Santa Maria

E pobre de mim que caí na conversa daquele pernambucano filho da puta e voltei para o Nordeste porque ele disse aqui fazia calor também mas tinha brisa, e aqui a gente ia viver de brisa, mas a brisa não veio, veio só o sol miserável do Santa Maria, o sol que queima a testa e o pescoço e deixa a marca da camisa sobre um corpo que evita cumprimentá-lo há tanto tempo, e o psicopata sorrindo e agradecendo o dia ensolarado depois de tantas nuvens para minha mais completa indignação, como alguém pode gostar desse sol miserável?, e a moça com a pulseira belíssima com imagens de Nossa Senhora e de Santa Rita e de tantas outras santas fincando o salto na areia fofa como se quisesse criar raízes no descampado imenso que logo, logo vai ser revolvido pelos tratores, e as mulheres de seios murchos com meninos remelentos no colo felizes pelas casas decentes que vão receber em alguns meses, e enquanto penso no ar-condicionado que ficou para trás, que daqui a uns três dias o meu nariz vai começar a descascar, só então me lembro que meu nome não é Anarina e o pernambucano não me fez convite nenhum, vamos viver de brisa, né, pernambucano filho da puta?, sei.

Um conselho para o Igor

Comentário de um rapaz, que se diz chamar Igor, neste blog:

EU TENHO O TICO PQNO E NAUM MACHUCO AS GURIAS NA HORA DE COME-LES. O Q EU FAÇO PRA ELAS SE GOZAREM TUDO?
OBRIGADO

Caro amigo Igor,

Em primeiro lugar, parabéns pela tua delicadeza. Pode parecer bobo, mas delicadeza é fundamental nessas horas. As pessoas querem ser cuidadas, sempre; e a única forma de cuidar é delicadamente.

Mas por ter um tico pequeno tu não saberás o que é uma moça reclamando que és um grosso, um monstro, mas reclamando com um sorriso ofegante e satisfeito. Talvez jamais venhas a saber a mulher ostentando marcas roxas em seu seio como quem ostenta medalhas de guerra, talvez ainda mais satisfeita por não poder mostrá-las.

É possível que me concedas um pouco de tua condescendência, talvez me ouças e abras teu coração para minhas palavras, se eu te disser que também não sei. Este fica sendo o nosso pequeno segredo. Então poderei falar contigo como se fosse de igual para igual, sem que aches — enquanto olhas para o teu tico acanhado — que estou sendo sarcástico ou mesmo paternalista, se é que há paternalismo possível em se tratando de ticos, grandes ou pequenos.

Saiba, Igor, que compreendo tua dor. De que vale toda essa delicadeza, toda essa candura, se com um tico pequeno a ausência de dor evoca nas meninas outra ausência, a de algo que as preencha, que as eleve a alturas tão desejadas; se elas anseiam por algo que lhes faça sentir a pujança do macho tomando posse do que é seu. Por mais delicadeza que lhe confessem prezar, elas ainda são mulheres — e talvez já saibas instintivamente que esperam que sejas homem, que tenhas pelo menos um pouco de rudeza, que saibas pegar e apertar e marcar sua pele e sua carne.

Tivesses um ticão, e não um tiquinho, talvez esta conversa fosse diferente. Talvez eu te falasse de um nível aceitável e desejável de dor; talvez eu te contasse que o segredo está aí, nesse equilíbrio entre a doçura e a selvageria. Talvez eu te falasse dos elementos que compõem a posse necessária, do desempenho adequado de papéis instintivos entre um homem e uma mulher.

Mas tens um tiquinho, somente, e apenas a tua doçura para compensar. Doçura que podes cultivar com carinho, como uma vingança contra a natureza. Tua doçura, Igor, pode ser o que há de mais humano em todos nós: a vitória da humanidade sobre a natureza, a persistência de um homem que vence suas próprias limitações e se ergue, impávido, sobre todas as dificuldades com que um Deus sádico resolveu tornar mais árduo seu caminho para o paraíso.

Então, Igor, só lhe resta aceitar tuas limitações e fazer dela tua força. Se não tens o creme de leite, que sejas apenas goiabada.

Se o que tens a teu favor é a doçura, é a delicadeza, é o cuidado em não machucar a mulher que se põe ao seu dispor, desarmada e ansiosa, então sejas absolutamente doce, delicado, cuidadoso. Se o tiquinho parece pouco, se isso não as faz gritar como se estivessem caindo do paraíso, sejas doce, dulcíssimo. Mas lembra-te, caro Igor, que tu não tens apenas um tico, ainda que pequeno. Tens também dez dedos, e dez é um número tão grande, é uma infinidade. Tens uma língua — e se queres que eu te conte um segredo, uma língua pode e deve valer mais do que dez, do que vinte dedos.

