonte. E é por dias como esse que escrever este blog valeu a pena.

Por causa de um post com um filminho meio canalha que o Bia tinha me mandado, arranjei uma briga com o que ainda chamo de pseudofeministas. Me indispus com boa parte da blogoseira de esquerda, que já naquela época caminhava célere para a estupidez comodista que se vê mais claramente hoje; e não esqueço que, naquele momento, o Hermenauta e o Pedro Dória foram os únicos que defenderam os princípios que justificavam aquela publicação. Sou grato a eles até hoje.

Sempre achei curioso que o período mais prolífico deste blog, entre 2005 e 2010, tenha justamente aquele em que mais trabalhei. Mais que isso, em 2006 eu estava comprando fiado e pedindo o troco; um incêndio tinha destruído minha casa, minha filha tinha afogado meu computador pouco antes; e ainda assim eu dava um jeito de escrever aqui.

Isso tem a ver com a única coisa de que realmente me arrependo. Segundo o Idelber, eu era famoso por não responder a comentários e por não comentar em lugar nenhum. É algo de que me arrependo. Hoje tenho a impressão de que isso soava como uma rudeza e uma grosseria desnecessárias. Em parte era pura falta de tempo, mesmo. Outra era a convicção de que os comentários deveriam estar em um espaço com moderação mínima — a única regra era não xingar outros comentaristas — e que não me pertencia. Houve uma época, de absoluto excesso de trabalho, que eu sequer conseguia ler todos. E assim não respondi a pedidos e perguntas que devia ter respondido.

Acho que o fato de eu ser um dos poucos blogueiros daqueles tempos heroicos que ganhavam a vida efetivamente escrevendo ajudou a definir a personalidade deste blog. Passei ileso (e pobre) pela onda de “monetização” de 2008. Nunca estive preocupado em ser cancelado, porque a verdadeira razão deste blog existir era o exercício do direito inestimável de dizer “foda-se” quando quisesse — o que eu certamente não tenho fora daqui. Para não dizer que nunca ganhei dinheiro com o blog, durante uma época coloquei anúncios do Google nos posts. Depois de um ano ganhei uns 200 dólares que foram parar na Amazon.

Mas um tempo é um canalha sádico, e ainda assim, o tom do blog mudou muito com o passar do tempo. Os textos ficaram maiores e mais sérios. Imagino que diante da abundância de textos sobre os mesmos assuntos disponíveis internet afora, eu tenha tentado escrever algo que fizesse alguma diferença, que não apenas repetisse o que se pode encontrar em outros lugares. Além disso, uma certa influência do mundo real que acaba me obrigando a ser um pouco mais cuidadoso, e isso era chato. Acho que já tinha mudado um bocado quando decidi acabar com ele.

Em 2010 tinha se tornado uma obrigação sem sentido, e fora isso eu estava realmente exausto. Não achava que tinha muito mais o que dizer nem me preocupava se alguém estava lendo. Olhando para trás, talvez eu não tivesse mais o que dizer, mesmo; a internet tinha mudado, as redes sociais se afirmavam e o ambiente que tinha possibilitado o surgimento dos blogs estava começando a desaparecer.

Quando anunciei que estava encerrando o blog, o Leo Bernardes, do Reinventando Santa Maria, escreveu um post que me deixa orgulhoso até hoje, apesar do exagero; a Luciana Rayol depois me diria que ficou chocada. Eu jamais imaginaria que havia gente que gostava dele tanto assim.

Mas eu gosto de escrever, e acabei voltando. Depois de tantos anos, o blog tinha passado a ser parte da minha vida; por isso voltei, mas sem a obrigação que eu mesmo me impunha. E ele vai ficar por aqui para sempre, acho; às vezes com um texto, às vezes não. Não precisa de mais que isso. Ele já está vivendo em um tempo emprestado, mas que bom: a este blog, que me deu alegrias, raivas e amigos, basta apenas continuar existindo, tornando possível que eu escreva algo quando quiser, ou não escreva quando não quiser. Não porque é ou deixa de ser lido: mas porque é parte indissociável de mim.

No entanto, há uma diferença entre o Rafael de 30 anos e o de vinte anos depois.

Uma vez, um leitor disse na minha cara que gostava da “arrogância adolescente” deste blog. Se eu tivesse bebido duas doses a mais eu o teria mandado fazer bom uso da sua bunda — mas ele era o governador de Sergipe e doido eu nunca fui. Hoje, muitos anos depois, vejo que ele tinha razão. Mas não é culpa minha: o resto do mundo é que me parece cada vez mais chato, mais sisudo, se leva a sério demais.

