Augusto

Andei lembrando de Augusto esses dias.

Ainda posso vê-lo, muito magro, batendo as sete freguesias a pé, invariavelmente carregando alguns discos debaixo do braço. Ou sentado comigo num ponto de ônibus lembrando músicas um tanto obscuras dos Beatles, Stones ou Dylan. Ou ouvindo o Sgt. Pepper’s em CD pela primeira vez e dizendo “olha esse baixo!”

Nos conhecemos no Cine-Foto Walmir, numa época que eu voltava da escola a pé e nunca lanchava para poder comprar um disco no fim do mês. O Cine-Foto Walmir era a melhor loja de discos de Aracaju, a única, na metade dos anos 80, a ter um catálogo consistente de rock. Um amigo que morreu cedo demais, Jorge Eduardo, então namorado de uma tia, me levou lá pela primeira vez e me mostrou o Led Zeppelin II; a partir daí virei frequentador assíduo, embora comprasse poucos discos e ouvisse trechos de muitos. Fazia isso em livrarias e bancas de revistas, também.

A vendedora era Irani, morena deliciosa, de seios insolentes e bunda ofensiva — e tem coisa mais bela para um adolescente que rock and roll e uma bunda grande e peitos que fazem bullying com você? Foi ela quem, algum tempo depois, me apresentou o rapaz magrinho que estava na loja ao mesmo tempo que eu. Sabia que os dois eram fãs dos Beatles e achou que já era tempo de nos conhecermos.

Eu não conhecia outros beatlemaníacos em Aracaju e aquilo foi quase uma revelação.

Não lembro como, mas o assunto resvalou para livros sobre a banda, então raríssimos pelo menos em nosso canto do mundo; e eu falei que tinha o livro do Geoffrey Stokes. Augusto achou que era o do Peter Brown, The Love You Make, provavelmente o livro que todo mundo queria ler na época, porque contava os podres da banda e que nunca foi publicado em português. O mal-entendido foi desfeito logo, mas eu tinha uma coisa que qualquer pessoa quereria: o Decca Tapes.

Saímos de lá e fomos conversando até sua casa. Augusto me emprestou um disco que eu não tinha, “Álbum Branco”. De lá fomos na minha, onde emprestei a ele o Decca Tapes e, imagino, o livro de que tinha falado.

Minha mãe achou estranho eu chegar com um desconhecido, passar um tempo ouvindo discos no meu quarto e ele sair de lá com um disco meu, que eu não costumava emprestar. Eu tinha 15 anos. Olhando para trás, soa como maluquice duas pessoas que não se conhecem irem às casas uma da outra e saírem de lá com um disco. Isso nunca se repetiria depois, pelo menos não comigo.

Ainda lembro do que foi ouvir o “Álbum Branco” naquela noite. O tempo passaria e discos dos Beatles se tornariam atemporais para mim, porque os ouvi tanto que não podem me lembrar nenhum tempo ou lugar específicos; mas de vez em quando, quando ouço de novo esse disco, consigo lembrar exatamente o que senti enquanto ouvia embasbacado algo que, para mim, era totalmente inesperado.

Nos meses e anos seguintes, Augusto seria companhia constante. Discos iam e vinham o tempo todo — mais vinham do que iam: eu, que tinha muito menos, oferecia o que podia, e era pouco. O meu Decca Tapes eu sei que circulou a cidade inteira, passando de mão em mão e de gravador em gravador.

Devo a Augusto toda a base que tenho de rock and roll. De Elvis a Velvet Underground, de Muddy Waters ao Clash, dos Doors aos Sex Pistols — essencialmente, quase tudo o que importa no rock eu aprendi graças a ele. Meus gostos e desgostos — como a antipatia inamovível pelo Pink Floyd, o desprezo pelo heavy metal — foram formados aí, a partir dos discos que Augusto me emprestava.

Foi ele também quem me emprestou o On the Road, de Kerouac, e “Morangos Mofados”, e “Porcos com Asas”. Mas livros eu tinha mais, e imagino que muitos saíram de lá de casa. A isso se seguiam o tipo de discussões que só adolescentes podem ter. Ele, por exemplo, concordava com a ideia de Lennon de que primeiro você muda para poder mudar o mundo. O velho leninista aqui, ao contrário, achava é que o negócio é descer o sarrafo, que todo mundo muda rapidinho. Continuo achando.

E então Augusto começou a me dar discos. Não precisava ser aniversário, nada disso: de vez em quando ele aparecia com um disco de presente. Fui ver agora quantos discos Augusto me deu. Contei 32. Help!, Yellow Submarine, Wild Life. Sua generosidade era impressionante. Cheguei a ter três White Albums em casa, todos dados por ele. E percebi agora que, com uma exceção, todos os álbuns de Lennon que tenho me foram dados por ele, provavelmente em uma tentativa vã de me convencer de que John era melhor que Paul. A preferência por Lennon ou McCartney era uma de nossas diferenças; outra é que ele tinha adoração por louras, enquanto eu sempre entendi que menino pobre não pode se dar a esses luxos: para mim valia até cor-de-burro-quando-foge.

Certa época ele se apaixonou por uma potiguar e sua conta de telefone ficou tão alta que começou a criar problemas em casa. Então ele passou a ligar da minha, o que fez com que em seu devido tempo o nosso telefone fosse cortado, por falta de pagamento. Se lembro bem, ele acabou conseguindo encontrar a moça em Natal, mas voltou de coração partido. No fim das contas, não adiantou nada. Só o prejuízo que ele deu em duas casas.

Mais ou menos nessa época comecei a trabalhar, e o primeiro CD que comprei, o Let it Be, foi para dar de presente a ele. Que obviamente repassou a alguém.

Deve ter sido mais ou menos nessa época que descobri que Augusto era, na verdade, uma espécie de Robin Hood dos roqueiros, tirando de quem tem tinha muito para dar a quem não tinha nada. Pegou de volta vários dos discos que tinha me dado, alguns outros sumiram, meu livro do Stokes desapareceu e não sei quem pegou. No fundo acho que foi ele: pegava, emprestava a alguém e esse alguém não devolvia. Mas gosto mais de acreditar em outra hipótese bem plausível, que ele encontrava alguém mais despossuído, alguém tão ansioso para conhecer música quanto eu quando o conheci, e então agia como um redistribuidor de renda e de cultura.

É um papel nobre, esse, e eu nunca reclamei. Fazia parte do seu jeito de ser, e mais que isso, era justo. Eu jamais poderia pagar o que Augusto tinha feito por mim — e considerando que ainda tenho aqueles 32 discos, ele pegou de volta muito poucos. Era justo que, agora, eu desse a minha pequena contribuição à evangelização roqueira que Augusto empreendia cidade afora.

Acabamos nos afastando em alguns momentos — a vida afasta as pessoas o tempo todo, adolescentes crescem e descobrem novos interesses. Uma dessas foi a última. Eu sequer consigo lembrar a razão, se é que houve alguma, nem quando foi. Só sei que foi assim, diria João Grilo, e desde então não ouvi falar dele.

Mas anteontem estava relendo uma “Heróis da TV” antiga, dessas que andei baixando na internet, e na seção de cartas apareceu o seu nome. Foi uma surpresa absoluta. Eu jamais teria imaginado que, em algum momento, Augusto tinha gostado dos super-heróis da Marvel, ainda mais no mesmo ano em que comecei a comprá-las. Muito menos que ele escrevia cartas para revistas; em todo aquele tempo, super-heróis nunca tinha sido um assunto comum. E então fiquei pensando que, no fim das contas, tínhamos mais coisas em comum do que eu imaginava.

Boa é a vida, mas melhor é o vinho

Dia desses o Hermenauta citou um enólogo que disse que nenhum vinho vale mais de 100 dólares. Na hora discordei rapidamente e deixei para lá, porque era tarde e ninguém tem a obrigação de aturar minhas diatribes.

Mas fiquei pensando nisso. O tal enólogo certamente não concorda com Fernando Pessoa, de quem furtei o título deste post. E cheguei à conclusão de que dizer isso é o mesmo que afirmar que nenhum carro vale mais que um Corolla.

Aos fatos: não existem mais carros ruins. Até aqueles chineses que se desmanchavam em movimento hoje conquistam mercado com um nível de qualidade cada vez maior. Mesmo o carro mais barato vendido no Brasil tem confiabilidade, conforto e segurança impensáveis 50 anos atrás.

Assim, o Corolla deveria ser um carro suficiente para qualquer pessoa — ou pelo menos é o que me dizem, porque nunca tive um e andei em muito poucos. Confiável, seguro, equipado com mais que o básico para o seu conforto. Está aí há décadas, e deve haver uma razão para isso.

Mas algumas pessoas precisam carregar carga, precisam de tração 4×4. Outras não abrem mãos das possibilidades de velocidade um Porsche oferece. Algumas pessoas precisam, ou acham que precisam, de mais espaço. Tem gente que faz de um carro uma afirmação ética, e se aboleta num Tesla. Ou faz questão daquela BMW que abaixa para você entrar nela, mais ou menos como uma jega do avô de um amigo já ia abaixando os quartos quando via o dono se aproximar.

No caso dos vinhos, a verdade é que quase todo vinho em torno dos 50 reais no Brasil é ao menos correto, sem grandes defeitos. Geralmente vale o que custa. A questão é que ele não vai oferecer a complexidade de cheiros e gostos que um vinho de 100 dólares — mais ou menos mil reais no Brasil — pode oferecer. Um vinho como o Marques de Casa Concha custa mais ou menos 25 dólares e, ele também, é suficiente para a vontade de beber um bom vinho seja plenamente saciada.