E talvez aí, Igor, no dia em que tiveres aprendido que tua língua pode ser tua grande amiga, no dia em que ela fizer as moças ofegarem e gritarem como teu tico nunca fez, então talvez possas deixar de lado um pouco dessa doçura, e esquecer que um dia tudo o que podias dizer com orgulho é que não machucavas as gurias.

Os 100 filmes essenciais da Bravo

Devo ter comprado três ou quatro revistas Bravo na minha vida; a última foi sobre a bienal de 2004. Saí do jejum agora porque ela lançou uma edição especial com seus 100 filmes essenciais, e como sabe qualquer leitor antigo deste blog, eu gosto de listas de filmes.

Uma das razões é que elas sempre são discutíveis: ninguém concorda integralmente com qualquer lista. Por exemplo, Bergman tem dois filmes aqui. “O Sétimo Selo” é o meu preferido, também, mas eu teria substituído “Persona” por “Morangos Silvestres”. O mesmo acontece com Almodóvar, cujos “Ata-me” e “Fale Com Ela” prefiro a “Tudo Sobre Minha Mãe”, e com Buñuel, cujo maravilhoso “Viridiana” poderia ser substituído sem problemas por “O Anjo Exterminador”.

Nesses casos é apenas idiossincrasia que leva à discussão. As escolhas refletem as preferências de cada um. Mas estão dentro de uma certa margem de segurança, de um padrão mínimo de qualidade e de contexto em que elas não são absolutamente questionáveis. Woody Allen tem os filmes de sempre, mas eu prefiro “Manhattan”. E daí? Problema meu. Por sua vez, a ausência de “O Gabinete do Dr. Caligari” pode ser apontada, mas o expressionismo alemão está bem representado por “Nosferatu” — por falar em Murnau, “Aurora” faz uma falta danada em qualquer lista, porque o movimento de câmera foi praticamente inventado por ele.

Os problemas estão em duas outras categorias de escolha.

O primeiro, menos grave, é o daqueles filmes que ninguém tem coragem de dispensar. “Roma, Cidade Aberta” é presença constante nessas listas porque ninguém parece ter coragem de lembrar que ele vale mais como documento inaugural do neo-realismo italiano do que como o filme envelhecido, datado e enfraquecido que é. Rossellini (cuja grande obra foi a Isabella, embora o mérito seja mesmo de Ingrid Bergman) nunca esteve no mesmo nível do Visconti que está bem representado na lista, com “O Leopardo” e “Morte em Veneza”, mas cujo “A Terra Treme” suportou melhor o tempo do que “Roma, Cidade Aberta”. O filme de Rossellini é uma vaca sagrada que não dá mais leite. Mais ou menos como “Dr. Fantástico”, de Kubrick, filme velho que não sai das listas por preguiça daqueles que as fazem.

O outro problema é ainda mais grave: são os equívocos claros, escandalosos.

“Fantasia”, da Disney, é um desenho interessante, de muitas formas inovador, mas é pretensioso, confuso e chato. Não tem metade da “essencialidade” narrativa e emocional de “Branca de Neve e os 7 Anões”, filme que criou um mercado e definiu um padrão narrativo e técnico que é seguido até hoje. “Branca de Neve” não está na lista.

Enquanto isso, o western tem apenas quatro filmes incluídos. É um dos gêneros fundamentais do cinema; mais que isso, o único que se pode dizer realmente cinematográfico, porque não tinha tradição teatral ou literária anterior, ao contrário do drama ou da comédia de costumes. O western só se pôde realizar no cinema. Mas, ainda mais importante, foi um dos gêneros fundamentais na era de ouro. O western é a quintessência do cinema americano, de longe o mais importante do mundo ao longo do século. Quatro faroestes, portanto, são muito pouco, ainda mais quando se lembra que uma série de bons filmes, mas apenas bons, povoam a lista, como “As Invasões Bárbaras”, “Amor à Flor da Pele” ou “Um Convidado Bem Trapalhão”.

Pior: dos quatro westerns incluídos na lista, dois são “Os Imperdoáveis” e “Butch Cassidy”. São excelentes filmes; mas são também derivados de uma tradição anterior, secundários, e não se sustentam diante de filmes que estabeleceram a estrutura narrativa do gênero. Onde estão “No Tempo das Diligências”, “Rio Vermelho”, “O Homem Que Matou o Facínora”, “Matar ou Morrer”? Só São John Ford, sentado na Grande Planície sobre um tapete feito com o couro de John Wayne, sabe. E esses são filmes que não apenas representam o melhor do gênero: são também obras fundamentais para a própria evolução da arte cinematográfica.

