Remakes

Tem uns tantos filmes aí que eu gostaria que fossem refilmados. São aqueles que poderiam ter sido muito maiores do que foram, mas por uma ou outra razão, ficaram aquém do que poderiam, quando menos depois que alguns anos se passaram e pudemos ver como resistiram à ação sempre deletéria e canalha do tempo.

Highlander
Este é um filme redondo. Mas tem os defeitos da direção publicitária que era moda em sua época. Eu refaria o filme basicamente para corrigir isso, aproveitar a evolução tecnológica que sempre faz bem a filmes de ação, mas também para aproveitar a mesmice diretorial e fotográfica destes tempos novos . Mas como estaria com a mão na massa, aproveitaria para fazer um vilão menos caricato, mais sofisticado. Daria mais densidade dramática à relação com Hannah, a paixão não correspondida da menina salva não mais na II Guerra, mas no Vietnã — ah, tempo, esse infeliz que não para de passar. E elencaria George Clooney como Ramirez e Tom Hardy como McLeod.

 

Leon, o Profissional
Ao contrário dos outros filmes incluídos aqui, este é um excelente filme, bem feito, com boas atuações de Jean Reno e Gary Oldman e uma estreia estelar de Natalie Portman. Luc Besson tem altos e baixos em sua carreira, mas este é, definitivamente, um de seus melhores momentos. Eu na verdade refaria apenas uma cena do filme: aquela em que, ensinando Mathilda a se tornar uma assassina, Leon a faz atirar em um sujeito com uma bala de paintball. Eu os faria usar balas de verdade, mostrando o pouco valor dado por eles à vida humana. Mas no fundo o que eu queria mesmo era fazer, daqui a uns dez anos, uma continuação do filme. Faria da própria Portman uma assassina cinquentona, gasta pela vida, cínica, e a colocaria num relacionamento semelhante ao que ela teve com Leon. Mas agora ela destruiria o adolescente. Eu sou mau também.

Grease
Já escrevi aqui sobre a minha decepção ao ver o filme depois de ler o livro escrito a partir dele. A injúria foi agravada pela direção de Randall Kleiser, que levou para a telona os vícios dos telefilmes que fazia, com direito a vinhetinhas musicais entre uma gag e outra. Eu faria um filme a partir do livro de Ron de Cristoforo, uma comédia menos musical, com maior nexo narrativo, reforçando o deboche carinhoso com que ele revisita os anos 50. Seria um filme definitivamente informado pela aura do seriado “Anos Incríveis”, uma comédia sem nenhuma pretensão de ser engraçada, porque a vida já era engraçada o suficiente.

A Lista de Schindler
Nesse caso eu não refaria o filme, eu apenas reeditaria o seu final. 30 anos se passaram e ainda não me conformei com o final piegas e melodramático com que Spielberg conspurcou o que teria sido o seu melhor filme. Meu Schindler continuaria interesseiro e pragmático até o final. Sem chororô.

5% dos filmes nacionais
Uma das grandes verdades da vida é que praticamente todo filme brasileiro poderia ser refilmado. Mas 90% deles, talvez mais, não valem a pena, nunca valeram, em que pesem as perversões do pessoal do “audiovisual”, que elogia às escâncaras coisas que numa família de bons costumes jamais seriam mencionadas em voz alta perto da crianças. Outros 5%, talvez menos, perderiam tudo se fossem retirados de seu momento histórico, ou mesmo artístico: um filme como “Viagem aos Seios de Duília”, que não chega a ser magnífico, me pareceria mais pobre e sem sentido sem a sua fotografia. Mas há uma série de filmes que são quase bons, especialmente entre as pornochanchadas dos anos 70, e que se beneficiariam de maior aprumo técnico.

Há outros filmes, claro, que não consigo lembrar agora.

Ouvindo vozes

Onze anos atrás escrevi este post aqui, ó, defendendo a ideia da dublagem e reclamando de uma gente elitista que, mais que admitir apenas filmes legendados, parecia ter raiva de que outras pessoas assistissem a eles.

O tempo passou e as coisas parecem ter mudado muito. Aversão indefinida e generalizada à ideia de dublagem continua sendo coisa daquele tal pessoal esnobe, mas esses mais de dez anos fizeram muita diferença.

Nesse período o mercado de dublagem se transformou. Antigamente só se dublava para a TV, uns poucos filmes infantis e eventualmente desenhos animados da Disney. Hoje, boa parte dos filmes são lançados no cinema também em versões dubladas. Dependendo do lugar onde estão, alguns complexos de salas exibem apenas filmes dublados. Dubladores alcançaram algum reconhecimento popular, alguns viraram quase estrelas e agora têm canais no YouTube. É cada vez mais difícil encontrar um filme legendado nos cinemas.

Pode parecer que a vida deu a razão a quem reclamava da dublagem e a vitória a quem gosta dela, mas a verdade é que nada disso importa porque no “istrímin” qualquer pessoa pode ver o filme como quer, e reclamar da dublagem é, sinceramente, coisa de quem continua não gostando de pobre.

O engraçado é que isso, para mim, é algo contraditório. E cada vez mais sem sentido, também.