Se o tal enólogo dissesse que um vinho de 100 bidens é mais que suficiente para qualquer pessoa, eu assinaria embaixo. Diria que pode até ser um desperdício para quem gosta mesmo é de um Pérgola. Objetivamente, ninguém precisa beber um vinho desse preço, mas qualquer pessoa acostumada a beber vinho vai perceber a diferença e se sentir mais recompensada por isso.

Mas há possibilidades num vinho que só a fabricação mais elaborada e o tempo podem oferecer. E isso custa dinheiro. Claro, não é para todo mundo — mas um Porsche também não é, e não apenas por causa do preço. É a isso que se chama valor. Eu sempre disse que jamais compraria o Romanée-Conti que vi uma vez por meros 32 mil euros, porque duvido que alguém neste mundo tenha papilas gustativas suficientes para justificar esse preço; quem compra isso segue o mesmo raciocínio — ou falta de — que faz um redator gastar 18 mil reais num MacBook Pro para fazer o que qualquer PC faz por 3 mil. Mas a verdade triste é que eu seria capaz de dar, uma vez na vida, os 4 mil pedidos num Petrus, se 4 mil euros fossem para mim o equivalente a duas mariolas e um cigarro Yolanda.

***

Pensar nisso me lembrou de tempos idos há muito, e de como eu e o vinho sempre fomos bons amigos, ou quase sempre.

Nos anos 70, o que frequentava as mesas da classe média brasileira em Salvador era o Chateau Duvalier, vinho que, acho, nem existe mais de tão ruim que era. Lá em casa muito raramente havia bebidas, mas de vez quando aparecia uma garrafa dessas, sempre tinto, e me deixavam tomar um pouco, com água e açúcar.

No réveillon de 1980 acordei depois que a festa lá em casa, de que eu não tinha participado porque dormia muito cedo, havia acabado. Meio da noite, casa vazia. Vi uma garrafa de Chateau Duvalier rosé, que eu nunca tinha tomado, e resolvi tomar um pouco. Coloquei o vinho, a água, o açúcar, e tomei um gole. Vomitei tudo, imediatamente.

O mais próximo que cheguei de um rosé desde esse dia foi um clarete espanhol, uns 10 anos atrás.

Aí pelo final da adolescência, saindo por algum tempo com uma moça que comprava sempre um branco português chamado Calamares, me acostumei a beber uma garrafa inteira, sem problemas. Pouco depois, fui trabalhar numa agência grande em Salvador, por um salário que, para mim que andava mordendo beira de penico dizendo que era biscoito, era inimaginável.

Resolvi comemorar o meu primeiro salário com uma garrafa de vinho. Parei no Paes Mendonça do Shopping Piedade, no caminho da casa de minha avó, e perscrutei a prateleira de vinhos. Estava decidido a comprar uma garrafa de vinho chique, porque o mundo dá voltas, né, queridinha? Escolhi um vinho do Porto, de que eu já tinha ouvido falar em tantos e tantos livros — o senhor Wickfield castigava um Porto direitinho, em “David Copperfield”. Comprei até uma taça, que não havia na casa de minha avó, para beber um vinho comme il faut. Era dessas taças em que restaurantes simples mas metidos serviam água e refrigerantes.

Cheguei em casa, enchi a taça e em duas horas tinha bebido a garrafa inteira. Acordei debaixo do chuveiro, onde meu tio tinha me jogado para que eu não vomitasse a casa inteira. Foi a pior ressaca de minha vida, e dela não tenho saudades. Mantive distância de vinho do Porto até pouco tempo atrás, quando um amigo trouxe uma garrafa de Portugal para mim.

E os anos se passaram. Aprendi que vinhos suaves de mesa, os velhos e bons vinhos de garrafão, ofereciam excelente relação custo-benefício, e que o Figueiras era melhor que o Dom Bosco. Devo noites muito agradáveis a eles.

Na virada dos anos 80 para os 90, como resultado da evolução da vitivinicultura brasileira, começou-se a falar mais amiúde em uns tais “varietais”; até então, nós da plebe ignara só conhecíamos tinto, branco, rosé e champagne Georges Aubert — e o Surpresa, um espumante artificial que devia envergonhar seu fabricante. Foi quando surgiram, pelo menos para mim, marcas sofisticadérrimas como Forrestier e Almadén. Na minha imaginação, o Forrestier estava ali, pau a pau com o Chateau Lafite que eu sequer sabia que existia.

Em 92, 93, um sábado em que um dinheirinho a mais apareceu, fui até o supermercado e comprei uma garrafa de vinho, para beber enquanto lia os jornais do dia que só chegavam à tarde em Aracaju, o Jornal do Brasil e a Folha de S. Paulo.

Escolhi com mais cuidado que daquela vez em Salvador. Por via das dúvidas, apostei num branco de marca reconhecida e elegante: um “semillon blanc” da Almadén — o blanc era por conta deles, claro.

E enquanto bebia, sentia um cheiro estranho naquele vinho. Cheiro de algo meio podre, passado. Era como se eu tivesse comprado um minas frescal e recebido um camembert.

“Então esse é um vinho sofisticado”, foi o que pensei. “Então esse cheiro de cavalo suado é o cheiro da sofisticação, da elegância. Melhor eu me acostumar, não vou ser pobre para sempre.”

Só muito tempo depois entendi que aquele vinho estava contaminado com Brett. E o pior é que, depois de metade da garrafa, eu já estava gostando mesmo do negócio.

O tempo passou, os chilenos apareceram, vinho virou moda. Como já disse aqui antes, bebo bem mais que os padres do Vaticano, com a vantagem de não gostar de menininhos. Apesar de toda aquela conversa da primeira parte deste post, os vinhos lá de casa nunca passam dos 250 reais, e a grande maioria anda aí na faixa dos 50, porque eu gosto de beber mas não tenho dinheiro para comprar um Corolla e não tenho dinheiro para comprar um premier grand cru classé ou um brunello de Montalcino.

E porque, no fim das contas, é Pedro quem me orienta ainda hoje, a lembrança dele no dia em que, jovens estroinas que éramos no comecinho dos anos 90, resolvemos esbanjar comprando um Chateau Duvalier — sempre ele. Pedro não viu a garrafa e quando recebeu o copo, deu o primeiro gole, fez uma careta e se indignou:

— Oxente, e agora deram para falsificar o Dom Bosco, foi?

Joe, o Fugitivo

Durante anos, em conversas sobre seriados que marcaram a infância dos velhinhos da minha geração — “Túnel do Tempo”, “Viagem ao Fundo do Mar”, “Terra de Gigantes”, “O Incrível Hulk”, “O Homem do Fundo do Mar”, tantos e tantos —, eu sempre acabava perguntando por um de que eu gostava. Se chamava “Joe, o Fugitivo”. Ninguém lembrava.

Certo, era um seriado obscuro até mesmo nos EUA. Não passou de duas temporadas de 13 episódios cada. Mas por alguma razão a Globo do Rio de Janeiro o exibiu a partir de abril de 1975, apenas seis meses depois de ter estreado nos EUA. Mas também aqui ele nao parece ter feito muito sucesso e não ficou muito tempo na grade, ao que parece.

Ainda assim, não me parecia possível que ninguém lembrasse dele. Tanta gente lembrava de coisa pior. Só muitos anos depois entender que o problema não era a memória dos outros. Eles não lembravam porque não podiam. O seriado nunca foi exibido em Aracaju, simples assim.

O processo de implantação das redes nacionais de TV foi demorado. No que diz respeito à Rede Globo, durante todos os anos 70, apenas os telejornais nacionais e, acho, o Fantástico eram exibidos simultaneamente em todas as suas afiliadas e retransmissoras. O resto era um samba do crioulo doido, com fitas quadruplex e latas de filme viajando Brasil afora e sendo exibidos em uma praça de cada vez.

E cada emissora escolhia o que exibir nos horários que não eram ocupados pela programação nacional. Em 79, por exemplo, a TV Aratu, retransmissora da Globo na Bahia, exibia “Daniel Boone” ao meio-dia, o que não acontecia em mais nenhum lugar. (Uma pequena curiosidade: se você procurar internet afora, vai encontrar a informação de que a primeira temporada desse seriado, em preto e branco, só foi exibida uma vez no Brasil. Não é verdade. Ela foi exibida em Salvador no início de 1980 pela TV Aratu, que não costumava respeitar a ordem dos episódios. Na verdade, a Globo também não).

Quando a Globo Rio desistiu de exibir “Joe, o Fugitivo”, simplesmente passou as latas de filme adiante para suas afiliadas. Nos quatro anos seguintes deve ter pulado de cidade em cidade, até chegar a vez de Salvador.

No final dos anos 70 a TV Aratu já tinha sua antena de microondas, mas filmes e seriados eram exibidos de acordo com os seus interesses. E assim, nos fins de manhã do final de 1979, ela resolveu exibir “Joe, o Fugitivo”, provavelmente porque o seriado finalmente estava disponível e ninguém queria aquele bagulho.

A história era uma mistura de “Lassie” e “O Fugitivo”, e o título brasileiro era mais bandeiroso que o original americano, Run Joe Run: um cachorro do exército americano, Joe, é acusado de um ataque que não cometeu e condenado à morte, mas consegue fugir. Uma recompensa é colocada sobre sua cabeça, mas o seu adestrador sabe de sua inocência e vai atrás dele; no entanto, Joe acha que o adestrador quer sacrificá-lo, e foge dele; enquanto isso, vai ajudando as pessoas que pode no caminho,colocando em prática o que aprendeu no exército.

Na segunda temporada o enredo do seriado mudou completamente, provavelmente porque a audiência se mostrou pífia e a criançada, seu público-alvo, cansou do jogo de gato e rato: agora Joe andava ao lado de um jovem mochileiro que vagava país afora, aparentemente sem destino — quer coisa mais anos 70 do que isso? —, e os dois continuavam ajudando as pessoas no caminho.