George Stevens tem dois filmes na lista. “Um Lugar Ao Sol” é pule de dez. Mas “Assim Caminha a Humanidade” não é, sob nenhum aspecto, um grande filme — é só um filme grande, recortado, megalomaníaco, com o pior desempenho de James Dean em sua carreira de apenas três filmes. “Assim Caminha a Humanidade” é longo demais e ainda assim excessivamente curto para que possa contar adequadamente sua história.

Stevens, para quem não lembra, é o diretor de “Os Brutos Também Amam”, que não está na lista.

Há outros pequenos absurdos incompreensíveis. “Brazil”, de Terry Gillian, é um excelente filme — mas a lista não inclui nenhum de Gillian com o Monty Python, o que é não só um crime, mas um atestado de burrice. Em “O Sentido da Vida”, um esquete traz uma canção deliciosa: Every sperm is sacred / Every sperm is great / When a sperm is wasted / God gets quite irate. Talvez Deus não ficasse puto em sua túnica branca se o espermatozóide desperdiçado fosse o de quem elaborou essa lista.

Quanto a filmes brasileiros (numa lista extremamente generosa com a brasilidade suingante de nossa gente: quatro), a lista inclui o indefectível “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Cidade de Deus” e duas escolhas esquisitas: “Pixote” e “Lavoura Arcaica”. “Cidade de Deus” é uma escolha discutível — “Central do Brasil” continua sendo o melhor filme da retomada, na minha opinião –, mas “Pixote” e “Lavoura Arcaica” não são essenciais em lugar nenhum. Onde está “O Pagador de Promessas”? “Todas as Mulheres do Mundo”, com sua leveza carioca e cinemanovista, é melhor que qualquer desses dois. E assim como sempre incluem “Roma, Cidade Aberta”, poderiam incluir “O Bandido da Luz Vermelha”, do Sganzerla. Pelo menos não colocaram “Terra em Transe”.

Mas o ponto baixo da lista está no comentário a “Los Angeles Cidade Proibida”. Ponto baixo em termos: porque ilustra com clareza inquestionável os critérios de inclusão. Ali a revista diz:

Parece até um daqueles noir do cinema clássico americano estrelados por Humphrey Bogart, (…) o filme chamou a atenção pelo gostinho de naftalina e por lembrar aos cinéfilos que Hollywood já foi espaço para tramas inteligentes e imprevistas, diálogos espirituosos e grandes atuações, mais do que efeitos especiais mirabolantes.

É isso. Quando uma lista escolhe colocar filmes que apenas lembram os verdadeiros clássicos, é porque ela não vale muita coisa.

Republicado em 05 de setembro de 2010

Balanço

E assim acabam-se as republicações do ano da graça de 2007.

Acabam como nos anos anteriores, me deixando com uma sensação de impotência que, eu sei, vai voltar ano que vem: um ano inteiro, e tão poucos posts decentes. Eu devia ter uns troços melhores para republicar, passar 365 dias só republicando coisas boas, boas de verdade.

Mas o material disponível dá porcamente para mês, mês e pouco. E mesmo assim com excesso de boa vontade, com um padrão rebaixado a um ponto de quase desleixo. Por isso a incompetência do ano anterior me força novamente à labuta, para ver se no ano que vem consigo tirar férias de verdade, deixar os posts se republicando ad aeternum enquanto me dou o direito de olhar para trás e dizer para mim mesmo caralho, eu escrevi um monte de coisas boas no ano passado.

Uma coisa para fazer antes de morrer

O Ina pediu, há uns tempos, que a gente enumerasse dez coisas que precisa fazer antes de morrer.

Eu pensei, pensei, e achei melhor ficar calado. Porque via o Ina sonhando coisas bonitas como se perder na Igreja da Sagrada Família em Barcelona e, poeta que é, cair de amor e ser erguido por ele. Em contraste, essas coisas apenas tornariam mais feia a minha lista.