Ainda adoro a dublagem da AIC, velha, datada, com seus rr corretos e vozes empostadas, ou a da Herbert Richers, quase onipresente em minha adolescência. Ainda é delicioso ouvir vozes como a de Borges de Barros e do Carlos Vaccari, ou o Ricardo Mariano me contando quem fez a “versão brasileira: Herbert Richers”, e vou morrer sendo fã do Márcio Seixas narrando a Disneylândia para mim. Quando decidi assistir a “Jornada nas Estrelas”, fiz questão de ver as duas primeiras temporadas com a dublagem dos nos 80, o mesmo Márcio Seixas fazendo o Spock.

Ainda assim, tenho calafrios quando assisto a um trecho de filme novo dublado. Normalmente detesto cada detalhe, as vozes, as expressões, os palavrões que agora são autorizados a traduzir.

Durante muito tempo tive a impressão de que isso acontecia porque, por um lado, me vi mais e mais exposto ao som original de filmes, seriados e desenhos; não vejo TV aberta já há algumas décadas, com exceção do Jornal Hoje para alegrar o meu almoço com tragédias inomináveis, das quais a menor não é o César Tralli e suas platitudes falsamente compungidas.

Por outro, eu tinha a sensação de que algo se perdeu quando dubladores passaram a trabalhar sozinhos no estúdio. Nos tempos do eu pequeno a tecnologia parca exigia que uma cena fosse gravada com todos os atores com falas nela. Computadores permitiram que as gravações sejam feitas em tempos e lugares diferentes, dando mais eficiência ao processo; mas parecia faltar agora aquele quê indefinível que só a interação humana pode dar, as frações de tempo certas entre uma fala e outra, a entonação mais natural ao que se acabou de ouvir.

Acreditei nisso por muito tempo. Acho que ainda acredito.

Acontece que alguns anos atrás alguém estava vendo um filme da Sessão da Tarde muito alto e eu estava na rua. Parei alguns instantes para ouvir a dublagem. E fiquei impressionado ao perceber como ela era boa. Sem a imagem, o que eu ouvia eram boas vozes e boa entonação, atuais, corretas, verdadeiras.

De lá para cá passei a acreditar que a ruindade da dublagem atual está na minha cabeça, sempre esteve, e lá apenas. E mesmo assim continuo sem gostar dela. Continuo detestando. Mas agora sei que detesto porque sou chato, talvez a mesma chatice e cabeça tonta que me fazem escrever este post.

(Disso, pelo menos, eu sei a razão. Escrevo porque quero deixar um registro para mim mesmo. Porque daqui a pouco, nada disso vai importar.)

Há alguns anos, conversando com amigos — antes da IA virar assunto comum —, eu dizia que não devia demorar tempo demais até que computadores fizessem a dublagem de um filme com a própria voz do ator original. Ninguém discordava de mim, é verdade. Mas há algumas semanas atrás mesmo a minha previsão mais otimista se mostrava defasada e, principalmente, equivocada. Um vídeo de uma atriz americana falando em português com sua própria voz e expressões faciais modificadas pelo computador viralizou mundo afora. Eu não esperava por isso.

O vídeo é um aviso do apocalipse que está por vir. Dublagem é profissão inexoravelmente condenada. Dubladores podem ainda tentar se iludir, mais ou menos como fabricantes de carruagens diziam em 1910 que sempre haveria espaço para o requinte de um landau, incomparável diante daqueles automóveis barulhentos, pouco confiáveis, vulgares. Talvez seja melhor assim, talvez doa menos ver que algo que você ama e que marcou a vida de tanta gente, como a minha, está inexoravelmente condenada a desaparecer.

***

Mas o mundo da dublagem é muito mais complexo do que tudo isso.

Dia desses assisti a um episódio dublado de “A Gata e o Rato”. Era um dos melhores de todo o seriado, que foi, por sua vez, talvez o melhor dos anos 80. Nele, David e Maddie discutiam sobre um crime acontecido décadas antes, e cada um tinha uma perspectiva diferente sobre a autoria, baseados no que hoje chamariam de perspectiva de gênero. Originalmente o episódio se chamou The Dream Sequence Always Rings Twice, mas foi apresentado aqui como “Romance do Passado”, título típico da Globo naquela década.

E então David fala para Maddie: “Você está sendo uma sexóloga.”

Epa. Não fazia sentido. A palavra sexóloga estava tão à vontade nesse contexto como eu em missa de ação de graças. Fui procurar o original em inglês, e era isso mesmo que eu imaginava: o personagem de Bruce Willis dizia a Maddie Hayes que ela estava sendo sexista.

Também não era difícil imaginar a razão pela qual a tradução tascou um “sexóloga” nesse diálogo.

Na primeira metade dos anos 80 parecia que as mulheres estavam descobrindo o sexo. O “Relatório Hite” tinha feito um sucesso estrondoso alguns anos antes, e colocado a questão do prazer feminino na pauta do dia. Por coincidência, eu tinha lido e relido o livro no verão anterior, como um general escrutina o mapa do terreno que pretende invadir — e devo confessar que este foi um dos mais úteis em minha então curta vida, o que reconheci anos atrás quando o Hermenauta me passou um tal meme dos cinco livros. Além disso, desde o início da década Marta Suplicy tinha colocado no vocabulário dos brasileira a palavra sexologia, a partir do seu quadro em um programa revolucionário chamado TV Mulher.

