Muitas, muitas eras atrás o Marcus ficou puto comigo porque falei mal da Bizz. Eu disse que ela era “uma das revistas mais medíocres e provincianas da história do país, onde músicos frustrados escreviam sob pseudônimos resenhas sobre suas próprias bandas, que só eles ouviam, e se deliciavam em anunciar bandas de um buraco qualquer da Inglaterra, que ninguém jamais ouviria.”
Com elegância, o Marcus apontou qualidades na Bizz que eu, claro, não quis mencionar. A principal era o fato de a revista ter sido a mais importante formadora de público roqueiro dos anos 80, a triste geração de que o Marcus e eu fazemos parte.
Lembrei da revista dia desses porque achei nos meus arquivos um documentário em vídeo chamado “Bizz – Jornalismo, Causos e Rock and Roll”. Já tinha visto, mas tinha esquecido porque ele é francamente ruim: mal concebido, mal dirigido, mal fotografado, mal editado. Mas oferece ao menos um vislumbre do que foi a revista, porque traz depoimentos em primeira mão de gente que participou de sua trajetória, ainda que em entrevistas mal-conduzidas.
Em retrospecto, a Bizz chegou um pouco atrasada ao cenário, porque havia pelo menos três anos que o rock brasileiro se consolidava no alto das paradas de sucesso. Mas esse atraso era apenas relativo. O Rock in Rio tinha sido, como dizem, um divisor de águas. Durante todo o final de 1984 a Globo tinha exibido, diariamente, o “Minuto do Rock”, num esforço para garantir o seu investimento como patrocinadora do evento, e começando um processo de doutrinação que atraiu muita gente — como eu. Havia um alvoroço generalizado, que se combinava com a expectativa pelo fim da ditadura. O festival coincidiu com a eleição de Tancredo Neves, foi um sucesso e em 1985 o rock era a trilha sonora do país.
Na época, pululavam nas bancas, especialmente do sudeste, uma infinidade de revistas normalmente malfeitas e sempre sem distribuição nacional adequada. Sem ter conhecido a Pop, revista da Abril que, pelo que deduzo das capas, era uma mistura de revista Bizz e Capricho, as únicas publicações a que o país tinha acesso regular, se não me falha a memória ruim, eram a Roll e a Somtrês.
A Roll era uma revista menor e malfeita, mas dedicada exclusivamente à música. A Somtrês se dividia entre música e aparelhagem de som. De modo geral era uma revista mais sólida, e fez algumas boas reportagens. O problema é que ela era velha, feita para anciãos esnobes que podiam gastar dinheiro; não tinha como público-alvo o jovem urbano roqueiro. Ainda assim, muitos dos críticos que mais tarde chegariam à fama de nicho da Bizz já estavam ali: José Emílio Rondeau, Roberto Muggiati, Maurício Kubrusly, talvez a Ana Maria Bahiana, uns tantos por aí.
A revista que a Abril lançava em agosto de 1985 finalmente mirava esse espaço específico. Com um projeto gráfico inspirado na estética new wave, demorou alguns meses até ela consolidar um formato próprio; em seus primeiros números, trazia seções sobre cinema, instrumentistas, até cifras de músicas, coluna de fofocas e de heavy metal.
O sucesso da revista foi absoluto. Até hoje, muita gente escreve showbiz com dois ZZ, por causa de uma de suas seções. E então é aquilo que o Marcus disse: a revista introduziu a abordagem cultural paulista ao resto do país com uma eficiência maior que a Globo, por exemplo — que, aliás, nunca escondeu o seu carioca way of life. Atenta ao que acontecia lá fora, especialmente na Inglaterra, e tentando atender a vários nichos da cultura jovem urbana, a Bizz inegavelmente aproximava os grotões do mainstream paulista.
Havia um descompasso enorme. Um exemplo bobo: até ler a matéria de capa da edição de estreia, eu não fazia ideia de que Bruce Springsteen fazia tanto sucesso, ou que seus shows duravam quatro horas. Foi o não reconhecimento desses aspectos positivos que irritou o Marcus, e isso é compreensível.
Porque com todos os defeitos, a importância histórica da Bizz é inegável. A época de ouro do rock brasileiro foi o último momento em que a música conseguiu unificar e dar voz a uma geração inteira: depois disso veio o caos, a fragmentação em nichos, isso que a gente vê hoje e que nos surpreende a cada dia, toda vez que descobrimos que um sujeito de quem nunca ouvimos falar, e cuja música é feita inteira no computador, faz shows para dezenas de milhares de pessoas que cantam suas letras inanes do início ao fim. Musicalmente, a sensação que se tem é que chegamos ao apocalipse. O cenário da música brasileira nunca foi tão ruim. Diante de quatro tão tétrico, fica mais fácil achar que a Bizz eternizou em tinta impressa uma época que hoje parece dourada. De maneira às vezes deturpada, muitas vezes canalha, ela foi uma coadjuvante importante nesse processo de uniformização cultural de que, às vezes, tanta gente sente falta, eu inclusive.