Ao menos em Salvador, “Joe, o Fugitivo” foi exibido por pouco tempo, entre o fim de 1989 e o começo de 1980. Em mim, pelo menos, o resultado foi uma paixão por pastores alemães que dura até hoje — embora, inexplicavelmente, nenhum dos meus cães se chame Joe.

Lembrei do seriado dia desses porque, de repente, percebi que isso nunca mais vai se repetir.

Desde a primeira metade dos anos 80 as TVs estão totalmente integradas em tempo real. O espaço para a programação local encolheu absurdamente; a programação nacional é igual em todo lugar, a todo tempo. Quem cresceu nos anos 80 e 90 vai ter exatamente as mesmas lembranças e os mesmos referenciais, seja onde for.

Mas até isso é coisa velha, caquética. TVs abertas não importam mais, são um fenômeno do passado, já morto. A meninada que cresce agora vai ter outros referenciais, todos tirados da internet ou do streaming. E isso quer dizer uma infinidade de coisas simultâneas, cada vez mais fragmentadas, mais assíncronas. A ideia de as pessoas encontrarem algo em comum numa coisa que viram há muito, muito tempo em pouco tempo vai ser um delírio, apenas. Não acredito que muita gente sinta falta disso. Mas vai fazer. É mais um elemento de união que se vai, por desimportante que seja. E o mundo não ficará melhor por isso.

Bizz

Muitas, muitas eras atrás o Marcus ficou puto comigo porque falei mal da Bizz. Eu disse que ela era “uma das revistas mais medíocres e provincianas da história do país, onde músicos frustrados escreviam sob pseudônimos resenhas sobre suas próprias bandas, que só eles ouviam, e se deliciavam em anunciar bandas de um buraco qualquer da Inglaterra, que ninguém jamais ouviria.”

Com elegância, o Marcus apontou qualidades na Bizz que eu, claro, não quis mencionar. A principal era o fato de a revista ter sido a mais importante formadora de público roqueiro dos anos 80, a triste geração de que o Marcus e eu fazemos parte.

Lembrei da revista dia desses porque achei nos meus arquivos um documentário em vídeo chamado “Bizz – Jornalismo, Causos e Rock and Roll”. Já tinha visto, mas tinha esquecido porque ele é francamente ruim: mal concebido, mal dirigido, mal fotografado, mal editado. Mas oferece ao menos um vislumbre do que foi a revista, porque traz depoimentos em primeira mão de gente que participou de sua trajetória, ainda que em entrevistas mal-conduzidas.

Em retrospecto, a Bizz chegou um pouco atrasada ao cenário, porque havia pelo menos três anos que o rock brasileiro se consolidava no alto das paradas de sucesso. Mas esse atraso era apenas relativo. O Rock in Rio tinha sido, como dizem, um divisor de águas. Durante todo o final de 1984 a Globo tinha exibido, diariamente, o “Minuto do Rock”, num esforço para garantir o seu investimento como patrocinadora do evento, e começando um processo de doutrinação que atraiu muita gente — como eu. Havia um alvoroço generalizado, que se combinava com a expectativa pelo fim da ditadura. O festival coincidiu com a eleição de Tancredo Neves, foi um sucesso e em 1985 o rock era a trilha sonora do país.

Na época, pululavam nas bancas, especialmente do sudeste, uma infinidade de revistas normalmente malfeitas e sempre sem distribuição nacional adequada. Sem ter conhecido a Pop, revista da Abril que, pelo que deduzo das capas, era uma mistura de revista Bizz e Capricho, as únicas publicações a que o país tinha acesso regular, se não me falha a memória ruim, eram a Roll e a Somtrês.

A Roll era uma revista menor e malfeita, mas dedicada exclusivamente à música. A Somtrês se dividia entre música e aparelhagem de som. De modo geral era uma revista mais sólida, e fez algumas boas reportagens. O problema é que ela era velha, feita para anciãos esnobes que podiam gastar dinheiro; não tinha como público-alvo o jovem urbano roqueiro. Ainda assim, muitos dos críticos que mais tarde chegariam à fama de nicho da Bizz já estavam ali: José Emílio Rondeau, Roberto Muggiati, Maurício Kubrusly, talvez a Ana Maria Bahiana, uns tantos por aí.

A revista que a Abril lançava em agosto de 1985 finalmente mirava esse espaço específico. Com um projeto gráfico inspirado na estética new wave, demorou alguns meses até ela consolidar um formato próprio; em seus primeiros números, trazia seções sobre cinema, instrumentistas, até cifras de músicas, coluna de fofocas e de heavy metal.

O sucesso da revista foi absoluto. Até hoje, muita gente escreve showbiz com dois ZZ, por causa de uma de suas seções. E então é aquilo que o Marcus disse: a revista introduziu a abordagem cultural paulista ao resto do país com uma eficiência maior que a Globo, por exemplo — que, aliás, nunca escondeu o seu carioca way of life. Atenta ao que acontecia lá fora, especialmente na Inglaterra, e tentando atender a vários nichos da cultura jovem urbana, a Bizz inegavelmente aproximava os grotões do mainstream paulista.

Havia um descompasso enorme. Um exemplo bobo: até ler a matéria de capa da edição de estreia, eu não fazia ideia de que Bruce Springsteen fazia tanto sucesso, ou que seus shows duravam quatro horas. Foi o não reconhecimento desses aspectos positivos que irritou o Marcus, e isso é compreensível.

Porque com todos os defeitos, a importância histórica da Bizz é inegável. A época de ouro do rock brasileiro foi o último momento em que a música conseguiu unificar e dar voz a uma geração inteira: depois disso veio o caos, a fragmentação em nichos, isso que a gente vê hoje e que nos surpreende a cada dia, toda vez que descobrimos que um sujeito de quem nunca ouvimos falar, e cuja música é feita inteira no computador, faz shows para dezenas de milhares de pessoas que cantam suas letras inanes do início ao fim. Musicalmente, a sensação que se tem é que chegamos ao apocalipse. O cenário da música brasileira nunca foi tão ruim. Diante de quatro tão tétrico, fica mais fácil achar que a Bizz eternizou em tinta impressa uma época que hoje parece dourada. De maneira às vezes deturpada, muitas vezes canalha, ela foi uma coadjuvante importante nesse processo de uniformização cultural de que, às vezes, tanta gente sente falta, eu inclusive.

Mas importância histórica o nazismo também teve. A Bizz trazia também o que São Paulo tinha de pior: um colonialismo cultural abjeto, uma ignorância profunda acerca do que está além de seus horizontes e que, não por coincidência, é talvez a característica definidora da “crítica de rock”, de Christgau a Lester Bangs. E a canalhice pura e simples, descarada, sem vergonha. E a inconsistência, a falta de um padrão estético claro e honesto, uma glorificação da subjetividade quase absoluta. Um exemplo são dois comentários, separados por alguns anos, que José Emílio Rondeau fez sobre dois discos de McCartney:

Talvez fosse disto que o velho Macca precisava para neutralizar a dormência criativa que o vinha atacando: cabeças diferentes, opiniões externas. Pete Townsend, Phil Collins, Carlos Alomar (guitarrista de Bowie), Eric Stewart (ex-10cc) e zilhões de artistas de primeiro escalão deram sua contribuição ao melhor disco de Paul desde… quando, mesmo? Com Eric Stewart repartindo a parceria em 60% das músicas e Hugh Padgham polindo uma produção ultra-moderna, Paul ressuscitou. Durará? (José Emílio Rondeau, Bizz 16, novembro de 1986, sobre o Press to Play, considerado por muitos o seu pior álbum)

Sete anos depois…

“O Paul McCartney quer virar Gipsy Kings”, disparou um adolescente fã de grunge, depois de ouvir pela primeira vez “Hope of Delivery”, uma das faixas “politizadas” do novo álbum do velho Macca. Talvez o menos ruim do últimos discos lançados por Paul em dez anos, Off the Ground é uma tentativa do ex-Beatle (êta, sombra difícir) de recuperar sua credibilidade artística/musical. Mas o máximo que consegue é ser apenas suportável ou parecido com alguém. Maybe next time… (José Emílio Rondeau, Bizz 93, abril de 1993)

Talvez um exemplo do que ela tinha de melhor e pior seja a seção a que o Marcus se referiu, a Porão, que em toda edição trazia duas bandas gringas e duas brasileiras ainda desconhecidas.

Na verdade, as gringas só eram desconhecidas porque não tínhamos acesso ao que se fazia lá fora. Mas até aí tudo bem, era esse o papel da revista em tempos de Telex. Da grande maioria das brasileiras, no entanto, nunca mais ouviríamos falar — porque aí era o negócio dos amigos, as canalhices a que me referi no texto original.

Eu fui um leitor assíduo da Bizz, já partir do número 1. É uma revista que ajuda a definir os meus anos 80. A última edição que comprei foi a de julho de 1989, quando ela mudou sua logomarca pela primeira vez: trazia Prince na capa e uma entrevista razoável com Paul McCartney. Mas eu já tinha deixado de comprá-la regularmente desde o ano anterior. A Bizz inicialmente me interessava porque me falava de coisas que eu não tinha ouvido, e nisso ela foi um guia cuja importância eu não posso esquecer; mas no fim dos anos 80 eu já tinha ouvido a música que ela cultuava, e não gostava dela.