Os brasileiros, então, conheciam a palavra sexologia. Mas “sexista” não existia em português, não ainda. Era um conceito estranho em um mundo que ainda normalizava o machismo. E por isso a tradução, possibilitada pela dublagem, pegou o conceito mais próximo do original e o utilizou. Deve ter dado certo na época, porque não lembro de estranhar a palavra ou o contexto então.

É esse tipo de coisa que a dublagem fazia e que agora, com a IA, deverá fazer parte do passado. Essas soluções criativas, essa atenção a um mundo que existe fora dos filmes, tudo isso vai desaparecer. E é por isso que escrevo isto, como homenagem e registro de um tempo em que atores brasileiros faziam trabalhos muitas vezes melhores que os originais

Oscars 2023

Avatar não prestava em 2009, presta ainda menos em 2023.

Top Gun: Maverick nesta lista é quase uma ofensa. Não por ser um mau filme, que isso ele não é. Mas tampouco vai além do artesanato tecnológico e excelência estética em cenas de ação que ostenta como grande trunfo. É uma vergonha que a sequência de um filme que há menos de 40 anos era apenas divertimento escapista para adolescentes hoje concorra ao Oscar. Um filme menor, sob todos os aspectos. Não vale o que Tom Cruise gasta em cirurgias plásticas.

Elvis é um Baz Luhrman repetitivo e esgotado, que junta duas tradições narrativas diferentes para um resultado pífio, sem a euforia e a surpresa visuais que caracterizam filmes realmente bons como Moulin Rouge. Não o ajudam as inverdades históricas, as mentiras para forjar, nos bom e mau sentidos, um Elvis recauchutado para o mundo que ajudou a criar mas não soube acompanhar: aqui tentam transformá-lo no que nunca foi nem quis ser, roqueiro na alma, irmão do gueto, um cabra “woke” de verdade. No fim das contas, o filme não compreende nem respeita o velho ídolo que morreu cagando, embora trate melhor o seu protagonista e narrador, o coronel Tom Parker. E o ator que interpreta Elvis, Austin Butler, parece mais com Jim Morrison do que com The Pelvis.

É espantoso que Triângulo da Tristeza tenha ganhado a Palma de Ouro em Cannes; aparentemente, hoje Cannes está mais próxima do Piscinão de Ramos do que da Mônaco onde Grace Kelly seduzia Cary Grant com suas joias. Deve ter sido porque pobres gostamos de ver os ricos sendo ridicularizados, ou o hype do mundo sendo mostrado como o esforço cínico de marketing que é. A primeira parte, na verdade, é muito boa, com bons insights e flechadas certeiras. Mas então vira uma bobajada demagógica num roteiro cheio de furos e implausibilidades. “O Mordomo e a Dama”, filme que costumava ser exibido na Sessão da Tarde nos anos 80, é melhor.

Os Fabelmans é um bom Spielberg, uma ode ao cinema como forma de recriação da vida e diálogo entre as pessoas. Tem alguns excelentes momentos e impressiona ao mostrar os pais do diretor como pessoas falhas como qualquer um. Mas coitado do velho Steve: há algo de tão acadêmico, de tão morno em seus filmes, de tão velho. É a sua honestidade que mais seduz neste filme, a chance de conhecer um pouco mais da vida do sujeito; porque fora isso, não há muito mais. Spielberg já fez filmes melhores, o cinema já recebeu homenagens melhores.

Nada de Novo no Front é um belo filme, forte, capaz de mostrar o horror e a falta de sentido da guerra com capacidade. A direção é firme, correta, a fotografia é excelente, as atuações são adequadas. Mas além de ser uma refilmagem — que deveria ser falta eliminatória em uma premiação —, não tem realmente nada de novo, e os mais de 90 anos de miséria e horror humanos e a infinidade de guerras que separam as duas versões retiram muito da sua importância real.

Entre Mulheres é um filme curioso e instigante, que em uns poucos momentos chega a lembrar vagamente aqueles filmes godardianos em que se fala, fala, fala. Estabelece um debate sobre a condição feminina que escapa da demagogia, e só isso já motivo de celebração. Seria ainda melhor se fosse tratado como uma parábola dessa discussão, atemporal e num lugar imaginário, em vez de inspirado num caso real acontecido na Bolívia. De qualquer forma, é um grande resumo da discussão feminista americana atual, apesar de acabar refletindo a origem puritana religiosa de parte dessa discussão.

Tár é um filme admiravelmente bem construído, excelente em sua ambiguidade e na destreza com que narra a trajetória à la Nightmare Alley de Lydia Tár. Mas acima de tudo, é uma atuação estelar de Cate Blanchett. Eu não queria que escolher entre dar o Oscar a ela ou a Michelle Yeoh: duas atuações tão diferentes, e tão brilhantes. Uma, a de uma grande estrela que dá uma dimensão maior que a vida à sua personagem; na outra, a compreensão das minúcias e sutilezas de seus personagens.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo poderia ter impresso “Vencedor do Oscar 2023 de Melhor Filme” em seu cartaz de lançamento, para economizar tempo. O filme traz uma mistura inteligente e surpreendente de atualidade — absorve como poucos esses vinte e poucos anos de universo de super-heróis e lhe dá uma perspectiva diferente —, inventividade formal, roteiro que em alguns momentos lembra os de Charlie Kaufman, referências diversas ao cinema, e tudo isso sobre uma base sólida e eficiente, que é a boa e velha busca pela felicidade familiar. É a receita perfeita para o prêmio, e uma provável vitória será mais que merecida.