Eu não sonho em cair de amor, porque sou só um paraíba e sempre sonhei, mesmo, foi em cair de língua. Para uns não há diferença, mas em verdade ela existe, e nela está contido o verdadeiro segredo da vida. Por isso pensei muito, e fiz uma lista dizendo o que eu realmente gostaria de fazer antes de morrer, e vi que ela nem de longe se pareceria com a belezura do Ina. Melhor não publicá-la, então, porque ficaria mais ou menos assim: 1) Comer a Isabel Fillardis; 2) Comer a Nicole Kidman; 3) Comer a Catherine Zeta Jones; e por aí seguia, lista ainda por cima tão volúvel que às vezes mudava um ou outro item, uma mulher injustamente esquecida e que parecia fazer melhores promessas que outra incluída — embora a lista fosse essencialmente constante em seu objeto. Em sua defesa eu poderia apenas dizer que ela mostraria interessante unicidade de motivos, uma força de vontade adamantina, ou mesmo um despojamento quase franciscano em relação ao que é acessório na vida. Poderia dizer que sou um sujeito bastante centrado.

Melhor não publicá-la, então, que ela apenas iria revelar a minha monomania e minha absurda falta de criatividade no que refere às coisas realmente importantes da vida. Ainda pensei em fingir e falsificar um ou outro desejo, em colocar uma ou outra bobagenzinha como comer em um tal restaurante de Florença, ou ver o sol se pôr em um cudemundo qualquer do Pacífico, mas além de nada disso ser verdade, todos iriam perceber imediatamente que eu mentia. Comer em um restaurante de Florença, na verdade, só se fosse a Monica Belluci — ou mesmo a Sophia Loren, para satisfazer um capricho mórbido, quase necrófilo.

Mas a idéia ficou na minha cabeça, e se não tenho lá tantos sonhos ou pequenos projetos acessórios de vida, percebi que há uma coisa de que eu realmente gostaria, que traria alguma luz para o meu coração aparentemente de pedra.

E decidi que o que quero mesmo fazer antes de morrer é ser um velho chato.

Chegar à velhice, para alguém com os meus hábitos de sono e alimentação, minhas preguiças e meus impulsos, já é uma vantagem. Uma grande conquista, tão mais desejável quanto mais improvável se mostra. E dentro dessa perspectiva a artrite, os ossos quebradiços, a aversão ao frio e o amor às meias e casaquinhos de lã, o medo pânico da pneumonia e da falência renal se afiguram como quase uma vitória. Por ela valeria a pena até adquirir aquele cheiro inconfundível de velho, de antigüidade que ninguém quer.

Mas não basta ser velho, que depois que a Peste Negra se foi ficou fácil chegar a uma idade de ancião. Bom mesmo é ser um velho chato. E eu seria um velho realmente chato, daqueles que reclamam de tudo, que peidam diante do genro e beliscam os netos, que mostram a eles doces que jamais darão, que furam a bola dos meninos que jogam na rua, que atrapalham namoros na praça, que dizem esquecer as coisas para que os tratem com absoluto monopólio de atenção.

Não furaria a bola dos meninos porque já não podia jogar, tampouco reclamaria do namoro dos jovens que não têm motel porque a impotência geraria em mim a inveja e a sensação de que tudo é indecente. Eu faria isso apenas pelo prazer de ser chato, ars gratia artis, um velho ranheta cheio de bile que sente um prazer genuíno em tentar fazer do mundo um lugar, se não desagradável, pelo menos um pouco pior. Finalmente, encheria o saco dos netos porque, afinal de contas, eles teriam que aprender que esse mesmo mundo pode ser um lugar muito mau.

E quando eu andasse na rua, encurvado, reclamando do tempo que passou rápido quando não devia e que parou de passar quando devia se apressar, reclamando da morte que não vem; quando as pessoas rissem de mim e dissessem que virei um velho chato porque não como mais ninguém, eu riria baixinho, aquela risada banguela e nasal de velho chato, e me sentiria finalmente realizado, e poderia morrer em paz. Apenas pediria, como última concessão do tempo que teria se mostrado tão generoso, que me levasse antes que eu perdesse a noção de que estava sendo chato, porque aí a brincadeira perderia a graça, e a velhice duramente conquistada ao longo dos anos em que sofri e fiz sofrer teria perdido o sentido.

Originalmente publicado em 28 de julho de 2006

A Copa do Mundo de 2006

A Copa do Mundo de 2006 passou em meio a uma bruma de cerveja, camarão, pitu, pilombeta, siri, lambreta, amendoim, grappa, a bunda divina da Chicotão, a risada pantagruélica do pândego Rosalvo, Cauê brigando comigo por causa do Gordo de quem ele não gosta, o outro Rafael a postos para soltar os fogos, o bêbado cantando com voz molente o hino da torcida brasileira com muito orgulho, com muito amor. Se o Brasil fosse para as finais eu provavelmente teria virado um peixe afogado em cerveja — e me afogaria feliz com a bunda da Chicotão diante de mim, a bunda perfeita sob uma cintura irresponsavelmente fina, os seios pequenos com mamilos grandes apertados pelo sutiã de menina-moça.

