Capitão América

Descobri, numa dessas descobertas tardias que velhos como eu fazem de vez em quanto, alguns sites que disponibilizam revistas antigas escaneadas.

O trabalho realizado pelo Quadradinhos PatópolisOnomatopéia DigitalRapadura Açucarada e Rock & Quadrinhos, entre outros, é inestimável. Escaneando e disponibilizando essas revistas antigas na web, elas realizam um trabalho valoroso e imprescindível. Revistas em quadrinhos já extintas, manuais Disney, a história da Marvel e da DC; tudo isso está lá, disponível gratuitamente, em um serviço público de preservação da memória editorial do país que supera, de longe, o de muitas bibliotecas. Os donos desses blogs e seus colaboradores são abnegados que compartilham com os outros suas coleções, material que gente menor tenta apenas vender em sebos por quaisquer 5 reais. Já perdi a conta do que reencontrei ali — coisas que tinha lido há mais de 30 anos, que tinham sido parte da minha formação, mas que não tinha esquecido totalmente. As pequenas felicidades que esse pessoal possibilita são inestimáveis, e eu gostaria que eles soubessem disso.

Acima de tudo, tudo isso tem um grande valor afetivo para muitas pessoas, e eu certamente estou entre elas. Reencontrar essas revistas, depois de tanto tempo, é algo que me faz mais feliz e mais certo do que fui. Elas atualizam e corrigem minha própria cronologia; me ajudam a me situar novamente no tempo, avivam e refazem minhas memórias.

Foi lá, por exemplo, que reencontrei as revistinhas do Capitão América.

Naqueles primeiros anos da década de 80, quando comprei virtualmente todas as revistas de super-heróis que a editora Abril publicava (eu não gostava da RGE, hoje Globo, por causa do papel muito inferior), o Capitão América era o meu preferido.Tudo começou com ele. Embora eu tivesse comprados outras esporadicamente ao longo dos anos anteriores, foi a Capitão América 20 que comprei num sábado de fevereiro ou março de 1981 porque era a mais barata na banca, e que me fez desenvolver uma paixão por histórias de super-heróis que duraria muitos anos. A Capitão América e a Heróis da TV acabariam, nos anos seguintes, substituindo as revistinhas Disney que eu comprava até então; tantas revistas já não caberiam no meu orçamento e, mais que isso, não caberiam mais na minha idade. Olhando agora, tantos anos depois, representaram um ritual de passagem. Quem diria. Cada um tem o que pode. Gary Grimes tem a Jennifer O’Neill; eu tive Stan Lee e John Buscema. Coitado de mim.

Mas na época isso interessava pouco e eu não sabia que aqueles super-heróis que passei a ler — Capitão América, Homem de Ferro, Surfista Prateado, Thor, Capitão Marvel, Mestre do Kung Fu, Punhos de Ferro, sei lá o que mais — eram o segundo escalão da Marvel. Para mim, isso não interessava — até porque eu já conhecia boa parte deles dos desenhos animados exibidos pela TV Tupi. Mais tarde, em 1983, a Abril conseguiria o creme, que na virada da década estava na RGE, e passaria a publicar as revistas do Homem-Aranha, do Hulk e todos os outros super-heróis. Curiosamente, para mim foi o início do primeiro fim. Em algum momento de 1984 ou 1985 eu deixaria de comprar essas revistas. Voltaria a comprá-las mais tarde, intermitentemente — até recentemente, por sinal —, mas jamais voltaria a ser como antes.

De qualquer forma, durante muitos anos, muito tempo depois de ter abandonado e esquecido suas histórias, eu não entendi por que gostava do Capitão América — e por que, de todos os super-heróis existentes, foi justamente ele a servir de porta de entrada para mim nesse mundo. Havia outros super-heróis por aí, personagens mais adequados e mais bem-sucedidos como o Homem-Aranha — àquela altura com 20 anos de sucesso na vizinhança.

Relendo essas revistas descobri por quê. As histórias eram típicas da Marvel — ou melhor, de Stan Lee: o Capitão América sofria por um romance cheio de mal-entendidos (com uma louraça daquelas), e os dramas pessoais do seu alter ego tinham o mesmo peso das aventuras típicas do herói uniformizado. Mas, principalmente, o Capitão atravessava o drama de viver em uma era que não era a sua. Essa era a essência do seu personagem, e isso o aproximava tanto do Surfista Prateado. A diferença é que o conflito do Surfista era espacial, o estar longe de seu lugar, enquanto o do Capitão era temporal, ele que estava longe de seu tempo.

Claro que isso não era desenvolvido como, talvez, fosse hoje. Lendo essas histórias agora, mais de 30 anos depois, dá para perceber como eram tão mais leves do que o que se publica agora em quadrinhos, quase pueris. Mas ao mesmo tempo — e eu não sei o quanto há de preconceito pessoal aqui, a insistência em achar que “no meu tempo as coisas eram melhores” — elas me parecem mais interessantes, mais simples, mais palatáveis. Os tempos mudaram muito, mas aquilo que passou não perdeu totalmente seu apelo. O Capitão América em 1981 era mais interessante do que hoje. Provavelmente ele só funcionava porque, criança ainda, eu não fazia noção que ele representava. Mais tarde, a dicotomia entre o personagem e o país real levaria à decadência completa do super-herói, e mesmo hoje tenho a impressão de que ele só existe porque o meio-oeste americano ainda tem habitantes.

(As coisas não são assim tão simples e esquemáticas como escrevi aí em cima. Se eu soubesse que essa fase do Capitão América tinha sido uma das campeãs de vendas da Marvel, e que em 2010 seria considerada o quarto melhor momento da Marvel nos anos 70, talvez entendesse melhor as razões da minha paixão repentina e irremediável, e talvez devolvesse um pouquinho de respeito às opiniões e critérios da criança que fui.)

30 anos se passaram. Ao ser revivido por Stan Lee nos anos 60, ele tinha passado 20 anos congelado; hoje, para fazer sentido, teria que ter passado 70. O Capitão América é um personagem desgraçado, e sua maior desgraça não é sequer a passagem do tempo, e sim o país e a bandeira que representa. O tempo o condena, apenas: o seu país o destrói.

Mas isso é o que eu acho hoje. É tão pequeno. Reencontrar essas revistas me lembrou de um tempo em que as coisas eram mais simples e o mundo era tão grande. E isso é bom.