Mas o melhor filme entre os concorrentes deste ano é Os Banshees de Inisherin — junto com o formidável EO, que concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro —, um filme sensível e surpreendente, admiravelmente bem executado, com grandes diálogos, interpretações brilhantes — especialmente a de Colin Farrell — e uma visão inquietante e complexa das relações humanas. “Banshees” não dá respostas, e nos lembra que cinema, antes de mais nada, continua sendo contar bem e de um jeito novo e singular uma boa história. Fazer isso com tamanha maestria, num ano excepcional em que a maioria dos concorrentes ao Oscar é muito boa — algo cada dia mais raro, como mostram os últimos anos — é um feito e tanto.

Oscars 2022

King Richard eu ainda não vi.

West Side Story é, em absolutamente todos os aspectos, inferior ao original de Wise e Robbins. Talvez possa apreciar o filme quem não conhece ou não lembra do original de 1961, mas acho muito improvável. O que aquele tinha de moderno, inventivo, de grandioso e de arrebatador, este tem de medíocre e covarde, pasteurizado até mesmo em seu discurso. Os números de dança são poucos e pobres, preguiçosos, a música se atola em um limbo temporal que a impede de ser relevante. Aposto que até Baz Luhrman faria melhor. Só não é o pior entre os concorrentes do ano porque nem mesmo Spielberg conseguiria estragar totalmente material tão bom. (Mentira: é o pior, sim, e por isso abre a lista.)

Deve haver alguma razão para Licorice Pizza estar concorrendo ao Oscar, mas eu ainda não consegui descobrir qual é. Talvez apele para o corporativismo da Academia por ser inspirado nas memórias de um produtor, talvez o pedigree do diretor lhe possibilite dar uma carteirada digna de promotor de justiça. Não dá realmente para saber. Fora isso, é só um filminho que em seus melhores momentos apenas consegue parecer remotamente com os mais chinfrins de Cameron Crowe. Curiosamente, me lembrou um israelense antigo, cujo nome esqueço e não faço questão de lembrar, mas que tem Lollipop ou Popsicle no título, e o indefectível “O Último Americano Virgem”. Só não sei por quê.

Se não sei como Licorice Pizza está nessa disputa, sei como CODA entrou: pelas cotas, como Sound of Metal ano passado. É o maior amontoado de clichês que alguém vai ver nesta fornada, e mesmo que se tente, é impossível não saber o que vai acontecer na cena seguinte. Para agravar ainda mais as coisas, essa é uma refilmagem. Mas a verdade é que o filme tem qualidades: as atuações são muito boas, a direção é eficiente embora sem imaginação, arranca gargalhadas sinceras em um ou dois momentos e consegue engajar o espectador, que pode se identificar facilmente com a protagonista. Sian Heder tem o mérito de fazer um filme simples e extremamente agradável. E fez a opção sagaz de não legendar ou traduzir os diálogos em linguagem americana de sinais. Ou seja, tudo o que um bom filme de Sessão da Tarde faz.

Dune, de certa forma, é quase Star Wars feito da maneira certa, com roteiro escrito por um cidadão minimamente letrado e um leve molho de Game of Thrones. É um bom filme para o gênero, claramente pensado para ser trilogia (ou enealogia, se Deus der bom tempo), formalmente correto como os filmes de Villeneuve normalmente são. Filme bem razoável, não faz vergonha, mas nada de outro mundo.

Nightmare Alley é o filme em que eu votaria se fosse da Academia, mesmo sendo uma refilmagem, que num mundo ideal jamais deveria sequer concorrer. Não porque é o melhor, porque não é. Mas noirs e westerns ainda são meus gêneros preferidos, e este não nega a raça: um belo filme noir que consegue evocar toda a atmosfera de uma era sem parecer um pastiche, e ainda é melhor que o original por evitar o final conciliador.

Uma boa linhagem inglesa precede Belfast, que às vezes passa a impressão de ser o mesmo filme inglês de memórias que a gente vê de vez em quando sob nomes diferentes: Hope and Glory ou Still Lives, Distant Voices. Parecem todos saídos do mesmo útero. Mas que isso não pareça um demérito: é um filme excelente, forte, coeso, humano, e acerta ao narrar o mundo pelos olhos do menino Buddy, dando a tudo um tom onírico, irreal, a memória recriada. A fotografia é excelente, um filme com Judi Dench e Ciarán Hinds em bons papéis não pode ser ruim, e o uso da cor para indicar a importância do cinema e do teatro em um mundo que insistia em tentar ser preto e branco pode não ser o beta de Rumble Fish, mas funciona.

The Power of the Dog é um belíssimo filme. Denso, conduzido de maneira soberba, com atuações memoráveis, especialmente de Benedict Cumberbatch. E no entanto tem um final que diminui o filme, quase óbvio, absolutamente anticlimático. Toda a narrativa que se construía até ali prometia, quase implorava por uma complexidade que o final simplório não consegue entregar. E o filme desperdiça as chances de explorar a relação entre os dos protagonistas. Triste, isso.