A partir daí não sei mais nada sobre a revista. O documentário mencionado acima dá um resumo razoável sobre sua trajetória: a revista mudou de nome para Showbizz, decaiu, decaiu mais, deixou de ser publicada, voltou com o nome original. À medida que o rock ia perdendo espaço para outros gêneros, aparentemente ela se dirigia a um nicho cada vez menor e mais desinteressante, ignorando o resto da música que se fazia no mundo lá fora. Enquanto a Bizz olhava para porões em Manchester o país gestava uma revolução. Em Recife o mangue bit tomava forma, o tecnobrega se consolidava em Belém, e durante toda a sua existência a revista ignorou a evolução constante da música baiana, apenas para dar exemplos que conheço razoavelmente.

A internet jogaria a pá de cal sobre a Bizz, escancarando o seu papel de mero mensageiro para a colônia. Mas agora ninguém mais precisava de uma intermediária, a revista não tinha por que continuar existindo.

A geração formada pela Bizz parece trazer, ainda hoje, essas características. Você vai encontrar por aí muitos roqueiros decadentes lamentando o fim do ciclo roqueiro no país; dizendo que quando o sertanejo tomou conta das paradas no início dos anos 90 era resultado da crise estética da era Collor, ou então que o crescimento e enriquecimento da classe C jogou o padrão estético do brasileiro na latrina — como se aquelas bombas dos anos 80 fossem melhores. Mas se alguém olhar com um tico de atenção as paradas musicais dos anos 80, verá — especificamente nas paradas paulistas — a ascensão lenta e constante desse novo sertanejo, modernizado, maleável às influências musicais de seu tempo como qualquer outra. Enquanto o rock se esgotava em seu universo da classe média urbana, o sertanejo crescia oferecendo respostas musicais e líricas a um universo muito maior de brasileiros.

Disso eu sempre soube. Mas acho que faltava reconhecer que tudo isso, ao menos em parte, foi influenciado pela Bizz. Hoje ela pode ser lida neste site, que eu de vez em quando frequento quando bate alguma onda de saudosismo. Depois de velho, passei a gostar da revista de novo.

Sobre Deus e ateus

Tenho fama de ateu porque nunca consegui acreditar em um deus tão pequeno que fez essa desgraça de humanidade à sua imagem e semelhança mas não fez direito, um deus mesquinho que não se dá ao respeito e se incomoda se grãos de areia como eu — ou assim ele quer que eu me considere — mandam-no ralar o cu na ostra, que é o que Ele mereceria se existisse.

Isso sempre me deixou com um problema, que é explicar coisas que não posso explicar, a matéria e o universo. Sempre fui muito velho para dar murro em ponta de faca ou achar que seria possível saber o que havia antes do Big Bang, e então fico com a ideia de que tem algo nessa bodega que não sei o que é e nunca vou saber, mas que não interfere em absolutamente nada na minha vida e nem na de ninguém, e certamente não vai me fazer acertar na loteria esportiva.

Esse incômodo, na verdade, nunca me tirou o sono. Deus nunca fez parte da minha vida. Não vim de família religiosa, nunca fizeram pressão para que eu acreditasse ou deixasse de acreditar em qualquer coisa. A gente sempre andou para Deus e Ele para nós. Estivemos todos bem, assim.

E no entanto sou fascinado pela trajetória do cristianismo. Debates essencialmente filosóficos ou doutrinários me dão um pouco de sono, mas sempre tive uma curiosidade muito grande sobre como o cristianismo se tornou o que é, como moldou o mundo em que vivo. Independente daquilo em que acredito ou não, eu sou um produto do mundo cristão. Valores sociais em que acredito devem muito à noção cristã da caridade e à crença (ou vã esperança) na bondade intrínseca do Homem.

Adoro as mentiras descaradas do Novo Testamento, por exemplo. Gosto de tentar entender a maneira como aquele conjunto de estórias mirabolantes foi se solidificando ao longo de umas poucas décadas em uma narrativa com algum grau de coesão. Gosto de ver o esforço malabarista das posturas doutrinárias do cristianismo antes e depois de Constantino, Teodósio e Justiniano. Quase posso tolerar a destruição cultural do mundo greco-romano ou as liquidações de hereges patrocinadas pelos cristãos, porque do ponto de vista histórico isso é antes de tudo um fenômeno curioso: como se deu o processo que levou uma religião com um discurso calcado na ideia de altruísmo e de bondade a se consolidar, em muito pouco tempo, como uma das forças mais deletérias e mais cheias de ódio da história da humanidade? E quais os instrumentos utilizados para isso?

Gosto, quase tanto, de tentar entender os malabarismos intelectuais dos primeiros cristãos, que precisaram criar uma nova ideia de messias para que ela se adequasse ao discurso judaico anterior, numa tentativa de legitimar o seu maluco de estimação. Há algo de desesperado nisso, também um bocado de má-fé; mas é também o reflexo, ainda que distorcido e pervertido, de uma vontade de fazer o que entendiam por bem aos outros que é quase louvável. Fanatismo tem dessas coisas.

Gosto de ver o respeito crescente às religiões de matriz africana como aspecto de uma afirmação étnica e social, e é lindíssima a cosmogonia do candomblé, tanto quanto a grega antiga; mas me irrita o discurso hipócrita do candomblé e da umbanda, de mansidão intrínseca à religião, porque me lembra o sujeito que depois de um atentado fundamentalista insiste que a Bíblia ou o Alcorão são livros de amor; sou baiano e sempre soube que pai de santo bom pra desgraçar os outros, matar a mulher do seu amante, eram os de Cachoeira; e vi despachos de amantes inconformadas em esquinas demais para cair nessa conversa safada. No fim das contas, não consigo esquecer que é uma religião em que seus sacerdotes estão liberados para tentar destruir outras pessoas. E por valorizar a preguiça como um grande valor humanístico, não entendo por que alguém em sã consciência se oferece a tantas obrigações sem sentido real, por que abre mão voluntariamente de sua liberdade para isso e aquilo em nome de contos de fadas.

Confesso que tenho apenas uma pinimba e um medo.

A pinimba é com o kardecismo. Porque não dá para respeitar uma religião surgida em pleno século XIX, o século dos trens e das máquinas, de Balzac e de Marx, e que se tenta dar ares quase científicos. Porque todas as outras grandes religiões têm a desculpa de serem basicamente superstições e mistificações pré-históricas, nascidas em um tempo em que macacos em acelerado processo de evolução precisavam de alguma explicação para o raio que caía na cabeça do vizinho e de uma providência para que ele não caísse na sua.

O kardecismo é mais uma das tantas religiões que, assim como toda a cultura ocidental, deriva do judaísmo e do cristianismo. Como todas as outras, para funcionar precisa jogar nas costas de alguém a culpa por toda a miséria humana. A ideia de um deus consciente e cheio de desígnios que se dá ao desfrute de elaborar um sistema complexo e imbecil de reencarnações e expiações, por si só, é tão absurda que é incrível que as pessoas a levem a sério; esse no mínimo é um deus sádico, que coloca gente no mundo para sofrer quando não havia necessidade nenhuma, se o incompetente fizesse decentemente o seu trabalho e criasse direito seu boneco de barro. Mas o kardecismo se esmera na justificação dessa crueldade. Por exemplo, imagine uma criança que nasce com paralisia cerebral gravíssima. Ela não vai aprender nada em toda a sua existência. No entanto, kardecistas fazem malabarismos interessantes para justificar essa aberração teológica. Uns dizem que a criança nasceu assim para pagar pecados — quando, obviamente, ao não poder aprender nada ela não pode evoluir. Outros dizem que ela nasceu assim para “ensinar” os pais. Tá, e a criança que se dane sem controlar seu próprio esfíncter.

Para piorar, como o número de almas neste vale de lágrimas não para de crescer, a gente entende que Deus fez o homem, não fez direito, não corrigiu a própria merda e mesmo assim continua fazendo mais. É um imbecil.

E tem ainda o racismo inerente ao kardecismo. De vez em quando lembram por aí de um texto de Kardec onde ele diz que “os negros serão sempre os mesmos; como Espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior”. E ao menos cá no Brasil, essa é uma religião eminentemente branca, em que é nítido o desprezo à sua prima preta, a umbanda.

Mais que isso, a sua tentativa de criar um sistema aparentemente sofisticado, influenciado pelo positivismo, é provavelmente a mais malsucedida de todas. Cristãos, macumbeiros, muçulmanos ao menos têm a sabedoria de não se aprofundar muito e jogar o bagulho nas costas de Deus antes que tudo fique confuso demais. Kardecistas, no entanto, se dedicam a malabarismos pseudorracionais impressionantes. Uma vez perguntei a uma delas se cachorros tinham alma. Ela me respondeu que tinham uma “alma coletiva”, seja lá o que isso for. Eu não quis me aprofundar no assunto porque fiquei com medo, e ninguém pode me recriminar por isso.

Provavelmente é por tudo isso que uma das melhores frases que li nos últimos anos é essa: “Chico Xavier era um sujeito que falava sozinho e ainda anotava o recado”. Isso resume o espiritismo para mim e mais não é necessário falar.

Acima de tudo, o que irrita em todas as religiões é o discurso canalha que diz “a religião é boa, ruins são alguns religiosos”. Não. Toda religião é ruim; elas existem para negar a realidade, para justificar o injustificável, para eximir o homem do mal que há no mundo e lhe oferecer uma saída imaginária. Existem para dar legitimidade ao que há de humano nas pessoas, e propósito a um tipo específico de inconformado. Existem como muleta para explicar o que ainda não foi explicado, e acaba se tornando, sempre, um instrumento de obscurantismo. Toda religião é ruim.

E mesmo assim, durante muito tempo a militância ateia me incomodou. Sou um grande fã de Richard Dawkins, por exemplo, especialmente de “O Gene Egoísta”; mas outros livros seus sempre me pareceram desnecessários. Proselitismo ateu costumava ser tão incômodo para mim quando o proselitismo religioso. Ainda mais, até, porque a princípio um ateu está um degrau acima na escola de pensamento de quem ainda acredita num deus preocupado se você dá o rabo; se ele chega à conclusão da inexistência de um deus todo-poderoso, ou da impossibilidade de crença a partir do raciocínio lógico, é porque pelo menos se deu ao trabalho de pensar, algo que não posso dizer de quem acredita em Adão e Eva.