Agora vêm as desculpas e a divisão de responsabilidades. Vão procurar no último jogo as razões que vieram se estendendo por toda a Copa, vão se perguntar por que um time que não fez um único bom jogo perdeu para a França com direito a chapéu de Zidane sobre Ronaldinho, vão jogar a culpa no Parreira quando ela é também de quase todo o time.

Nada disso interessa, no entanto, porque aos derrotados só interessa mesmo o esquecimento, sem o qual a esperança não se renovará daqui a quatro anos, quando novamente acreditaremos que seremos campeões do mundo porque esse é o nosso destino.

Se fico triste pelo Brasil não ter seguido em frente e feito mais gols não é por um amor desmesurado ao futebol ou por um quadrienal patriotismo de chuteiras. É porque, a cada nova bola na rede adversária, a Chicotão iria pular na minha frente, e aquela visão angélica se repetiria mais uma vez, uma bunda que representaria mais que a vida e ofuscaria aqueles vinte e dois homens suando atrás de uma bola, porque não há escolha a fazer quando você se vê entre a bunda da Chicotão e a cara de bunda do Ronaldinho. A bunda da Chicotão, eu sei, me faria esquecer de pular e comemorar os gols, porque eu me quedaria sentado, olhando embevecido o seu sobe e desce quase impublicável.

Mas o Brasil perdeu e a bunda divina da Chicotão não vai mais subir e descer na minha frente com seu balançar firme, o balançar apenas necessário que lhe conta em segredo que nada vai lhe faltar, e faz um desafio mudo que, ao contrário dos outros desafios, traz um sorriso beatífico e rendido ao seu rosto.

Se aos brasileiros cabe imaginar o que seriam as finais, o meu parco amor ao esporte, amplificado momentânea e artificialmente pelo copo nunca vazio de cerveja e pelos dedos tingidos de vermelho pela queratina do camarão, faz com que a mim reste apenas pensar no que poderia ser a bunda da Chicotão pulando diante de mim depois de cada gol que o Brasil poderia ter feito.

E assim vai ficar a Copa do Mundo de 2006. Com lembranças vagas de cada jogo, com a lembrança alcoolizada de mostrar à Isabel que ela deve escolher o outro sujeito de que me falou, porque aquele em cima de quem ela está dando é inadequado porque não pega na sua bunda do jeito que eu mostro que ele deveria pegar, com a atitude que cobraram aos derrotados por Zidane e a outra mão apertando sua cintura, movimento inocente e apenas pedagógico porque da Copa do Mundo de 2006 o que eu vou lembrar mesmo é da bunda amoral da Chicotão pulando diante de mim.

Originalmente publicado em 3 de julho de 2006

Pequena reflexão sobre a natureza das coisas

Há dois gaviões por aqui. Passam voando diante da janela e então pousam no alto do edifício ao lado, entre antenas de TV e parabólicas e uma enorme caixa d’água.

São pardos, com as pontas das asas em tom mais claro.

Não os vejo de perto mas sei que são animais magníficos. Sei como são seus bicos redundantemente aquilinos, seus olhos também redundantemente de águia. Posso imaginar suas garras fortes, segurando suas presas enquanto seus bicos as dilaceram.

Quando eles passam voando pode-se sentir a sua força e a sua imponência na maneira como extendem suas asas e planam a despeito do vento. Gaviões personificam a única grande combinação de qualidades da Criação, aquela que nenhuma outra pode superar: liberdade e força. Aqui, neste pequeno canto do mundo perto do rio, eles são reis, voam acima de todos os outros, senhores de seus apetites enquanto os outros fazem apenas o pouco que podem: andam nas calçadas desviando das poças de chuva e dirigem seus carros se são humanos, esgueiram-se nos esgotos se são ratos ou baratas. Aos dois gaviões que voam por aqui sobra todo o resto, têm horizontes mais amplos que os de todos nós porque podem voar mais alto e ver mais longe, e mesmo que a maior parte das pessoas não saiba que eles estão aqui, esses dois gaviões são os senhores. Liberdade e força.

A senhora que mora ao lado tem um tucano de madeira em sua varanda. E quantas vezes um desses dois gaviões o atacou, num vôo rápido sobre a vítima putativa, tantas que a obrigaram a colocar uma rede na varanda, dessas que as pessoas, alegando proteger crianças, na verdade colocam para se proteger dos dissabores que um párvulo inconseqüente ou simplesmente bobo pode causar.

Mas ainda ficam os falcões de olho na ave que julgavam apetitosa, porque é isso que eles são, predadores, e é essa a sua missão na vida e porque, como o escorpião da parábola, eles não podem evitá-la.