Mas não fui imune ao passar do tempo, e é claro que fiquei mais sério e mais chato. Não me incomoda, mas certamente diminui os encantos do blog. Me incomoda mais a falta de vontade de escrever sobre alguns assuntos que me interessam porque ele já foi debatido antes. Eu gosto da minha opinião, mas não a esse ponto. Mas não dá para deixar de notar que o blog perdeu o humor quase adolescente que vejo em posts antigos. Ficou mais sério, mais sisudo. Reclamão, não, que isso eu sempre fui. É como se eu tivesse passado a usar camisas sociais e sapatos o tempo todo.

Acho que tem um pouco de cansaço e de covardia também, mas parte disso é a mudança dos tempos, mesmo. O mundo ficou mais chato, mais policialesco, mais autoritário, e a internet é a grande responsável por isso. Há uma maneira para fazer as coisas, há uma noção de que ideias são certas — noção que me dá calafrios, porque é uma receita para a estupidez.

Vinte anos depois, blogs como este, basicamente conversa jogada fora numa espécie de bar virtual, foram perdendo o sentido. Nunca tive muita certeza da razão. Certo, a profissionalização dos blogs, sua transformação quase em “jornais alternativos”, ajudou. Mas no fundo não sei, de verdade, se é porque as pessoas já não os leem ou porque seus autores não escrevem mais; o fato é que Facebook e Twitter ocuparam esse espaço, e mudaram a forma como a gente se expressa. Não é à toa que todos os atuais leitores do blog o acompanham praticamente desde o início. Esse é o maior elogio que eu poderia receber, mas é também indício que não há novos leitores para esta bodega. O ambiente que criou os blogs acabou, e não volta mais.

Mas ainda acho que blogs foram a melhor rede social que a internet já inventou. O volume de gente talentosa que soube da existência uns dos outros é enorme, e não vai mais se repetir. Era isso que fazia daquele mundo algo que, até hoje, acho sensacional: os diálogos que se estabeleciam, de maneira mais elaborada e instigante que um postzinho no Facebook e comentários rápidos.

O Facebook, e depois o WhatsApp e Instagram, destruíram o que o Hermenauta chamava de blogoseira. A ideia de textos mais densos em ambientes abertos, a que todo mundo poderia chegar por acaso, deu lugar a ambientes controlados, “plataformas”, perfis de Facebook apenas para amigos, newsletters para assinantes. Acabamos dando preferência a lugares onde os leitores são cativos, onde os textos são menores, onde a pressa da informação ou a mera autoexposição são atendidas instantaneamente. Nos conformamos com nichos pré-determinados. Para todo mundo, é mais fácil escrever no Facebook que num blog, que demandava mais tempo, mais pensar. Mas isso colocou as pessoas em guetos particulares minimamente conectados — quase o oposto daquilo que os blogs representavam em seu auge, na segunda metade dos anos 2000. O melhor dos blogs, o diálogo e as conversações que ele possibilitava, desapareceu. Não é à toa esse diálogo de surdos em que se transformou o debate público, das gentes comuns. Cada um falando para sua própria plateia, pregando para convertidos porque não é, no fundo, o debate que importa; e nessas horas eu tenho saudade dos xingamentos que eu recebia.

O mundo, ou ao menos a franja de mundo em que eu me situava, está mais tribal, mais puritano, medíocre. As pessoas têm medo de rir do que os outros definem como impróprio. Algo que acho inadmissível — a ideia de ofensa pessoal a grupos — se tornou a norma. A ideia estúpida de que a vítima tem sempre razão, quando associada à noção de que vítima é todo aquele que se declara como tal, embota a sociedade. Ou seja, ficou feio dizer: “Eu não quis te ofender, sequer sei da sua existência. Se você se ofendeu com o que eu penso, foda-se”.

Para mim, isso é um problema. Eu perdi a conta das pessoas a quem este blog ofendeu. Principalmente goianos, neopolitanos, astrólogos de Maria e garotos de pinto pequeno.

No fim das contas, o que realmente importa neste blog é que eu ri muito. São mais de dois mil posts, dos quais uns 100 são muito bons. E por isso, 20 anos depois, sempre que alguém me pergunta por que não escrevo um livro, a pergunta me soa sem sentido.

Eu já escrevi.

A fome

Gilson arregala os olhos:

— Mas até cachorro?

— Ué, eu não teria problema nenhum. Eu não como porco?