Mas importância histórica o nazismo também teve. A Bizz trazia também o que São Paulo tinha de pior: um colonialismo cultural abjeto, uma ignorância profunda acerca do que está além de seus horizontes e que, não por coincidência, é talvez a característica definidora da “crítica de rock”, de Christgau a Lester Bangs. E a canalhice pura e simples, descarada, sem vergonha. E a inconsistência, a falta de um padrão estético claro e honesto, uma glorificação da subjetividade quase absoluta. Um exemplo são dois comentários, separados por alguns anos, que José Emílio Rondeau fez sobre dois discos de McCartney:
Talvez fosse disto que o velho Macca precisava para neutralizar a dormência criativa que o vinha atacando: cabeças diferentes, opiniões externas. Pete Townsend, Phil Collins, Carlos Alomar (guitarrista de Bowie), Eric Stewart (ex-10cc) e zilhões de artistas de primeiro escalão deram sua contribuição ao melhor disco de Paul desde… quando, mesmo? Com Eric Stewart repartindo a parceria em 60% das músicas e Hugh Padgham polindo uma produção ultra-moderna, Paul ressuscitou. Durará? (José Emílio Rondeau, Bizz 16, novembro de 1986, sobre o Press to Play, considerado por muitos o seu pior álbum)
Sete anos depois…
“O Paul McCartney quer virar Gipsy Kings”, disparou um adolescente fã de grunge, depois de ouvir pela primeira vez “Hope of Delivery”, uma das faixas “politizadas” do novo álbum do velho Macca. Talvez o menos ruim do últimos discos lançados por Paul em dez anos, Off the Ground é uma tentativa do ex-Beatle (êta, sombra difícir) de recuperar sua credibilidade artística/musical. Mas o máximo que consegue é ser apenas suportável ou parecido com alguém. Maybe next time… (José Emílio Rondeau, Bizz 93, abril de 1993)
Talvez um exemplo do que ela tinha de melhor e pior seja a seção a que o Marcus se referiu, a Porão, que em toda edição trazia duas bandas gringas e duas brasileiras ainda desconhecidas.
Na verdade, as gringas só eram desconhecidas porque não tínhamos acesso ao que se fazia lá fora. Mas até aí tudo bem, era esse o papel da revista em tempos de Telex. Da grande maioria das brasileiras, no entanto, nunca mais ouviríamos falar — porque aí era o negócio dos amigos, as canalhices a que me referi no texto original.
Eu fui um leitor assíduo da Bizz, já partir do número 1. É uma revista que ajuda a definir os meus anos 80. A última edição que comprei foi a de julho de 1989, quando ela mudou sua logomarca pela primeira vez: trazia Prince na capa e uma entrevista razoável com Paul McCartney. Mas eu já tinha deixado de comprá-la regularmente desde o ano anterior. A Bizz inicialmente me interessava porque me falava de coisas que eu não tinha ouvido, e nisso ela foi um guia cuja importância eu não posso esquecer; mas no fim dos anos 80 eu já tinha ouvido a música que ela cultuava, e não gostava dela.
A partir daí não sei mais nada sobre a revista. O documentário mencionado acima dá um resumo razoável sobre sua trajetória: a revista mudou de nome para Showbizz, decaiu, decaiu mais, deixou de ser publicada, voltou com o nome original. À medida que o rock ia perdendo espaço para outros gêneros, aparentemente ela se dirigia a um nicho cada vez menor e mais desinteressante, ignorando o resto da música que se fazia no mundo lá fora. Enquanto a Bizz olhava para porões em Manchester o país gestava uma revolução. Em Recife o mangue bit tomava forma, o tecnobrega se consolidava em Belém, e durante toda a sua existência a revista ignorou a evolução constante da música baiana, apenas para dar exemplos que conheço razoavelmente.
A internet jogaria a pá de cal sobre a Bizz, escancarando o seu papel de mero mensageiro para a colônia. Mas agora ninguém mais precisava de uma intermediária, a revista não tinha por que continuar existindo.
A geração formada pela Bizz parece trazer, ainda hoje, essas características. Você vai encontrar por aí muitos roqueiros decadentes lamentando o fim do ciclo roqueiro no país; dizendo que quando o sertanejo tomou conta das paradas no início dos anos 90 era resultado da crise estética da era Collor, ou então que o crescimento e enriquecimento da classe C jogou o padrão estético do brasileiro na latrina — como se aquelas bombas dos anos 80 fossem melhores. Mas se alguém olhar com um tico de atenção as paradas musicais dos anos 80, verá — especificamente nas paradas paulistas — a ascensão lenta e constante desse novo sertanejo, modernizado, maleável às influências musicais de seu tempo como qualquer outra. Enquanto o rock se esgotava em seu universo da classe média urbana, o sertanejo crescia oferecendo respostas musicais e líricas a um universo muito maior de brasileiros.