Ainda há pouco um dos gaviões estava no telhado de uma casa vizinha — a casa que tem uma mangueira no quintal. Segurava uma presa com as garras, presa que estraçalhava com seu bico redundantemente aquilino. Não vi a cena, cheguei tarde, mas posso imaginá-lo há alguns minutos planando calmamente até avistar a presa, mergulhar num átimo e capturar sua vítima, que não deve ter visto nada, não deve ter tido tempo para sentir medo, apenas sentiu as garras penetrando em sua carne.

Ali, no telhado da casa que tem um pé de manga no quintal, o gavião comia a lagartixa que tinha acabado de matar.

E daqui de cima, apoiado sobre as minhas duas pernas medíocres e braços no lugar de asas com pontas mais claras, sorri enquanto pensava que, com toda essa liberdade e com toda essa força, o magnífico predador comia uma lagartixa. Apaguei o cigarro e fui pegar um copo de coca-cola enquanto o gavião imponente se regalava com uma lagartixa, gavião de merda. Liberdade e força. Sei.

Originalmente publicado em 22 de junho de 2006

Os anos 90 vêm aí

Terça-feira e eu vou para o cinema com uma missão apenas aparentemente simples: escolher o filme mais bobo em cartaz, apenas para clarear a cabeça — acompanhado de uma senhora que tinha acabado de me mostrar que, com dois pauzinhos na mão e algum sushi diante dos olhos, se transforma na Madame Mãos-de-Tesoura e deixa o Johnny Depp se achando um mero alicate de unhas.

O filme escolhido, de acordo com esses critérios claros mas de difícil realização, foi “Apenas Amigos”, comédia romântica com uma moça que lembra muito a Michelle Pfeiffer quando ela ainda era novinha.

O filme é uma porcaria e, apesar das risadas eventuais, não merece um comentário. Portanto, foi ideal para aquilo a que eu me propunha: sair do cinema dizendo “oba, não pensei por hora e meia”.

Mas uma coisa me impressionou nele, e enquanto escrevo isto um calafrio percorre minha espinha, porque adivinho uma tragédia que já vi antes se desenrolar novamente diante dos meus olhos.

O filme tem início em 1995.

E então está começando, gabriel tocou sua trombeta. Eu, que ainda não consegui superar o revival dos anos 80 que me fazia ter pesadelos ao som do Menudo em que era perseguido por pares de calças jeans verdes e espancado por tênis quadriculados com cadarços rosa-choque enquanto o Ritchie gargalhava de maneira inequivocamente maníaca, agora me vejo às voltas com os princípios de um nova ressurreição. A dos anos 90, década que não parecia sequer ter acabado. Os anos 90 foram ontem. Mas eles morreram, foram enterrados por Osama bin Laden, e aqueles que cresceram nele se preparam para, como todas as outras gerações antes dela, contar as mentiras de sempre sobre aqueles anos tão dourados.

Foi um começo tímido e incompetente, como costumam ser os começos daquelas grandes ondas — quem levou a sério Ike Turner quando ele gravou Rocket 88? –, mas para alguém que ainda hoje pula assustado e tem convulsões aos primeiros acordes de Jump, do Van Halen, enquanto imagina Dave Lee Roth babando no microfone, os sinais são inequívocos. E aterrorizantes.

Os anos 90 vêm aí.

Vêm com festas ao som do Greenday, com “Almanaques dos Anos 90” contando que Kurt Cobain esbagaçou a própria cabeça e que no dia, sei lá, 12 de março de 1997 o mundo dançava ao som do Hanson e o Brasil batizava suas filhas com o nome da minhoca contorcionista, a Thalia. As pessoas vão lembrar como eram boas aquelas novelas mexicanas, Maria Mercedez, Maria do Bairro, Maria da Casa do Caralho. Os anos 90 vêm com adolescentes vestindo preto e tentando ser tristes no verão brasileiro. Como todas as retomadas, essa virá com o reaproveitamento do que a década teve de pior.

Eu gostei tanto dos anos 90. Foram tão bons. A música melhorou, um mundo novo apareceu com o computador e as redes. O futuro era brilhante, e alguém mais otimista poderia dizer que depois do que havia começado ali nunca mais teríamos que voltar os olhos para trás, em busca de uma visão rósea do que teria sido o nosso passado. Recém-adultos mentirão para si próprios e tentarão se convencer de que a sua adolescência não foi tão ruim; pior, tentarão se convencer de que têm uma longa história para contar.