— Mas, poxa, você não tem a ligação emocional que se tem com um cachorro. Você comeria o Fidel?

E eu lanço um olhar extremamente triste para o meu cachorro, ao meu lado.

— Depende da fome, Preto… Depende da fome…

Reencontrando os Clássicos da Literatura Juvenil

No último Natal consegui me dar um presente que procurava havia muito tempo.

Eu tinha sete anos, quase oito quando cheguei em casa e havia uma encomenda para mim. Naquele dia específico as pessoas estavam com raiva desta pobre criança, porque aparentemente eu tinha desaparecido a tarde toda, com um amigo. Era injustiça, porque não procuraram direito: tivessem ido ao Porto da Barra e nos encontrariam mergulhando do quebra-mar, aproveitando a maré cheia do fim de tarde.

Jailton, o amigo que estava comigo, ganhou uma surra. Eu ganhei um esporro e livros. Minha avó tinha mandado do Rio uma caixa com uns quinze volumes de uma mesma coleção, “Clássicos da Literatura Juvenil”. Os números dos livros eram descontinuados, e isso me deu a certeza de que havia mais volumes. Eu estava certo, e algumas semanas depois chegaria outra remessa: eram trinta, ao todo.

Eram livros belíssimos para mim: capa dura, bem ilustrados, um cheiro único e inesquecível. Nos três anos seguintes eu leria todos os eles, alguns muitas vezes. Só não li então o número 21, “Robinson Crusoé”, que caiu do caminhão numa mudança, e “Aventuras de um Petroleiro” porque me parecia chato — quem em sã consciência deixaria de reler “As Aventuras de Tom Sawyer” para saber das desventuras de um navio? Eu os leria anos depois, mas não seria a mesma coisa e eles não fazem parte da minha infância — não, mentira: a ausência de “Robinson Crusoé” faz, sim, parte dela.

Como vieram em levas diferentes, desde o início tive a impressão de que havia mais do que apenas aqueles trinta. Essa impressão durou anos, e aumentou em 80, 81, quando comprei dois livros de banca, “O Corsário Negro” de Salgari e “O Máscara de Ferro” de Dumas. Eles tinham muitas semelhanças com a minha coleção, embora fossem brochuras e pertencessem a outra série, “Grandes Aventuras”: mas era o mesmo estilo de capa, a mesma estrutura, até a mesma tipologia. Só fui confirmar essa desconfiança no final dos anos 80, quando achei o número 38 na casa de um amigo. Eu estava certo desde o início. Eram cinquenta volumes, quase o dobro do que tinha embalado a minha infância. Mais tarde, cheguei a comprar alguns que achava em sebos, mas eles não me interessavam mais, e eu comprava para dar de presente.

Com o tempo a minha coleção foi se deteriorando e sumindo. Depois, morando no Rio, eu os encontraria em absolutamente todos os sebos a que ia, custando 2, 3 reais. Mas nunca a coleção inteira, e nunca em bom estado.

Com a chegada do Mercado Livre passei a procurar por ela com alguma regularidade. Mas as que apareciam eram sempre esculhambadas, degradadas em excesso pelo tempo, ou excessivamente caras. A essa altura os livreiros entenderam que só quem procura por esses livros é gente nostálgica que quer recuperar um pedaço de sua própria infância e que, naturalmente, está disposta a pagar mais por isso; só não entendem que nenhuma infância vale o preço que eles passaram a cobrar, e que criança é bicho chato que só merece cascudo. Além disso, eu nunca quis a coleção completa. Queria apenas os trinta primeiros.

E então, no fim do ano passado, apareceu uma coleção incompleta, mas com todos os volumes que eu queria em excelente estado e mais uns 15 de lambuja, pelos quais não me importaria em pagar.

Feliz Natal, Rafael.

***

Anos atrás, falando dessa coleção aqui no blog, um post comparando-a à Coleção Vagalume gerou uma pequena polêmica, desnecessária. As pessoas ficam ofendidas quando você não liga para algo que lhes é importante, exigem um respeito indevido; se eu disser que Anitta é lixo, o que sinceramente acho, vai aparecer alguém para falar da minha estupidez, do meu preconceito, do meu elitismo, do meu mau gosto. Nada contra a Vagalume (li quase todos os publicados até o início dos anos 80, e alguns, como “Cabra das Rocas”, são excelentes), mas não dá para comparar Marcos Rey a Alexandre Dumas, mesmo aguado para crianças. Revendo a minha coleção, passando os olhos em todos eles para reencontrar palavras velhas conhecidas, essa certeza aumentou.