Mas o ateísmo pode ser também uma quase desistência do pensamento, e de certa forma quase tão arrogante e falso quanto os religiosos, porque não apenas não se consegue provar a existência ou inexistência de Deus, mas porque a recusa em admitir a possibilidade de se estar errado é estúpida. Para muita gente, ela parece justamente o contrário porque é comparada à religião, que encontra na vontade inescrutável de Deus uma explicação confortável para a topada que arrancou metade da sua unha. É, de forma um tanto diferente, o mesmo reflexo humano, demasiado humano de necessidades que não têm nada de divino.

Nos últimos tempos, entretanto, isso deixou de ser tão incômodo. À medida que a militância religiosa vem justificando guerras e perseguições em todo o mundo, mas principalmente num momento em que políticos evangélicos vêm consolidando sua influência política e se espalhando como metástase no tecido social; à medida que pessoas cuja noção de conhecimento é paradoxalmente baseada na ignorância passaram a definir os rumos do país; à medida que, como os primeiros cristãos, evangélicos tentam impor de maneira cada vez mais violenta sua visão obtusa e cruel de mundo aos outros, a religião passou a ser uma inimiga. As pessoas podem acreditar no que quiserem — eu continuo acreditando no Grande Deus do Pleno Xibiu da minha adolescência, por exemplo, porque ainda não descobri coisa melhor —, mas quando se organizam politicamente para tornar essa crença dominante e cercear os direitos dos outros, elas se tornam algo a ser combatido e, se possível, destruído.

A história do processo civilizatório é a história da superação da religião. Quando negaram a natureza divina da realeza, quando negaram o direito de fazer churrasquinho de bruxas, quando disseram que Estado e superstição não deviam caminhar juntos — foi nesses momentos que a humanidade deu um passo à frente e tornou o mundo um pouco mais justo e igual.

Daí que no mundo surreal em que dou a sorte de viver, em que uma religião retrógrada e perigosa cresce assustadoramente, a sensação de que a militância ateia era tão estúpida quanto os fanáticos do “gloriadeus” desapareceu.

O ateísmo nunca fez nenhum mal à humanidade, algo que não pode ser dito de nenhuma religião monoteísta. Na verdade, por ser falta de crença, retira da pauta a imbecilidade religiosa. E nos tempos atuais, em que uma onda de obscurantismo religioso vem patrocinando uma constante regressão intelectual e cognitiva para a humanidade, ele se torna quase um exemplo de resistência à progressiva metástase no tecido social patrocinada por religiosos.

E aqui está o meu medo. A cada dia, me apavora o crescimento das religiões protestantes no país. E não falo das neo-pentescostais em que malandros apopléticos tiram dinheiro de imbecis que, para mim, merecem ser tosquiados porque ninguém tem o direito de ser tão cretino. Hoje, o pensamento evangélico e sua ação política são a maior ameaça à democracia e ao avanço do país.

Percebi isso quando vi a maneira como a gíria religiosa se imiscuiu na sociedade brasileira. Expressões como glóriadeus, tá amarrado, ô glória, é pra glorificar de pé se espalharam pelo tecido social e são um exemplo sociológico claro da expansão e capilarização do pensamento evangélico. É assim que as metástases ocorrem. Em sua luta para fazer do Brasil uma narcoteocracia, as igrejas evangélicas são um câncer que não para de crescer e a principal razão pela qual meu otimismo em relação ao futuro deste Brasil velho de meu Deus é hoje muito pequeno.

Deus pode até existir, mas se alguém tem alguma esperança na humanidade, é melhor fingir que não.

Livros, livros à mancheia

Um texto de Umberto Eco andou circulando internet afora esses dias:

É tolice pensar que você precisa ler todos os livros que compra, assim como é tolice criticar aqueles que compram mais livros do que jamais serão capazes de ler. Seria como dizer que você deveria usar todos os talheres, copos, chaves de fenda ou brocas que comprou antes de comprar novos.

Há coisas na vida das quais precisamos sempre ter muito, mesmo que vamos usar apenas uma pequena porção.

Se, por exemplo, considerarmos os livros como remédio, entendemos que é bom ter muitos em casa em vez de poucos: quando você quer se sentir melhor, você vai até o “armário dos remédios” e escolhe um livro. Não um aleatório, mas o livro certo para aquele momento. É por isso que você sempre deveria poder escolher entre várias escolhas.

Aqueles que compram apenas um livro, leem apenas aquele e depois se livram dele. Eles simplesmente aplicam a mentalidade de consumo aos livros, ou seja, consideram-nos um produto de consumo, uma mercadoria. Aqueles que amam os livros sabem que um livro é tudo, menos uma mercadoria.

Eco é o sujeito que entendeu que a internet deu voz aos imbecis, constatação reafirmada a cada nova dancinha de Tik Tok, a cada comentário analfabeto. Depois de ler esse texto, posso dizer que também permitiu a pessoas brilhantes como ele dizerem sem pejo algumas bobagens de vez em quando.

Claro que num mundo onde a mera posse de livros significa o ingresso instantâneo e não questionado numa certa elite intelectual,ou na impressão dela, um bocado de gente elogiou esse texto, e o compartilhou. Todo mudo ama livros, eu só não entendo por que as tiragens nacionais são tão pequenas.

Há alguns anos eu provavelmente seria um deles. Porque ainda gosto dos danados, me acostumei a eles, tenho um número razoável de exemplares e gosto de saber que eles estão lá. Tenho, inclusive, a vaidade de eventualmente mostrá-los, e já coloquei uma das paredes como foto de capa no Facebook, e de vez em quando coloco no Instagram os que se empilham já sem esperança em minha cabeceira. Em minha defesa posso argumentar que isso é só uma consequência, que eu gosto mesmo do objeto, gosto do papel, do cheiro de tinta, do cheiro do livro novo e do cheiro do livro velho, da sensação de virar a página, de recolocá-lo na prateleira e olhar para ele com orgulho — mas, para mim, nada disso supera a sensação de terminar de ler um livro brilhante, e é isso que, infelizmente, me diferencia de Eco.

Ele acusa as pessoas que leem um livro e então se livram deles de considerarem-no uma mercadoria, apenas. Isso é loucura elitista. É o contrário, na verdade.

Livros existem para transmitir conhecimento. A ideia de livros válidos apenas por sua posse, o fato de olhar a estante e se sentir bem por isso é que é vê-lo como mercadoria, porque não diz respeito ao seu valor real, e sim ao que ele representa, ao valor que o objeto adquiriu numa soceidade que fala mais do que lê. Mas seu valor real se mede depois que você decodifica aquelas letras mortas impressas em suas páginas. Na sua estante, eles só servem para mostrar aos outros que você tem ao menos um verniz de cultura, e que aparentemente reconhece o valor intrínseco daqueles objetos enfileirados. É aquela deturpação capitalista que faz uma primeira edição de um bom livro valer milhões a mais que um fac-símile.

Servem para dar trabalho, também.

Só ama de verdade esses objetos infernais quem tem poucos. Uma biblioteca não só acumula poeira, fuligem e, se você mora perto do mar, salitre que um dia você tem que limpar. Eles também se tornam invariavelmente a morada do Diabo. Guimarães Rosa não sabia de nada. Não é nos detalhes que o Diabo mora, é nas estantes — ou pelo menos é nelas que se maloca um saci escroto que impede que as estantes que você arrumou hoje, depois de dias maltratando suas costas, fiquem arrumadas por nem mesmo uma semana. Eu sou um cético, não acredito que livros tenham vontade e movimento próprios. Mas eu os vejo aparecendo do nada, e se multiplicando em outros lugares como gremlins endemoniados o tempo todo, o tempo todo.

Se você tem algum juízo, uma hora você se pergunta se isso vale a pena.

Como eu disse antes, já pensei assim, já tive esse orgulho. Os amigos de minha filha, quando vão lá em casa, sempre olham impressionados as paredes cheias de livros, porque bibliotecas já não são tão comuns assim, pelo menos fora do ambiente acadêmico, e mesmo nele. A mim não é tanto o volume que orgulha, mas sim sua variedade, o fato de ter sido construída aos poucos ao longo de algumas décadas, refletindo interesses bem diversos, de história a culinária, de vela a literatura húngara. Mas de uns anos para cá mesmo esse orgulho se desmilinguiu em tédio. Deve ser a velhice. E, talvez, a compreensão das bobagens que fiz na vida.

Quando a Amazon surgiu, ou melhor, quando finalmente tive dinheiro para comprar livros na Amazon, eu comprava dezenas de uma vez para economizar no frete.

É a pior coisa que se pode fazer, e me arrependo hoje de ter feito isso, tantas vezes. Essa é quase uma sentença de morte: você condena a maioria deles a não serem lidos nunca, porque antes de terminar o quinto ou sexto você já está comprando mais cinco, mais dez, e a leitura se transforma em uma espécie de derby de demolição, um atropelando o outro, exigindo primazia na leitura, gritando palavrões humilhantes para você, incompetente que não dá conta de tudo aquilo.

Para piorar, qualquer pessoa honesta sabe que existem quatro tipos de livros em suas estantes. Os que você já leu e não pretende reler; os que você leu e sabe que vai reler; os que você ainda não leu mas pretende ler; e, finalmente, aqueles que você não leu e a essa altura entendeu derrotado que não vai ler nunca, porque o tempo é cada vez mais escasso, é o trabalho gritando seu nome, a garrafa verde de cerveja flertando com você, a moça sussurrando passando a língua em sua orelha. O primeiro e o último tipo de livros são realmente desnecessários. Você os mantém por vaidade. É quase como ter mulher para usar ou para exibir: só broxas e enrustidos fazem isso, e Vinícius já avisava que você vai ver um dia em que toca você foi bulir.