Disso eu sempre soube. Mas acho que faltava reconhecer que tudo isso, ao menos em parte, foi influenciado pela Bizz. Hoje ela pode ser lida neste site, que eu de vez em quando frequento quando bate alguma onda de saudosismo. Depois de velho, passei a gostar da revista de novo.
Essa conversa rendeu 😂
Você tem razão sobre o colonialismo, mas eu acho que a fase “ShowBizz” foi uma tentativa de olhar mais para o Brasil, inclusive lembro de uma grande reportagem sobre a black music brasileira dos anos 70.
Não lembro quando parei de acompanhar, mas acho que foi em 1998, quando surgiu o Napster.
O Napster mudou tudo né. A gente podia baixar a música que quisesse, não precisava mais de “gurus” pra nos guiar.
Não sei se já conversamos sobre isso, mas a Bizz teve uma “sobrevida” meio constrangedora no Orkut. Na comunidade da revista tinha vários dos jornalistas de lá… e aí eu fiquei percebendo como eram pessoas mesquinhas, reacionárias.
Em pleno 2004 eles deploravam o download de músicas. Sentiam que perderam o já citado status de “gurus”.
Eles realmente achavam que tinha que ter a catraca do dinheiro pra comprar o disco.
Não sei se eu te contei, mas nos anos 80 eu visitei um amigo meu, e a família dele tinha bastante grana, e eu vi no quarto dele um monte de discos que eu queria ter, ou até mesmo queria conhecer, queria ouvir, mas não conseguia porque ninguém tem dinheiro pra comprar tanto disco.
Eu me senti bem triste nesse dia.
Quando o download de músicas veio, eu finalmente me senti “completo”, tive um adolescência tardia.
Nos anos 2000 teve uma bela geração de indie rock (Arcade Fire, Killers, Interpol, etc) e eu vivi isso intensamente, porque eu baixava todos os discos e consegui curtir tudo.
A fragmentação é natural, todo mundo baixa o que quer. Embora o mainstream esteja péssimo, ainda há muita música boa sendo feita. Aí está a minha grande divergência com você, hehehe.
Estou tentando aos poucos me abrir para o pop brasileiro, e tem coisa boa, mas… tem muita música no mundo 😂 Não dá pra ouvir tudo.
Eu não peguei a fase Showbizz. Agora, mesmo a black music é um fenômeno do Sudeste. Enquanto isso ela ignorava o que surgia fora do eixo: o axé, o tecnobrega, o forró eletrônico, e ignorava a maneira como o sertanejo crescia ns rádios paulatinamente ao longo dos anos 80. Não que eu goste de qualquer desses ritmos, mas são fenômenos culturais que ela ignorava. Mas é como eu disse: roqueiro é sempre ignorante.
Você falou sobre o amigo com muitos discos e eu lembrei de um amigo que é responsável por muito do que conheço de música. Vou escrever sobre ele. Mas isso me lembrou que hoje vejo gente como o Régis Tadeu e outros fazendo vídeos em quartos cheios de discos, paredes inteiros. Ninguém tem dinheiro para comprar tanto disco. Eles ganhavam das gravadoras, então a visão sobre a questão financeira da distribuição de discos é diferente, claro. Tem o interesse próprio nisso. Acho inclusive que essa tara doentia por vinil é reflexo disso. Quanto à mesquinhez dos jornalistas, acho que você me falou sobre isso. Mas isso já estava claro na revista, desde sempre.
E eu até acredito que exista música boa sendo feita. O que eu reclamo é que não há música nova, que aponte caminhos sólidos, como houve entre 1920 e até mesmo os tenebrosos anos 80. Para mim, o rock se esgotou já nos anos 90. O jazz, bem antes. Blues nem se fala, porque eu cresci num tempo em que as pessoas elogiavam Robert Cray. E poucas coisas são mais chatas que a MPB feita hoje em dia. Isso não impede que se ouça um disco e goste do que se está ouvindo. Mas falta aquela sensação de que há uma estrada longa à frente.
O que eu acho de indie rock é que, pra gente como eu, ele é confortável porque fala numa linguagem a que eu estou acostumado, que é do rock e do pop. Mas só isso. Não me diz, nunca disse, nada novo.
Belo relado da sua adolescência tardia, Marcus.
Eu sempre fico pensando no caráter híbrido da história de muitos de nós. Na vivência no mundo analógico e na introdução ao mundo digital, e minha experiência é igual a de Marcus, a internet me trouxe tudo e me proporcionou tudo. A pirataria, na verdade! Em termos de música e arte em geral, mas também em termos de conhecimento.
“a triste geração de que o Marcus e eu fazemos parte.”
Triste: por incrível que pareça, essa é a palavra que me vem a mente hoje quando penso na década de “80 com seu rock e tudo mais.