Pequeno episódio numa fila

Ela era tão magrinha, coitada; de mulher, mesmo, só tinha o buraco e o fedor.

Na fila, reclamava do que parecia ter sido uma discussão com uma mulher grande e gorda; referia-se a ela com os adjetivos mais adoráveis que uma mulher pode inventar ao falar de alguém que é menos dotada fisicamente, por mais ilusória que seja essa maldotação.

E ninguém entendia por que eu ria tanto.

Às cinco da tarde, na Confeitaria Colombo

Dizem que todo mundo tem o seu “canto do Rio”. O meu é a Confeitaria Colombo.

Não é pela comida; os doces de lá não são exatamente especiais, embora eu sempre peça a mesma coisa: viradinho de banana, bomba (que eles ainda chamam de éclair) de creme e uma coca com gelo e limão.

Eu amo a Colombo pelo seu pathos.

Conheço dezenas de confeitarias e docerias, nos mais diversos lugares. Mas não conheço outra que tenha um charme que sequer se aproxime da atmosfera que a Confeitaria Colombo; um charme que está presente desde o seu nome — não existem mais confeitarias, e sim docerias, casas de chá, qualquer nome que pareça mais sofisticado que um velho e prosaico “confeitaria” — e que passa pelos seus espelhos de cristal europeu, pelas molduras elegantemente trabalhadas, pelos detalhes de seu teto e pelo seu piso de ardósia.

É na Colombo que encontro a melhor tradução para o que me fascina no Rio, uma fascinação talvez específica para paraíbas, acho: essa mistura de história e grandiosidade, a sensação de que aqui estou no lugar que por séculos foi o centro do país, o lugar para onde tudo convergia. Talvez seja um Rio que nunca existiu de verdade, mas existência é algo que pode ser discutido noite adentro sem que se chegue à verdade.

É claro que o Rio de Janeiro não precisa dessas glórias passadas: tem beleza suficiente para justificar qualquer desvario. Mas eu amo a cidade principalmente pelo que ela foi, o lugar onde tudo acontecia.

E é na Colombo que percebo isso com mais nitidez: era aqui, em uma destas mesas, que Machado de Assis se sentava diante das mulheres com chapéus elegantes e vestidos diáfanos, era aqui onde o presidente tomava seu chá, era aqui que um mundo diferente espelhava a imagem idealizada que fazia de si mesmo.

Em memória da pobre alma de Paganini

A Colombo é o único lugar que tem música ao vivo e não me irrita, porque ela é baixa, suave. O pianista agora é meu conhecido de vista.

Desta última vez ele estava acompanhado. E não era o trumpetista de outras vezes; era algo melhor, muito melhor.

A violinista errou algumas vezes — mas que bobagem para alguém notar, quando à sua frente, imponente com seu violino, está uma mulata deslumbrante, com um belo sorriso e mais belas ancas; sua beleza torna imediatamente perdoáveis quaisquer pequenos erros.

Que pena que não perguntei o seu nome. E que pena que não pedi para tocarem a “Rapsódia Sobre um Tema de Paganini”, para que a alma do violinista pudesse que ver que seu virtuosismo não era nada, diante da beleza brasileira de uma violinista aprendiz e desconhecida.

Inventário

Pela primeira vez fiz um inventário dos meus livros e discos. Um trabalho cansativo, como minhas costas podem contar e a poeira que quase me sufocou podem confirmar. Minhas unhas ainda estão pretas.

Algumas poucas centenas de livros e uns 200 discos (a maioria em vinil; pelo visto, eu não compro mais discos há uns 10 anos), eis o meu patrimônio. Menos livros e mais discos do que eu imaginava ter. Entre eles as minhas pequenas preciosidades: uma primeira edição de Henry Miller que vale quase mil vezes o que paguei, uma Batman de 1965, uns cinco ou seis discos raros dos Beatles, bobagens que só têm algum valor porque pelo menos duas pessoas resolveram ir de encontro ao bom senso e fizeram um acordo, através do qual a insensatez de um justifica a estupidez do outro.

Dentro dos livros, pequenos objetos esquecidos: fotos de antigas namoradas, folhas soltas de papel com informações irrelevantes, telefones de gente que nem lembro quem é. Algumas agendas mostram que o meu passado é muito menos interessante do que as minhas lembranças dele, mas confirmam a minha tradição pessoal de nunca, nunca chegar na hora a coisa nenhuma. E constato que namorei em excesso mulheres que gostam de escrever bilhetes e cartas, como se o fato de suas idéias estarem escritas em letras normalmente bonitas as fizessem indeléveis e mais verdadeiras. Pelo menos as declarações de amor são maioria. Eu dei sorte. Ou então só guardei as coisas boas.

Era uma oportunidade de ouro para jogar fora o que não me interessa mais, como revistas, papéis, etc. Mas fico cada vez mais parecido com Gobseck, o usurário delirante de Balzac: incapaz de jogar fora qualquer coisa que um dia tenha significado algo, por mais ínfimo que tenha sido esse significado e por mais reduntante que tenha se tornado — como se algum dia historiadores da idiotice fossem precisar deles.

Como se todos esses pequenos nadas fossem a moedinha número 1 do Tio Patinhas.

Incompatibilidade

Do novo contrato do Blogger:

4.7. Disposições específicas dos blogs contendo material adulto
Estão proibidos nos blogs materiais de cunho pornográfico e/ou exibindo nudez e/ou atos sexuais de qualquer natureza, incluindo, mas não se limitando a materiais ligados à pedofilia, necrofilia, aberrações sexuais, prática sexuais que envolvam violência (estupro, mutilação, morte).

Eu concordo. E depois de deixar bem clara a minha opinião de que temos que acabar com essa pouca-vergonha, vou desligar isto aqui e assistir a um dos programas de sacanagem que os canais Globosat exibem todo dia. Estou indeciso entre o Sex TV, no GNT, e o Sexy Time do Multishow.

E vou me preparar para postar aqui fotos de vítimas de guerra, de violência, de somalis definhando de fome, de judeus resgatados de Auschwitz, de mulheres emaciadas e desdentadas oferecendo aos filhos os peitos murchos e descarnados — porque tudo isso, como se sabe, é mais bonito e menos agressivo que os corpos de um homem ou uma mulher nus.

Elogios a Doris

Lula ontem elogiou publicamente o ministro Doris Ricardo Berzoini.

Elogios são feitos para pessoas que fazem coisas boas. Logo, isso quer dizer que o presidente achou bonito o espetáculo do crescimento das filas de velhinhos que o Berzoini — que odeia filas — causou.

A propósito, determinar um prazo exíguo para o recadastramento dos macróbios, fazê-los pegar filas excruciantes e depois dizer que o prazo é de cinco anos pode ser definido por alguma outra palavra que não “palhaçada”?

Talvez. “Canalhice” é uma boa alternativa.