Então, não, não tem como concordar com o nome da rosa. Nego diz isso é pra aparecer.

Saudades daquelas moças d’antanho

Isso foi há mais de cinco anos:

Agora fiquei curioso para saber como é que são esses romances hoje. As pessoas parecem continuar precisando de amor e de sonhos, mas já não parece fazer sentido dividir as linhas em com e sem sacanagem. Mulheres virginais parecem alucinações do passado e a inocência parece pertencer a outros tempos. As moças de Júlia, Sabrina e Bianca ruborizavam; as de hoje mandam nudes pelo WhatsApp? Essas dúvidas, neste instante, me intrigam. Acho que vou na banca e perguntar ao jornaleiro: “Por favor, o senhor tem uma daquelas Júlias, Sabrinas ou Bianca bem românticas?”

Eu fiz isso logo depois. Infelizmente, na banca onde fui não havia desses livrinhos, havia mangás e revistinhas de super-heróis, uma infinidade deles. Então esqueci, que cá entre nós qualquer um tem coisas melhores para fazer com seu tempo do que ler “Júlia”, “Sabrina” ou “Bianca”.

Mas ontem fui comprar uma Tex e na mesma prateleira estavam uns três desses livrinhos. Não são mais Júlias, nem Biancas, nem mesmo são da velha, boa e finada Editora Abril.

O que comprei, de uma senhora chamada Lori Foster, se chama “Uma Amante Maravilhosa”, tradução mais apelativa para Treat Her Right. E é publicado pela Harlequin Books. Pelo visto cortaram os intermediários e agora os livros vêm direto da fonte.

A tradução do título já dá uma ideia das mudanças que esses 40 anos trouxeram. Mas não revela nem parte do que há de tenebroso nesses livros.

Agora como então, nomes são importantes. Essas moças se tremem inteiras de desejo por um Zack, Josh, Mick. Fiquei pensando que ninguém escreve romances para moças protagonizados por Genílson ou Vandson, mas vou creditar isso aos 23 anos que se passaram desde sua publicação original e à minha ignorância quanto a esse universo. Não é possível que nos dias de hoje não tenham feito um livro em que o objeto romântico da mocinha seja um pedreiro chamado Roberaldo, alto, forte, magnético, musculoso. Porque é justo esperar que em tempos identitários haja um pouco mais de diversidade.

O estilo é um pouco melhor do que o dos livrinhos antigos; ao menos nesse não há mais aqueles tantos pontos de exclamação. Mas a escritora é ruim, ruim de doer. Nesse ofício havia, deve haver ainda, artesãs competentes; não é o caso de Lori, que aliás tem nome de puta. Para piorar, a coitada ainda é sacaneada pela tradutora, de uma incompetência atroz. Tenho quase certeza de que ela apenas colocou o texto original no Google e corrigiu alguns poucos erros. Além de alguns erros crassos, ela me faz lembrar que o que realmente importa em um tradutor não é tanto o conhecimento da língua a ser traduzida, mas o domínio da língua para a qual se traduz. Por exemplo, ela se refere algumas vezes a beemotes. O problema é que behemoth é expressão comum na gringa, com sua tradição de leitura do Velho Testamento, mas virtualmente desconhecida aqui. Além disso, aqui e ali o protagonista fala: “Danação!”. Tento imaginar que espécie torpe de mulher consegue encharcar suas calcinhas por um homem que fala “Danação!”. Tento, mas não insisto muito porque pode ser que eu consiga. E eu não suportaria trauma tão grande.

O livro é de 2001, publicado aqui em 2014. De lá para cá decorreu quase um quarto de século, e esse espaço de tempo não viu tantas mudanças sociais, a serem refletidas nas páginas escritas por dona Lori. A emancipação sexual feminina é fenômeno bem antigo, já era naqueles anos 80; apenas não tinha chegado às páginas desses romances em um país que ainda tentava sair de uma ditadura e do fim da Censura Federal. E saliência já se fazia nas “Momentos Íntimos”.

Mas há uma diferença brutal:.agora talvez não dê mais para chamar esses livrinhos de “romances”, no sentido menor da palavra.

Porque aqui e agora o valor acariciado pelos personagens não é mais o amor, como era naqueles tempos em que se amarrava cachorro com linguiça e ainda se namorava no portão. Amor um caralho, eu quero é rosetar. O livro já começa com o nosso herói de pau duro — ou assim se imagina, já que ele é despertado no meio de um sonho erótico. Dali até o final tudo parece se resumir à vontade de todo mundo comer todo mundo, ou algo parecido.

É impressionante: os protagonistas do livro atual só pensam em putaria, o tempo todo. Ele olha para ela, sacanagem. Ela olha para ele, safadeza. O pudor que caracterizava os livrinhos dos anos 70 e 80, a ideia do desejo como uma construção psicológica um tiquinho mais complexa, tudo isso desapareceu completamente; e o mundo virou uma grande suruba, e diante disso me sinto um velho conservador e espantado.

Nem tudo são espinhos, no entanto. Dá para ver refletidas, mesmo em um livro tão ruim — ou, mais provavelmente, justamente por ele ser ruim —, algumas boas mudanças na sociedade. Mulheres, pelo visto, são mais plenas, ou ao menos têm como padrão um nível de plenitude e igualdade que não se via antes. Expressões como “galinha”, tão comuns 40, mesmo 30 anos atrás, não parecem mais fazer sentido. Isso é bom.

Mas algumas coisas não mudam, e um desses tabus monolíticos chega a ser curioso.

Algo que os livros dos anos 80 e este têm em comum é que as mulheres não fazem sexo ora, nem lá, nem cá. Elas não botam nada na boca. Tudo bem, é fácil entender a razão quando se pensa em feministas numa passeata dos anos 70 carregando faixas dizendo que “sexo é poder”. Mas estes são os anos 2020, e as moças de verdade postam sugestões do arco da velha em seus tiktoks e instagrams, e as alusões a bocas cheias são mais comuns que foto amorosa com o cônjuge que corneiam em segredo.

À primeira vista, isso parece ser um simples descompasso entre o livro e o seu tempo. Na verdade, é ainda pior. Muito pior.

Numa das cenas mais bizarras deste, ao receber sexo oral do homem que faz suas carnes tremerem, coisa que nunca tinham feito nela, nossa protagonista diz que isso parece pervertido.

Poxa. As moças dos livrinhos dos anos 80 eram virgens e defendiam com unhas e dentes sua honra, mas quando chegava a hora da putaria elas certamente não tinham essas frescuras. Há algum problema muito grave na psique desse mundo anglo-saxão, ou pelo menos na cabeça dessa mulher que escreve essas coisas e das leitoras que compram seus livros, e isso certamente me assusta mais que as mocinhas puras e puerilmente fortes que povoavam os livrinhos de antigamente.

Resta apenas procurar aqui algo que represente ao menos um rosto conhecido, uma ideia mais longeva. E então vem uma pequena surpresa. No fim das contas, essencialmente nada mudou. Independentes ou não, as heroínas deste livro ainda querem um homem forte, protetor, que seja um bom pai, e que na hora do aimeudeus continue tomando as rédeas e mandando na bodega. Talvez seja uma exigência do gênero, porque o único conflito dramático que posso enxergar entre uma moça moderna e um “macho desconstruído” é a possibilidade dele se apaixonar pelo namorado dela. O que sei é que os livrinhos d’outrora, no fim das contas, me parecem melhores. Talvez porque havia uma ingenuidade perdida, uma negação da realidade cotidiana, um resto de pudor. Posso estar sendo injusto e julgando todo um tempo de um gênero a partir de um livro só, mas desconfio que não. Ou talvez eu tenha ficado velho demais, e desconfio que sim. Não sei. O que importa é que, de repente, deu saudade das minhas amigas Júlia, Sabrina e Bianca.

Lembranças da Bahia

Dia desses encontrei um blog em que lembravam da Salvador dos anos 80, com uma lista que enumerava lembranças e fatos e que circulou por email há uns 20 anos.

Eu não ligo para essa Salvador. É a do axé, do trabalho, da mudança das lâmpadas brancas de vapor de mercúrio para as vermelhas de vapor de sódio. A Salvador de que eu gosto é a dos anos 70, aquela que apenas entrevi, quando a Barra era uma espécie de pequeno paraíso na terra e a vida era mais doce, como um vento de fim de tarde fazendo cafuné em no seu cabelo na rede. Há outro blog dedicado a esse tempo, bem mais interessante.

Esse eu também não vivi, porque não tinha idade; mas foi nesse clima, nesse modo de ver o mundo, que fui criado e virei gente.

Eu lembro do Parquinho, na TV Itapuã/Tupi, apresentado pela Tia Arilma, que depois iria apresentar o Recreio nas tardes da TV Aratu/Globo (e garantiria a maior audiência no horário para a Globo em todo o Brasil). Era uma coisa bisonha que eu detestava, uma espécie de show de calouros em que crianças esquisitas e sem respeito próprio iam dublar músicas de sucesso, dançar porcamente as danças burlescas da época com a desculpa canalha da inocência infantil, e se submeter ao ridículo da plateia. Foi lá que Mara Maravilha começou — na época ainda “Miss Mara”, provavelmente inspirada em uma cantora da época, Miss Lene, que hoje deve cantar forró em algum lugar do Ceará ou casou com um gringo qualquer e se foi do Brasil dando-lhe merecida banana. Havia também outra cantora mirim, uma menina chamada Geisa, que chegou a lançar um compacto nacional e apareceu no Fantástico em 1982. Geisa saiu na frente rumo ao sucesso, mas Mara se revelou mais permanente, pelo menos até aceitar Jesus e virar mais uma maluca que fica arranjando nigrinhagem por aí — e mesmo nisso ela é baiana da gema.