Os anos 80 voltaram ao cinema com Grosse Pointe Black. Era um filme melhor que “Apenas Amigos”. E se a qualidade de suas inaugurações significa alguma coisa, os próximos dez anos de revival dos fabulosos anos 90 serão absolutamente, completamente, desgraçadamente deprimentes.

Originalmente publicado em 21 de junho de 2006

Anti-semitismos

Senhor Rafael Galvão.
O senhor desconhece inteiramente a história do povo judaico e ousa ofender-lhe, com que direito o faz? Exijo que respeite a dor, o sofrimento deste povo que foi e continua sendo perseguido por pessoas como o senhor que tece comentários inverídicos, com que intenção? Quem é o senhor para falar do povo judaico, com que conhecimento de causa, não sabe nada. Que prove o que menciona em suas palavras maldosas para com o povo judaico!
Carlos Olguin Naschpitz

Eu não sei exatamente o que o sujeito, em seu comentário a este post, quer que eu prove. Se ele está falando das leis israelenses a que me referi, referências a elas podem ser encontradas nos jornais de agosto de 2003 — e não custa procurar em sites israelenses. Se se refere ao que chamo de crimes de Israel, os mesmos jornais trazem notícias sobre isso quase toda semana — mas Naschpitz pode achar que todos eles fazem parte de uma grande conspiração anti-sionista. Descontando-se a indignação tão dolorida de Naschpitz — com direito a ponto de exclamação no final —, seu comentário é vazio, choroso, sem substância.

(Naschpitz não está sozinho. No comentário anterior, Marília Julião Mendonça dá carteirada de “professora universitária de história” para dizer que não existem as tais leis israelenses a que me referi. Eu não queria ser seu aluno, porque ela é ignorante e não lê jornais. Também diz que um casamento entre judeu e alemão rebaixava o alemão de categoria em vez de proteger o judeu da barbárie hitlerista, o que mostra que ela tampouco sabe alguma coisa sobre a Alemanha nazista. Finalmente, tenta justificar quaisquer atitudes israelenses recorrendo ao cativeiro egípcio dos tempos de Moisés, e então vem uma vontade grande de dar um tapinha na sua cabeça, enfiar um pirulito em sua boca e mandá-la brincar na gangorra, tomando cuidado para não sujar o vestido.)

O comentário do Naschpitz apenas reforça a idéia por trás do post: a de que a acusação de anti-semitismo é sempre uma pecha quase sempre irresistivelmente fácil de jogar sobre quem não concorda incondicionalmente com uma imagem fácil e tendenciosa da problemática israelense-palestina.

O mais interessante — e aqui se sai um pouco do tema do post original — é que não existe apenas “um” anti-semitismo. Posso contar pelo menos dois. Um deles, o ocidental, tem raízes em uma necessidade teológica do cristianismo. Se o judaísmo se negou a ver em Cristo o seu Messias, como havia sido profetizado, então ele precisava estar completamente errado para que a alegação de divindade de Jesus, no cristianismo primitivo, se legitimasse. Jesus tinha que ser Deus, e convenhamos que é preciso ser muito malvado para matar o Dito (Nietzsche tentou e acabou discutindo filosofia com os cavalos de Weimar). O cristianismo forçou uma identificação dos judeus com o Mal para garantir sua sobrevivência, e esse parricídio teológico é a origem de dois mil anos de perseguições e preconceito. Foi esse tipo de anti-semitismo que desembocou no Holocausto nazista e que se mostra latente ainda hoje. É talvez o tipo mais pernicioso, e certamente o que deu resultados mais tenebrosos.

Mas há outro tipo de anti-semitismo, com origens diferentes e muito mais complexas. O anti-semitismo que se fortalece no Oriente Médio, ao contrário do ocidental, tem bases bastante sólidas em uma longa história de guerras e agressões mútuas. E hoje é um processo que se desenrola tendo como elemento central um país que, sob a justificativa de seu povo ter sofrido o pão que o diabo amassou no Holocausto e ter sido atacado por vários países muçulmanos após sua fundação, oprime a Palestina de uma forma que, em muitos momentos, lembra a Alemanha nazista dos anos 30.

São situações diferentes, e que não estão necessariamente ligadas. No entanto, de acordo com raciocínios como o de Naschpitz, é tudo a mesma coisa: trata-se um mundo inteiro odiando os judeus a partir do momento em que levanta algum senão. Por sorte, esse não é o raciocínio — ou falta de — da maior parte dos judeus do mundo.