Don’t Look Up é uma sátira deliciosa ao mundo americano em que vivemos, perceptiva, inteligente, sem deixar de ter no seu miolo o que move um filme desde quase sempre: a decadência e redenção do personagem de Leonardo DiCaprio (em atuação excelente, no ponto certo). É quase o Dr. Strangelove dos anos 2020. O mais curioso é que a trajetória do filme seguiu o mesmo roteiro que ironiza: gerou um burburinho imenso nos dias posteriores ao seu lançamento e agora ninguém mais fala nele, porque temos que seguir em frente, sempre, tem sempre um filme novo a ver, alguma besteira nova a falar. A única coisa realmente fraca no filme é a coda, mesmo engraçadinha — codas são, em 99,99% das vezes, desnecessárias.

Doraibu Mai Kā é surpreendente e de uma beleza estonteante, e supera todos os outros por mundos de distância. Uma teia intrincada de sentimentos admiravelmente bem tecida em sua relação com o tempo, dirigido de maneira singular e idiossincrática, é o melhor filme entre os concorrentes. E embora eu entenda que essa leva de filmes orientais se devem à busca de Hollywood por mercado, desta vez o filme selecionado realmente merece o Oscar que “Parasita” ganhou indevidamente. Devem fazer com ele o que fizeram com “Roma”, mas além de ganhar o Oscar de melhor estrangeiro ele ainda pode entrar para o Guiness como prólogo mais longo da história. E eu realmente não entendo por que traduziram por estas plagas botocudas o título japonês pelo inglês.

Quatro refilmagens concorrendo ao Oscar. Quatro. Isso deve significar alguma coisa, mas tenho medo de saber o que é.

Marighella

Fernando Meirelles me chamou de ladrão.

Não foi nada pessoal, até porque ele nem sabe que existo. Foi uma ofensa genérica: ele anda meio chateado porque o filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura, estrelado por seu Jorge e do qual ele é produtor associado, vazou nas redes. “Por alguma razão as pessoas acham que roubar fruta na árvore ou assistir filme pirata não é roubo. A mente humana é pródiga em autoengano”, ele disse à Folha de S. Paulo ontem, sentado nos muitos dinheiros arrecadados através de leis de renúncia fiscal e financiamento direto das tetas da viúva. O discurso é assustadoramente próximo dos bolsonaros da vida, que também chamam o financiamento público de filmes de roubo, mas adoram se apropriar dos fundos públicos em rachadinhas e quetais. Muda só o ponto de vista.

A novela de “Marighella” acabou se tornando razoavelmente longa. Primeiro por causa do boicote anunciado pelos bolsominions, assustados com qualquer coisa que não seja fake news; depois por causa da pandemia. Lá fora o filme estreou em 2019, fazendo o circuito dos festivais que é a praxe em filmes fora do esquema hollywoodiano. No Brasil, estrearia em novembro daquele ano, mas o governo Bolsonaro fez o que pôde para evitar sua exibição. Eles têm muito medo de filmes, de comunistas mortos e de vacinas. Recentemente, “Marighella” estreou comercialmente nos EUA, de onde vazaram as cópias legendadas que circulam agora. Vai estrear no Brasil em novembro deste ano.

O povo brasileiro ajudou a financiar um filme que, durante dois anos, não pôde ver, enquanto seus produtores o rodavam mundo afora para viabilizar seu lucro ou sei-lá-o-quê. Quando finalmente tem a chance de assistir a ele, graças à desonestidade inata dos americanos, é chamado de ladrão.

Assim, enquanto murmurava “não esculacha, chefia!” e colocava as mãos atrás da cabeça, sabendo-me pego, lembrei do Cacá Diegues chiando quando cobraram a ele algo que, se não me engano, chamaram de “contrapartidas sociais”, uns 20 anos atrás — e que, acho, consistia em levar ao povo o filme feito com seu dinheiro. Diegues é o mesmo sujeito que criou a expressão “patrulha ideológica”, em meio à ditadura militar. Como Meirelles, é gente que gosta muito de dinheiro público, mas não tanto de devolvê-lo.

Para piorar ainda mais as coisas, essa postura hipócrita do Meirelles talvez não fosse tão irônica se o filme não contasse de um comunista que dedicou sua vida, quem diria, à abolição da propriedade privada. Se ladrão há nessa história, esse ladrão é o Marighella, e nesse caso tenho muito orgulho de ser chamado assim, ainda que por tabela.

Só então eu, ladrão contumaz e irrecuperável, percebi que nunca tinha roubado um filme do Fernando Meirelles, muito menos esse “Marighella” (que, não custa lembrar, não é dele).

Eu não lembrava do filme, nem mesmo da polêmica causada pela escolha de Seu Jorge para o papel do protagonista, o primeiro caso de “blackwashing” de que tenho notícia. Na época achei interessante, porque não apenas é mais válido que embranquecer um personagem, mas também porque levou a uma reavaliação iconográfica de Marighella que corrigiu um grande erro histórico e jogou nas fuças das pessoas a glória da sua mulatice. Só depois percebi que há um problema inerente a essa decisão. A escolha de Seu Jorge parece mais que aceitável diante do histórico de racismo e obliteração da imagem do negro nas artes, mas no fundo acaba sendo mais um evento de negação da miscigenação brasileira, a entronização de um binarismo racial americano que representa um retrocesso e que, infelizmente, é cada vez mais aceito. Um cabo de guerra em que o mulato, moreno, pardo, chamem do que quiserem, é negado em função de um discurso insuficiente.