Parquinho bom, mesmo, era o parquinho de seu Roque, que ficava no Campo Grande e depois se mudou para o Tororó; depois, quem se mudou fui eu. Não sei, na verdade, se ele era o dono ou apenas o gerente; mas era seu Roque que nos deixava andar um pouco mais nos brinquedos, como o autopista e o carrossel, e ninguém pode ser mais dono do que isso, não para mim.

Turistas que hoje vão até a Ribeira se deslumbrar com sorvetes de frutas ou tapioca não conhecem o verdadeiro sabor de um sorvete: a melhor sorveteria da cidade era a Primavera, com loja no Relógio de São Pedro (havia também uma na Joana Angélica, que eu não conhecia ainda) e uma kombi que, ao menos nos fins de semana, batia ponto no Campo Grande, em frente ao Hotel da Bahia; era também no Campo Grande que íamos à Nubar, originalmente destinada aos ingleses e que naquela época recebia damas chiques para o chá das cinco, mas também a nós. Hoje, imagino que o fato de sermos todos lourinhos ajudava.

Uma das entradas do Clube Baiano de Tênis, na 8 de Dezembro, ficava perto de minha casa; eu e Jailton entrávamos ali dizendo que íamos chamar um primo meu. E quando vinha passar férias em Aracaju eu aproveitava para dizer que aqui eles tinham o Clube Sergipano de Conga.

Assisti à “Bela Adormecida” da Disney no cine Astor — que depois de anos exibindo apenas filmes pornográficos, provavelmente em vídeo, fechou definitivamente há algum tempo — e a Superman II no Liceu — que fechou e pegou fogo, ou pegou fogo e fechou, não sei direito. Mas os meus cinemas, mesmo, eram o Tamoio, o Bahia e, principalmente, o Guarani.

Fui ao cinema sozinho pela primeira vez assistir a um filme de Terence Hill e Bud Spencer chamado “Nós Jogamos com os Hipopótamos” em 1980, no cine Guarani, que menos de um ano depois viraria Glauber Rocha; peguei um ônibus no fim de linha da Graça, que na época ficava na rua Catarina Paraguaçu, ao lado do então Campo da Graça, palco de grandes glórias do Bahia mas que já se preparava para dar origem a dois edifícios, Wimbledon e Forest Hills, e desci na praça Castro Alves; naquele dia de dezembro descobri que podia viver nos cinemas nos sábados à tarde.

Muita gente que estranha uma criança de 9 anos indo sozinha a um cinema me justifica pensando que talvez aquela fosse uma Salvador diferente, em que andar sozinho pela cidade não era uma sentença de morte assinada e reconhecida em cartório. Eles estão errados. Não era a cidade, que Salvador nunca foi flor que se cheirasse. Nós é que éramos diferentes.

Lembro quando a discoteca Maria Phumaça, na Barra, pegou fogo; eu passava em frente a ela todo dia, voltando do colégio. Ela me parecia lindíssima, com seu trenzinho na frente. Queria crescer para poder entrar ali, mas ela não me esperou. Quenga.

Havia pelo menos duas lojas da Brink Bem, uma na 8 de Dezembro e outra na esquina da Marques de Leão com a Miguel Burnier. Eu frequentava as duas.

Mas há poucas lembranças como a do jingle de abertura da TV Aratu:

Bom dia, bom dia, Bahia do meu coração
Que tenhas um dia tranquilo assim
Com a graça de Deus e o Senhor do Bonfim
Canal 4 está chegando em seu lar
TV Aratu está no ar
Bom dia, bom dia, Bahia.

E o final clássico:

TV Aratu, canal 4
Salvador, meu amor, Bahia

Eram tempos diferentes, porque a TV Aratu, na época retransmissora da Globo, saía do ar no início da madrugada. E quanto voltava, primeiro era com um color bar; depois vinha o jingle, e finalmente uma lista da programação daquele dia. E no entanto a sua programação era melhor que a da Globo do Rio, porque já nos anos 70 ela tinha o Corujão da Madrugada, e exibia três ou quatro filmes seguidos, sem intervalos comerciais, nas madrugadas do sábado para o domingo. Durante décadas achei que aquilo era uma exclusividade de Salvador. Mas São Paulo tinha uma sessão semelhante, chamada Comando da Madrugada.

Havia iguanas nas árvores da Piedade, e lembro exatamente da primeira vez que os vi porque entrei em pânico — para a diversão dos lambe-lambes que funcionavam ali, bando de filhos da puta que não entendem o que é ter 6 anos e se imaginar na selva sem o Tarzan para te proteger. Me disseram que elas ainda estão lá, mas deve ser mentira, deve ser safadeza de baiano tentando engrupir turista, porque eu não vejo mais.

Eu achava que os Harlem Globetrotters eram brasileiros porque se apresentaram no Balbininho, que não existe mais. Eu não sabia que os negões do Harlem jamais dariam nem para a saída na Liberdade.

Fui ao aniversário de 25 anos da Publivendas no Teatro Maria Bethânia. Hoje a Publivendas se chama Morya e o teatro se tornou primeiro um restaurante, depois um bingo e hoje é um hospital ou coisa parecida. No palco havia uma mesa enorme com frios, comidas e comidas e comidas, e enquanto as pessoas confraternizavam e falavam mal uns dos outros eu comia. É a lembrança mais antiga que tenho de casquinha de siri, mas naquela época eu preferia lagosta, e era ela que eu atacava; continuo preferindo, a propósito.

Assisti à chegada da TV Bandeirantes na Bahia e a única coisa interessante nela, o programa de Daniel Azulay, me cansou muito rápido.

Estudei no ISBA, o que era mais que adequado: quem nasceu de frente para a praia tinha que estudar de frente para a praia. E quando morava na Barra, nos períodos em que não ia no ônibus da escola ou que meu tio Romário — que, bom vagabundo, estudou no Pio X, em uma casa da Euclides da Cunha que não existe mais há muito tempo— ia me pegar, eu vinha para casa nos ônibus da Vibemsa, que não eram verdes ainda nem tinham desaparecido para dar lugar a três empresas diferentes; eram ônibus com motor traseiro e eu gostava de ir em pé, ao lado do motorista, olhando o caminho. Acho que aprendi com eles o tempo da marcha, e talvez seja por isso que, tantos anos mais tarde, eu me divertia trocando marchas sem precisar pisar na embreagem.

E no período em que morei em Itapuã, nada pode superar a volta para casa, os mais de 20 quilômetros ao longo da praia, vendo a lua nascer enorme e afogueada no mar, ouvindo “Bandolins” ou “Beleza Pura”.

Mas lembrar tanto do ISBA, que foi demolido dia desses para dar lugar a mais um prédio estúpido, é uma injustiça com o Pequenópolis onde estudei depois, porque foi no Pequenópolis que peguei num peitinho pela primeira vez, e isso é inesquecível quando se tem 10 anos; foi um acidente, mas ali eu senti o gosto do sangue. Essas coisas, como se sabe, viciam que é uma coisa.

Olha, o tempo em que eu era baiano é que era bom.

Paulo Francis: fim de temporada

Andei passando os olhos pelo acervo do Pasquim na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, muito superficialmente. Li algumas matérias clássicas, como a %#&! entrevista com a Leila Diniz e o artigo “Um Homem Chamado Porcaria” com que Paulo Francis agraciou seu futuro patrão, Roberto Marinho, ofendendo-o com o que o seu vocabulário parecia ter de pior: “negro!”

E aí fiquei pensando no Francis, morto há quase três décadas mas que ainda hoje inspira meliantes medíocres de direita, embora em menor grau do que há 20 anos, por exemplo. O pessoal que se reunia em torno dos Wunderblogs — há quanto tempo você não lê esse nome, hein? — e quetais tinha veneração por ele, e mesmo hoje há quem o respeite mais do que devia.

Já escrevi sobre ele aqui. O post é de quase 20 anos atrás. E depois de tanto tempo, é engraçado ver o quanto o panorama mudou. Quase tudo o que servia de referência então desapareceu ou se transformou quase além do reconhecível. Ainda assim, mudei de opinião em alguns detalhes, mas o básico continua válido.

O que me importa, no entanto, são justamente os detalhes.

Francis se sustentava em uma época em que jornalistas podiam falar quase todas as asneiras que quisessem sem serem punidos pelo público. Sem internet, era fácil escrever o que se queria porque dificilmente alguém checaria a informação. No que ele escrevia, sempre houve uma série de exemplos de erros crassos, mesmo de vigarice — quando, por exemplo, ele apresenta como sua uma conclusão de Edmund Wilson sobre o materialismo dialético.

Eu certamente superestimava sua “solidez cultural”. Há uma entrevista do Francis ao Roda Viva disponível no YouTube. São impressionantes as posições rasteiras dele a respeito de tantas coisas. Para ele, naquele momento, todos os problemas do Brasil se restringiam à presença do Estado na economia — mais ou menos como o gado bolsominion, aquele que pede ajuda a ETs e reza para pneus de caminhão, fala da corrupção como se fosse algo palpável, isolado e possível de ser erradicado por um ladrão de joias medíocre e vulgar. Francis citava números falsos a rodo, porque como todo bom embusteiro sabia que sempre podia contar com a ignorância do resto da humanidade. E o elitismo descarado e afetado, principalmente em relação a tudo o que cheirasse a popular, ainda era aceito nos anos 90.