Por mais que os judeus tenham sofrido, por mais que tenham sido perseguidos, nada justifica a afirmação de Golda Meir: “Depois do que fizeram conosco, podemos tudo”. Não, não podem. Quem podia tudo eram os nazistas, e não se pode esquecer isso. Além disso, não se pode esquecer que há um momento-chave na geopolítica daquela região, a Guerra do Líbano: a partir dali, Israel passou a ser um país agressor. Isso faz toda a diferença.

É um equívoco muito grave esse tipo de esforço de santificação judaica, como se fosse um povo moralmente acima de todos os outros. Primeiro porque não encontra bases na história — o Naschpitz deveria se informar sobre a participação importantíssima de judeus e cristãos-novos no tráfico negreiro para o Brasil, por exemplo, e depois discutir o que parece ser seu conceito de “ética por direito divino”. Há bons e maus judeus como há bons e maus cristãos, muçulmanos e macumbeiros, e ao longo da história a perseguição execrável ao judaísmo não impediu o progresso material de muitos indivíduos, mesmo quando de maneira eticamente discutível. As relações dos “Estados” medievais europeus com a elite judaica que lhe emprestava dinheiro, por exemplo, são fascinantes pelos conflitos e concessões de ambas as partes. Além disso, Naschpitz poderia tentar descobrir o que eram os comboeiros nas Minas Gerais do século XVII, por exemplo.

Mas o pior aspecto em tudo isso é o incentivo a uma idéia de diferença irreconciliável entre “raças” que, em momentos históricos específicos, pode gerar resultados inversos e resultar, se não no Holocausto, na repetição das condições objetivas que o geraram. E é isso que esse pessoal, cegos guiados apenas pela promessa de Deus a Moisés, não consegue enxergar.

Originalmente publicado em 20 de junho de 2006

O homem que morreu de amor, depois de roubar minhas palavras

Poetas houve, nos tempos dos românticos, tempos idos em que a miséria era bela e o sofrimento desejável, que se diziam morrer de amor — e se diziam languidamente, “ai, que morro!”, com um levar das mãos à testa e um suspiro dolorido e afetado.

Suspirava-se muito naqueles tempos.

No entanto era tudo mentira, tudo fingimento; não era de amor que se morria, era de tuberculose.

Mas houve um homem que morreu de amor. E não foi naqueles tempos de tavernas azevedianas ou luzes mortiças de lampiões; mas ainda agora, há quase um instante, nos tempos da prensa, da televisão, da fissão do átomo, quando o amor parecia tão vulgarizado que para alguns era pouco mais que a desculpa por uma mão que passeia semi-percebida pela pele arrepiada de uma moça bonita.

Antônio Maria morreu de amor, mas antes deixou como prova desse amor, de todos os amores, algumas das crônicas mais belas vistas por este país, manjedoura de cronistas como Fernando Sabino, Stanislaw Ponte Preta e Rubem Braga. O que há nelas de verdade, de universalidade, não pode ser compreendido por quem jamais viveu algo parecido com o que ele, diante de uma máquina de escrever em uma redação de jornal, soube descrever como ninguém.

Canção modal do homem que chama sua amada

Vem, se quiseres. Bebo álcool e fumo cigarros fortes. Gosto de música sem palavras, no piano de Peffer e no instrumento grave de Mulligan. Gosto das palavras sem música, como se sabia dizer Albert Camus. De dia para dia, mais aquiesço à aridez dos sons.

Vem, se quiseres. Sou irascível, quando trabalho. Digo nomes feios, se me interrompem. Volto bêbedo para casa e não trago mais que a inocência, o cansaço e o hábito dos bêbedos. Tenho todos os defeitos que, nos outros, detesto.

Só uma disposição, em mim, é generosa — a do amor. Se um dia fores minha, ao ter-te, amar-te-ei demais, e mais ainda depois de ter-te. Vestirei o teu corpo com as minhas mãos e algumas vezes fecharei os olhos, para ver-te ainda mais bela. Haverá horas lentas de ciúmes, e um silêncio angustiado sufocará as palavras que nos faria negociar o perdão. Ah, o martírio dos amantes, que não se acreditam, que não se confiam, que não têm senão um cárcere de medos, onde afogam o sentimento espiritualíssimo da carne.

O corpo é espiritual. O espírito nem sempre.

Vem, se quiseres. Se crês numa alma oculta em minha rudez. Se não professas a abominável esperança esperança do amor eterno. Se acreditas, lucidamente, no “amor até quando” (?)… Se não te amas e se me amas, vem, e aqui te esperam séculos de sede e de dor, sem um momento de paz verdadeira, a não ser aquele, de lassidão, quando, depois de ter-te, amar-te-ei mais ainda…

Originalmente publicado em 13 de junho de 2006