Mas quem disse que o crime não compensa não viu ainda este filme. “Marighella” é excelente, uma grande obra. É ainda melhor no atual contexto político do país, em que qualquer pessoa que não seja totalmente imbecil ou canalha é chamada de comunista. Wagner Moura estreia como um diretor seguro, que tem perfeita noção da história que está contando. Para inseri-la melhor no contexto atual, reforça inclusive a questão racial, que não era exatamente prioridade naqueles tempos. Moura mostra-se também um excelente diretor de atores, como se pode ver nas atuações excelentes de Bruno Gagliasso, Adriana Esteves e Luiz Carlos Vasconcelos. Nenhum desses, entretanto, iguala o desempenho excepcional de Seu Jorge. Seu Jorge consegue passar, simultaneamente e com brilhantismo, a dureza e a humanidade de Marighella.

A direção de arte também é excelente, em que pesem anacronismos como a presença conspícua de pistolas PT 92 muitos anos antes de serem criadas, antes mesmo até das Beretta 92 que as originaram, ou a luz avermelhada das lâmpadas de vapor de sódio nas ruas.

Terminado o filme, satisfeito com meu butim, desliguei a televisão esquecido de Fernando Meirelles, até que fui ao IMDb e vi que a nota dada a “Marighella” é 3,2.

Cheguei à conclusão de que só gente como Meirelles avaliou este filme, pelo visto. E visualizei imediatamente aquela legião de toscos tangidos pelo Carluxo apertando freneticamente a menor estrelinha, ignorando quaisquer qualidades cinematográficas do filme — o que, aliás, ele tem em demasia. Por isso ele deve ser roubado e compartilhado por quem puder. Todos os brasileiros deveriam ver este filme; velhos comunistas como Marighella e o Comandante Toledo (e João Amazonas, e Elza Monnerat, ou os tantos outros que não conheci) podem estar fora de moda, mas é preciso que voltem a mostrar a um povo cada vez mais afundado numa lama antes inimaginável que um outro mundo é possível, e que para isso ele nem precisa existir de verdade.

“Marighella” deve ser roubado e roubado e roubado de novo porque ele quase nos devolve o orgulho de sermos brasileiros. Ainda que seja de uma forma perfeitamente exemplificada na cena final, que deveria ter sido incluída no meio do filme: angustiada, desesperançada, mas ainda assim com orgulho e, acima de tudo, fé.

Oscars 2021

The Sound of Metal parece um daqueles filmes para a TV que passavam na Sessão da Tarde antigamente, como “A Família Que Ninguém Queria”, ou “Meu Filho, Meu Mundo”, o tipo de filme que busca sensibilizar o expectador através da identificação com o drama pessoal do protagonista — aqui, a surdez de um baterista de música estranha. Direção, edição, roteiro, tudo aqui está completamente dentro dos padrões conhecidos do cinema dito independente, mas ouça bem: ele não tem nada de especialmente notável ou brilhante além da interpretação de Riz Ahmed, e se está na lista do Oscar deve ter sido por lobby da APADA. Muito melhor é assistir a Plemya, de 2014.

Minari não leva a lugar nenhum. Alguém deve ter dito ao diretor que o mais importante é o que se deixa de dizer, e ele levou isso ao pé da letra. Superficial, é apenas mais um filme de memórias de um menino criado no campo (durante os anos Reagan — não que isso faça alguma diferença neste filme), e inferior a obras que abordaram o tema com mais vigor, como “Um Lugar no Coração” ou “O Rio do Desespero” ou “Amor à Terra”, para não falar de “Vinhas da Ira”. É quase como se o diretor soubesse que histórias semelhantes já foram contadas tantas vezes que basta dar pinceladas bem leves sobre o assunto que o espectador vai entender. É simpático e suave, o que alivia um pouco sua barra; mas o fato é que a única coisa digna de nota no filme, mesmo, são as excelentes atuações de Will Paxton e Youn Yuh-jung. A impressão que fica é que depois de Parasite ano passado, coreano passou a ser obrigatório no Oscar. Não tem problema, isso acaba ano que vem.

Promising Young Woman poderia ser mais do que é. Baseado em uma visão infantil e esquisita do que andam chamando sororidade (a vingança da protagonista pelo estupro, humilhação pública e posterior suicídio de sua melhor amiga, e que redefine a sua vida, é abrir mão de sua vida e todo final de semana se fingir de bêbada em bares, atrair predadores sexuais e, na hora H, fazê-los colocar a mão na consciência. Surreal). O filme tem um ponto de vista a defender, e isso até o valoriza um pouco, mas não o suficiente. Além disso, seria melhor sem o twist final, que diminui o impacto da tese que defende ao fazer o bem vencer o mal e, no fim das contas, apenas reforça a sensação que permeia todo o filme: o machismo mata, mas tem umas psicopatas autodestrutivas, como a personagem de Carey Mulligan, que complicam tudo.

The Trial of the Chicago 7 é um excelente filme de tribunal, gênero que já deu boas obras ao mundo, e um dos dois concorrentes deste ano que tratam de um mesmo momento da história política americana, embora com um viés menos identitário e muito mais frouxo. Tem contra si o fato de que, embora seja correto, ter tantos clichês quanto uma tipografia antiga. Bom filme, mas não mais que isso. Ele também parece ter uma pinimba contra Tom Hayden enquanto celebra Abbie Hoffman e Jerry Rubin. E a bem da verdade histórica, não custa lembrar que, alguns anos depois do julgamento, Jerry Rubin era o sujeito cuja namorada deu para John Lennon debaixo do seu nariz, e Tom Hayden era o sujeito que comia a Jane Fonda, quando Jane Fonda era Jane Fonda.