Dei sorte de ler esses livros quando era criança. Se tem algo por que devo ser grato é pela chance de passar a infância em meio a essa coleção. A literatura moderna só existe por causa de livros como esses. O século XX viu se esgotarem as possibilidades do grande romance, e foi forçado a ir além, a lidar com outras formas de contar uma história, porque autores como Dickens, Dumas ou o Balzac que não está aqui contaram o que havia para ser contado. Proust, Mann levaram o romance adiante por falta de opção, porque livros como os desta coleção já tinham sido escritos. Posso apostar que Joyce só escreveu Finnegan’s Wake porque Cooper já tinha escrito “O Último dos Moicanos”.

Mas há um outro aspecto que me chama a atenção. Passar os olhos sobre essa coleção, se me traz de volta à infância, também mostra que vivo em outro tempo.

O fato é que, parcialmente graças a esses livros, boa parte dos meus referenciais estiveram sempre no passado, e o faroeste sempre foi mais interessante para mim do que, por exemplo, ficção científica — mesmo os livros de Verne faziam parte do passado, o futuro do pretérito. Por isso não me interessei por “Aventuras de um Petroleiro”. A II Guerra Mundial ainda era muito recente, havia acabado menos de trinta e cinco anos antes; é menos tempo do que o que se passou desde que aquela caixa de livros chegou lá em casa. E este é um mundo totalmente diferente. Daqui a pouco se comemora o centenário da invasão da Polônia pela Alemanha. Veteranos da II Guerra, se ainda existem, não estarão vivos em quinze anos, e nenhuma informação nova poderá ser produzida, e a guerra que definiu o mundo em que cresci será algo que definitivamente ficará no passado, congelado para sempre. As bancas em que esses livros eram vendidos vivem hoje seus últimos dias, desaparecem uma a uma como lemingues se jogando de um penhasco.

***

Infelizmente a coleção que comprei não tem mais o cheiro da que minha avó me mandou mais de 40 anos atrás, e do qual ainda lembro. Mas reconheço todos esses livros. Sempre soube de cor a ordem de cada um deles, e há uma série de nomes, como Miécio Tati (que ainda hoje pronuncio Táti), Marques Rebelo, Carlos Heitor Cony, Herberto Salles, Paulo Mendes Campos, Virginia Lefèvre, até mesmo Orígenes Lessa, que conheci ali e que foram meus amigos de infância. Eram os responsáveis pelas adaptações. Alguns deles sabiam até onde ir em termos de supressão de informações — Miécio Tati, por exemplo, adaptou “O Conde de Monte Cristo” e retirou de maneira bastante sutil as referências à homossexualidade da filha de Danglars; Oswaldo Waddington julgou melhor não nos informar que Emily foi seduzida por Steerforth em “David Copperfield” e virou puta. Outros não: Herberto Salles omitiu a morte de Beth em “Mulherzinhas”, e não havia necessidade disso.

A internet me mostrou que não fui o único a ser profundamente influenciado por esses livros. Uma moça dedicou um blog inteiro a eles.  Dia desses o Sergio Leo, numa discussão no Facebook sobre o racismo de Monteiro Lobato (discussão para mim excessivamente adulta e acadêmica, porque tenho a impressão de que crianças hoje se interessam tanto por Monteiro Lobato quanto por Huckleberry Finn), falou da coleção. E um repórter da Globo, em suas aparições em casa durante a pandemia, ostentava orgulhosamente esses livros em lugar de destaque na sua estante.

Já vi internet afora gente lamentando que a “Clássicos da Litertura Juvenil” deveria ser republicada. É bobagem. As pessoas já não se interessam por esses livros, porque eles dialogam com outro tipo de sensibilidade, e com outro tempo. A coleção, por exemplo, traz dois livros de Zane Grey, e não foram poucas as vezes em que, caindo de algum cavalo, me imaginei um Nevada ou um Ben Ide em dia de pouca sorte. Muitos dos seus livros de faroeste ainda estão no prelo nos EUA. Mas eu realmente não compreendo que uma criança urbana brasileira hoje tenha algum interesse nisso. Esse mundo não lhes pertence mais, eles seguiram adiante. Videogames, redes sociais e maratonas de séries na Netflix vêm antes de livros; e se os leem, garanto que preferem Harry Potter ou Percy Jackson a mosqueteiros seiscentistas usando talabartes e espadas.