Isso lembra que Paulo Francis se tornou um ícone pelo que escrevia, com talento, vivacidade, brilho. Era muito fácil engolir como verdade e fato as bobagens que ele contava errado ou plagiava, porque ele sabia como contar. Isso não lhe tira o mérito de possuir uma cultura variada, abrangente, algo cada vez mais raro nesses tempos em que as pessoas são formadas nos bancos estreitos das universidades e restringem e sufocam cedo demais suas curiosidades; mas ridiculariza aqueles que vêm nele algo próximo a um pensador.

Paulo Francis permaneceu tanto tempo porque fez parte de um momento importante para a geração que chegou ao terceiro milênio em sua maturidade.

Na segunda metade dos anos 80 havia uma geração de jornalistas culturais que fez história e ditava o que se devia gostar ou não, num tempo em que a distinção entre intelectuais e jornalistas não era tão grande como hoje. Era uma turma boa: Sérgio Augusto, Ruy Castro, Paulo Francis, uns tantos outros — o Ruy Castro, por exemplo, chegaria à Academia Brasileira de Letras, numa eleição certamente mais merecida que a de sicofantas como Merval Pereira.

Era gente formada nos anos 50, sob a influência do processo de americanização do país a partir das indústrias cinematográficas e musicais, com uma pequena ajuda do USAID. Ao chegar à maturidade, se tornou uma geração que gosto de definir como novaiorquina putativa. No pós-guerra, os Estados Unidos haviam se tornado o grande motor da cultura mundial, em um modelo novo e dinâmico que a unia ao mercado de massas. E essa geração se formou sob essa influência. Ruy Castro até hoje sonha com musicais da Browadway; Francis, especialmente, depois que migrou para a metrópole se especializou em contar para os botocudos cá do hemisfério meridional o que acontecia na Big Apple, do low ao highbrow.

O parágrafo acima não tem nenhuma intenção de ser derrogatório. Em boa parte, essa geração desempenhou um papel fundamental, atuando como tradutora dessa intelectualidade específica, arejando o ambiente e trazendo os seus padrões para o Brasil, enriquecendo o nosso mundo. Por exemplo, Ruy Castro traduziu e selecionou contos de Dorothy Parker num livro que, se não me engano, tinha prefácio do Sérgio Augusto — que por sua vez selecionou os contos de “O Mundo das Maçãs”, de John Cheever. Conhecer o cinema e a literaturas americanos permitiu a Sérgio Augusto escrever o indispensável “Este Mundo é um Pandeiro”.

Mas todo esse pessoal envelheceu — e virtualmente todo envelhecimento traz consigo algum nível de inadequação ao novo mundo. Mais importante, o panorama cultural mudou muito — por um lado ficou mais diverso, o que é bom, e por outro mais medíocre, o que é ruim. A minha desconfiança é que Paulo Francis enveredaria pelo pior desses caminhos. Se estivesse vivo, sou capaz de apostar que ele seria pior que gente como Augusto Nunes e outros sabujos do reacionarismo, porque sempre foi maior que eles.

Reconheço, claro, que meu pessimismo não é infalível e que existem outras possibilidades. Além de uma cultura geral que ainda hoje se sustenta, de um início de vida como diretor e crítico de teatro, e de um mínimo de formação política, Francis se dava a liberdade de pensar. É uma esperança à qual aqueles que gostavam dele podem tentar se agarrar, por tênue que seja. Além disso, ao seu conservadorismo ele sempre foi capaz de adicionar uma camada agradável de verniz cultural, talento verdadeiro e mordacidade; talvez, então, conseguisse se livrar da sina triste de chegar a um fim melancólico de vida espalhando fake news no WhatsApp e apresentando algum programa na JovemPan.

Mas não leve muita fé nisso. O mundo seria bem mais cruel com ele hoje.

Aliás, provavelmente já está sendo. Olha a tal entrevista ao Roda Viva. Por ser vídeo, é bem possível que essa entrevista venha a se tornar a primeira referência a Francis nos anos que virão. Sempre que alguém for pesquisar sobre o nome, se é que alguém vai fazer isso, vai preferir essa entrevista aos livros que ficaram. O mundo é assim, é cada vez mais raso, mesmo. E é injusto, porque ele era maior do que aquilo.

Let it Be, de novo e finalmente

A Apple Corps. anunciou o relançamento do filme Let it Be — o original, lançado há 54 anos —, agora restaurado, remasterizado, essas “res” todas que viabilizam as arapucas para fãs em que a empresa se especializou nas últimas décadas.

A princípio não entendi direito: lançá-lo depois do excelente Get Back, de 2021, parece um anticlímax, quase um contrassenso.

Assisto de vez em quando a esse filme há mais de 40 anos. No dia 14 de dezembro de 1980, o domingo seguinte ao assassinato de John Lennon, a TV Aratu exibiu Let it Be. Era um dia nublado, abafado, depressivo. Havia visitas lá em casa e as pessoas comentavam tristes sobre o assassinato bárbaro daquele tal John Lennon, que eu nunca tinha visto mais gordo. Lembro de assistir a pedaços do filme e considerá-lo uma das coisas mais chatas que eu já tinha visto, pior que “Concertos Para a Juventude” e corrida de Fórmula 1, perfeito para completar aquele domingo trancado em casa.

Seis anos depois as coisas tinham mudado. Eu era um beatlemaníaco que agarrava com sofreguidão cada chance de ver algo novo sobre os Beatles — naqueles tempos, novidades sobre a banda eram algo suficientemente raro para transformar em um acontecimento cada nova informação, cada nova música desencavada de um disco pirata. Apareceu uma cópia em VHS, mais gasta que as frases decoradas que McCartney diz entre uma e outra canção de seus shows, e claro que eu tinha que ver.

Hoje parece haver uma lavagem cerebral coletiva, propiciada pelas redes sociais, que transforma fãs em lemingues siderados a considerar obras-primas qualquer lixo lançado sob a marca Beatles, das caixas remasterizadas de aniversário, cheias de sobras de estúdio sem nenhum interesse artístico ou musical, a mediocridades lancinantes e vergonhosas como Now and Then. Nas redes sociais, o que não falta é gente sem-noção e sem estética se dispondo a chorar antecipadamente pelo filme que já nasceu defunto. A canção morreu, diz Chico Buarque há muito tempo, e essas são suas carpideiras, chorando por vício e costume, apenas.

Meus cachorros têm mais dignidade.

Talvez por serem outros os tempos, para mim o filme tinha exatamente quatro momentos razoáveis: a versão mais longa de Dig It, a versão rock de Two of Us, a jam onde cantam Shake, Rattle and Roll, e obviamente o show no telhado. O resto era chato, continuava chato como quando eu era ainda criança. Não entender inglês não contribuía muito para gostar do filme, claro, mas a verdade é que os diálogos melhoram muito pouco a situação.

Let it Be era só um filme ruim. Muito melhor assistir a This is Spinal Tap. Ou mesmo Rockshow.

Ao longo dos anos seguintes assisti ao filme inúmeras vezes. Minha opinião nunca mudou. Em algum momento percebi que ele podia ser visto como uma história de redenção pela música: o começo difícil em Twickenham, a melhora dos ânimos no estúdio da Apple em Saville Row, finalmente o congraçamento do show no telhado. Sempre disse que a percepção do filme seria completamente diferente, não tivessem os Beatles se separado oficialmente um mês antes de seu lançamento.

Também disse que o filme é ruim, malfeito, uma tarefa muito acima da experiência e provavelmente do talento do diretor Michael Lindsay-Hogg — e a maior prova disso é que Let it Be, em sua mediocridade, em sua incompetência, é a única obra pela qual Lindsay-Hogg será lembrado. Era ululantemente óbvio ser possível fazer algo melhor com o material existente.

Com Get Back, Peter Jackson provou que era. E fez pior: lançou luz sobre o papel deletério de Lindsay-Hogg na epopeia de erros que foram a ideia e a execução do Let it Be.

É por isso que soa estranho o seu lançamento agora. Let it Be já estava restaurado há muito tempo, e algumas cenas puderam ser vistas já no Anthology. A restauração agora lançada deve ser outra, com melhores recursos, algo similar ao filme de Peter Jackson. De lá para cá a longa e sinuosa estrada se estendeu muito além do que se podia imaginar, e é por isso que, à primeira vista, parece não fazer sentido o seu lançamento agora, quando ele poderia ter sido parte do grande pacote que incluiu o Get Back e a edição de aniversário do Let it Be em 2021: “Tá aqui um grande documentário, e junto vai essa desgraça para vocês verem a bagaceira que fizeram antes”.

Mas é estranho só à primeira vista. A lógica da Apple é a do caça-níquel, do camelô. Por que lançar tudo junto se vale mais a pena lançar cada parte em separado? Além disso, o Get Back pode ter ajudado a amenizar o efeito depressivo que Let it Be sempre exerce nos seus espectadores, mudando a perspectiva com que se olha para o filme original. Agora podemos olhar para a obra de Lindsay-Hogg como um técnico de laboratório olha para um exame de fezes.

Que o cheiro do parágrafo acima, porém, não seja levado tão a sério. A irritação deste post não é com o filme, que é apenas chato e medíocre e merecia ser obliterado da história em favor do Get Back, como o compacto duplo Magical Mystery Tour original foi substituído pelo álbum americano. O incômodo é com a vulgarização progressiva e agora aparentemente incontrolável de uma obra estelar como a dos Beatles, e com a estupidez crescente do público consumidor. Um fã dos Beatles que ainda não tenha visto o Let it Be é, certamente, um fã novo que não achou que valesse realmente a pena o esforço de busca para assistir ao filme. Pra ele, o lançamento pode significar alguma coisa. Infelizmente, só para ele.