Mank é um belo filme, mas é bom mesmo para cinéfilos, que conhecem a história de Mankiewicz (e do seu irmão mais talentoso, Joseph). David Finch fez um filme tradicional, com recursos fáceis a velhos gimmicks (como as marcas artificiais que tentam reproduzir o desgaste de celuloide antigo, algo que deveria ser objeto de um novo Código Hays e banido do cinema) para glamourizar a velha e boa Hollywood. Nesse aspecto, é um filme que poderia ser feito nos anos 50, inclusive em suas falsificações da verdade. É cinema de primeira qualidade, mas é praticamente a antítese de “Cidadão Kane”: dialoga com o velho enquanto “Kane” trazia o novo.

(Nota: se seguir os passos do Golden Globe, o Oscar de melhor ator vai para Chadwick Boseman, o que na minha opinião só não é injusto porque o cabra está morto e de defunto a gente não fala mal; mas é bom registrar que seu desempenho em Ma Rainey’s Black Bottom [que traz Viola Davis — talvez a mais importante atriz americana da atualidade — num papel que mostra que ela chegou à maturidade e conquistou o direito de representar Viola Davis] não foi o suficiente para me fazer esquecer a atuação estelar de Gary Oldman aqui.)

Por pouco Judas and the Black Messiah não é o melhor filme do ano. Bem feito, com uma trilha sonora brilhante e algumas atuações impressionantes, é uma história contada com competência e foco pelo diretor Shaka King. Já vi gente falando deste filme como uma biografia de Fred Harman, o que significa que elas não viram o filme: é uma crônica da ascensão e queda dos Panteras Negras em Chicago, de um modo de fazer política e de como se destrói um movimento social. Como bônus, o filme é também uma aula de política, e deveria ser visto por toda essa renca de chatxs identitárixs de Facebook.

The Father é surpreendente. Em outras mãos o filme desapareceria sob a interpretação estupenda, incomparável, absolutamente fantástica de Anthony Hopkins, e seria a típica fita pequena que antigamente fazia a festa de quem apostava em zebras diante de superproduções. Mas o filme que Florian Zeller entrega é surpreendente, ao dar uma dimensão reveladora, instigante e cheia de suspense do que é a demência, ele consegue mostrar o que ela é ao mesmo tempo em que faz cinema com C maiúsculo.

Nomadland consegue extrair poesia de onde menos se espera. Chloé Zhao, com um olhar curiosamente distante mas não frio, mostra a vida de uma legião de deserdados do sonho americano com empatia, mas sem compaixão ou pieguice. É esse paradoxo que faz a beleza do filme. Estrelado por Frances McDormand (cada vez mais parecida com Steve McQueen) em uma atuação irrepreensível, o filme é, de longe, o melhor dentre os concorrentes deste ano, e o favorito desde que ganhou o PGA, talvez porque é o único que consegue apresentar uma visão bem própria do mundo que nos cerca hoje.

A morte do faroeste

Achei por acaso um excelente canal sobre cinema no YouTube. Se chama EntrePlanos e tem uns tantos vídeos muito bons sobre faroeste. Com informação sólida e bons argumentos, ele me pareceu bem acima da média. Outros canais que vi por aí não passam de amontoados de lugares comuns ou bobagens ignorantes e descontextualizadas. O EntrePlanos me lembrou que aqueles que sentem falta da era áurea dos blogs apenas não sabem procurar: os canais do YouTube são os blogs de hoje.

Um vídeo me chamou a atenção. Fala sobre o fim da era dos westerns no cinema. Ele começa fazendo um paralelo entre o domínio dos filmes de super-herói hoje com a era de ouro do faroeste. Particularmente acho uma comparação complicada, até por uma diferença de escala, mas é válida e interessante. A maior parte dos cerca de quinze minutos de vídeo é muito boa — ele traz uma excelente explicação sobre as razões pelas quais os bangue-bangues se tornaram um gênero de sucesso no mercado. Talvez fosse possível acrescentar outro, uma reinterpretação da opinião de André Bazin de que o western era o único gênero que só se pôde realizar completamente no cinema (o que, a propósito, reforça a comparação do EntrePlanos com os filmes de super-heróis neste século).

Mais adiante ele estabelece uma dicotomia equivocada entre faroeste e ficção científica — na verdade, os anos 50 foram o ápice do sci-fi em termos de alcance popular, com uma enormidade de filmes B que faziam a alegria das matinês e vesperais (“Matinê”, de Joe Dante, é uma homenagem a esses filmes, e sobre isso escrevi algo aqui há muitos anos e não vou me alongar.) Também atribui importância demais a “O Portal do Paraíso” na agonia do bangue-bangue; quando o filme de Cimino saiu, o western já estava morto havia tempo, e nem mesmo ele impediu que logo depois alguns faroestes bem-sucedidos, como Silverado e Pale Rider, fossem feitos.

Há um momento, no entanto, do qual discordo absolutamente: quando o canal fala das razões pelas quais o bangue-bangue virtualmente acabou.