Em algum momento, imaginei que deveria ter esses livros para que meus filhos os pudessem ler. Vã esperança. Como eu disse, eu não esperava que o mundo continuasse girando e as pessoas perdessem o interesse por coisas de duzentos, trezentos anos atrás. Quer dizer: ninguém, não. Só eu, bobo a ponto de comprar de novo aqueles livros que li na infância, apenas para poder passear pelas suas páginas, e reencontrar a infinidade de pedaços de texto que nunca esqueci.

A solidariedade do “trade”

Nos últimos dias andou circulando nas redes esse card com um apelo do trade turístico.

Sinto informar, mas eu quero é que se fodam.

Eu tinha uma viagem a Roma marcada para ontem. Há algumas semanas, quando a chapa por aquelas bandas começou a ficar realmente quente, liguei para a TAP tentando remarcar as passagens para novembro. Até podia, mas teria que pagar a diferença tarifária e taxa de remarcação. No fim das contas, as passagens sairiam pelo triplo do preço original. E se cancelasse não receberia nenhum tipo de reembolso porque, compradas em novembro do ano passado, elas tinham preço promocional.

Não adiantou argumentar que o adiamento era por uma questão de saúde pública, etc; eu estava por minha conta e o prejuízo, em qualquer caso, seria só meu.

Naquela hora não vi nenhum oferecimento de ajuda ao turismo, nenhum pedido de união e de solidariedade.

Eu desisti e já estava conformado em acionar a empresa na justiça. Só que a Terra é plana, mas dá voltas. Veio o lockdown italiano e a TAP se viu obrigada a cancelar todos os voos para a bota.

Na última semana, passei literalmente horas pendurado ao telefone esperando para resolver a questão do reembolso. Foram dezenas de ligações, que sempre caíam, às vezes depois de mais de uma hora ouvindo a muzak terrível deles, técnica que imagino feita justamente para fazer você desligar em desespero. Agradeço à boa alma que inventou o viva-voz, sem o qual eu não conseguiria passar por essa via crúcis. Só fui conseguir falar com eles ontem à noite, coincidentemente quase na hora em que deveria estar embarcando.

São essas companhias que vêm agora pedir solidariedade e ajuda. As mesmas que cobram pela sua bagagem enquanto mentem dizendo que vão baixar o preço da sua passagem. Que têm lucros bilionários e quando a coisa aperta correm atrás do dinheiro do Estado.

Que se fodam.

Ah, mas não é bem assim, dizem. Tem os pequenos, dizem. As agências de turismo, o receptivo, etc.

O problema é que aí a coisa é ainda pior.

É inacreditável que não percebam o quão canalha e irresponsável é esse apelo para que as pessoas viajem em um momento tão grave. Remarcar para quando, se ninguém sabe quando essa crise Walking Dead termina? Deixar o dinheiro com eles enquanto o governo autoriza empresas a reduzirem pela metade os salários de doentes?

O que eles estão pedindo é que você salve a pele deles, e que se danem a saúde e mesmo as vidas das outras pessoas. Inclusive a sua. Neste exato momento, centenas de pessoas estão presas em cruzeiros e quetais porque, sem tirar a responsabilidade desses idiotas — e daqueles que cederam às pressões embutidas no “nós não vamos devolver o dinheiro”—, essas empresas exerceram uma versão muito própria desse tipo de solidariedade, como sempre.

Eu importo pouco para eles porque não sou cliente de agências de turismo há muito tempo, desde que, para evitar trabalho e aproveitar a suposta expertise do pessoal, fui em uma e pedi para organizarem uma viagem. Me sugeriram hotel em Whitechapel com preço de Bloomsbury, além de uma série de penduricalhos que só serviam, obviamente, para aumentar a comissão da vendedora. Saí de lá com um “amanhã a gente compra” que, se funcionava para minha mãe, deve funcionar para mim também.

Afinal, que solidariedade é essa? Eu me pergunto quanto dessa solidariedade foi posta em prática antes. Comigo eu sei que não foi.

Me pergunto quanto dessa solidariedade é exercida no dia a dia. Quantos deles deixam de pegar Uber para pegar um táxi e ajudar um defensor que tem uma cota diária de dinheiro para entregar ao dono do táxi? Indo mais longe, quantos deles se juntaram aos funcionários públicos na defesa de suas aposentadorias? Quantos protestaram contra a reforma da Previdência? E é melhor não falar da reforma trabalhista, que sei que eles apoiam em sua quase totalidade.

Não, não. Eu não sou solidário a eles. Fodam-se e boa viagem.