Segundo o EntrePlanos, uma nova mentalidade surgiu no final dos anos 60. Ele credita a derrocada dos westerns à mudança no cenário político e cultural. Hippies, protestos contra a guerra do Vietnã, o movimento pelos direitos civis, o questionamento do mito americano. Uma nova geração não mais se sentia à vontade com a representação de índios malvados, mocinhos impolutos, etc.

É uma visão rósea e excessivamente acadêmica. Não é apenas revisionista, mas equivocada.

Para começar pelo menos importante, é claro que o faroeste tradicional estava cada vez mais em desacordo com os tempos. Mas ele vinha mudando. Índios já não eram unicamente retratados como assassinos selvagens havia um bom tempo. Mesmo mexicanos — pense em quantos westerns americanos tradicionais se passam em Sonora, Los Angeles, San Francisco, San Antonio e não trazem sequer um mexicano, nem mesmo aqueles gordinhos vestidos de branco e ostentando um bigodão, subservientes, preguiçosos e frouxos, nem mesmo bandoleros ou señores rancheros — àquela altura vinham aparecendo mais e melhor. Os americanos apenas não conseguiam (e não conseguem até hoje) retratar a importância dos trabalhadores chineses na construção do Oeste americano.

Se fosse essa a razão, bastava mudar o enfoque ideológico e pronto. Mas isso não aconteceu, que me perdoe “O Pequeno Grande Homem”, ou “Meu Ódio Será Tua Herança”, ou tantos outros.

A verdade é que a decadência do faroeste como gênero cinematográfico se deve a dois fatores, e a política não era um deles.

O primeiro foi o simples esgotamento. Pensando bem, os faroestes resistiram tempo demais: os filmes de super-herói têm uns vinte anos e já se esgotaram. Mas nos anos 70, o bangue-bangue já não tinha mais nada de novo a dizer. O spaghetti western não fez muito para reverter a situação. Diante daqueles filmes, um americano se sentia ainda pior que um brasileiro horrorizado diante de um francês tentando lhe mostrar como fazer samba; embora a essência não fosse tão diferente assim — o faroeste sempre foi sobre a conquista da fronteira e os conflitos que vêm daí, e por exemplo os filmes estrelados por Kirk Douglas, quase sempre, traziam personagens ambíguos, quase anti-heróis (em The Last Sunset, por exemplo, ele conscientemente comete incesto) —, havia um mundo de distância estética, e também uma maneira não muito agradável de recontar a história americana mitificada pelo faroeste.

O outro fator, talvez o mais importante, foi a TV.

A principal mudança que a televisão infligiu ao cinema tem origem no fato de que ela passou a oferecer dramaturgia gratuita e confortável a milhões de pessoas, que agora já não precisavam ir ao cinema.

Agora, adivinha o que essas pessoas viam na telinha.

Mesmo antes do acordo entre a Universal e a NBC, através do qual o estúdio jogou boa parte do seu acervo na TV, faroestes já tinham se tornado o esteio da programação televisiva americanas. Desde o fim dos anos 40, quando ela começou a se popularizar, todos os canais apresentavam um volume desproporcional de westerns. “Cisco Kid”, “O Homem de Virgínia”, “O Homem do Rifle”, “Durango Kid”, “Bat Masterson”, “Zorro” (de capa e espada), “Zorro” (The Lone Ranger), “Roy Rogers”, “Bonanza”, “Chaparral”, “Laredo”, “Lancer”, “Big Valley”, “Os Pioneiros” — o número de seriados de faroeste exibidos à exaustão entre as décadas de 50 e 70 é quase impossível de ser contado. Na verdade, era ainda pior do que se pode imaginar: em um tempo em que o satélite não existia, esses seriados não desapareciam da programação quando sua produção era cancelada: sempre havia um estado, uma cidade onde eles seriam novidade, e “Cisco Kid” era exibido logo depois de “Bonanza”. De maneira caótica, mas simultânea, sempre havia um western sendo exibido em alguma TV. Mais de vinte anos de faroestes esquemáticos ao extremo conviviam alegremente e chegavam às casas de milhões de americanos.

O gênero já vinha se esgotando no cinema e encontrou na TV uma sobrevida, até mesmo uma reinvenção. Mas paradoxalmente, essa sobrevida nos lares americanos acelerou ainda mais a sua decadência nas salas de cinema.

Ao contrário do que diz o EntrePlanos, o público mais fiel do faroeste não foi tão afetado pela mudança de percepção sobre a Guerra do Vietnã. Ele continuaria o mesmo, vivendo no mesmo meio-oeste, com os mesmos valores que hoje fazem a delícia de organizações como a NRA; em 1972 votaria em Nixon, oito anos depois, em Reagan, e nos anos 80 iria aos cinemas assistir a “Rambo II”, “Rocky IV” e a “Cobra”; mais recentemente votaria em Trump, e continua não gostando de índio, de preto ou de mexicano. Mas algo muito importante tinha mudado: ele já não tinha mais razões para sair de casa e assistir um faroeste. Seus ídolos, como Audie Murphy, John Wayne, James Stewart ou Randolph Scott, estavam velhos ou morrendo. As únicas novidades estavam na TV, e lhe bastavam.

Para eles, o faroeste não morreu. Só mudou de casa.