A banca da esquina

As pessoas lamentam tanto o fim das livrarias e dos sebos, e quando um deles fecha sai notícia em jornal e as pessoas choram o fim de uma era, essas coisas que caem bem no seu perfil do Facebook porque lhe fazem parecer mais lido do que você é.

Mas ninguém chora quando fecha uma banca de revistas.

E elas estão fechando. Uma a uma, bancas que estiveram na mesma calçada por duas, três gerações amanhecem fechadas, para nunca mais serem abertas, em ritmo muito mais acelerado que as livrarias.

As bancas de revista são, de longe, as maiores vítimas da internet. São vítimas indiretas, porque a internet mira os jornais e revistas impressos, e durante muitas décadas esses foram a própria razão de ser das bancas. O livro impresso vai continuar, não importam quantos Kindles inventem. Mas revistas e jornais, às vezes inúteis no dia seguinte, encaram um fim inexorável e apenas se perguntam quando virá o dia em que a última prensa rodará a última edição.

Não posso falar quanto aos outros, mas eu certamente comprei muito mais revistas do que livros ao longo da minha vida. Cheguei a ter conta nas duas bancas de um sujeito chamado Florêncio, contas que eu tentava honrar britanicamente por não terem nada de oficial, nenhuma promissória, nenhum recibo; eram contas feitas no fio do bigode, e sempre achei que minha palavra valia mais que minha assinatura. Quando quebrei pela primeira vez, aí pelos 19 anos, a sua foi a primeira conta atrasada que paguei quando voltei a colocar as mãos em algum dinheiro — parco, mas dinheiro ainda assim.

Por isso acho um esquecimento injusto, quase canalha, quando vejo pessoas carpindo o choro fácil diante das mortes das livrarias, mas esquecendo das bancas. Elas fazem parte da minha vida como as livrarias; mas eram mais comuns, mais diversas e mais presentes, e se o conhecimento que se adquire numa livraria é mais sólido, o das bancas é mais variado, mais urgente, mais palatável. Não foram poucas as vezes, nem têm sido, em que deixei de lado um Proust para acompanhar as aventuras do Batman ou um artigo na New Yorker.

Houve um tempo em que além dos diários sergipanos as bancas vendiam os principais jornais do sudeste — hoje, o único jornal de fora que ainda circula por aqui é o A Tarde de Salvador, ele mesmo uma sombra pálida do que era há 30 anos. Lembro de ter comprado, em seus últimos dias, o Última Hora, o Notícias Populares e outros jornais que já se foram, como a Tribuna da Imprensa, o Jornal da Tarde e a Gazeta Mercantil. Mas comprava, principalmente, a Folha de S. Paulo e o Jornal do Brasil, e o Estadão quando passou a circular também às segundas-feiras com a coluna do Paulo Francis.

Os jornais que vinham de avião chegavam às bancas a partir das quatro da tarde, mais ou menos. O Zero Hora, que era vendido apenas na banca do Moacir e na do Careca, velho comunista, chegava apenas no dia seguinte, o que reforçava a minha teoria de que o Rio Grande do Sul não ficava no Brasil. O JB, especificamente, era leitura obrigatória no fim de semana, por causa dos cadernos Livros e Idéias — e um sinal grave de que esse tempo é cada vez mais distante é que eu não consigo mais lembrar qual circulava no sábado e qual circulava no domingo. Um pouco mais tarde, os primeiros tempos do Mais! da Folha de S. Paulo representaram os últimos suspiros de razoabilidade e acessibilidade no jornalismo cultural tapuia.

Olhando para trás, parece haver algo de estranho em comprar um jornal no fim da tarde. Àquela época já não existiam vespertinos, a televisão já tinha acabado com eles. Mas eles eram tão melhores que os jornais locais — a Gazeta de Sergipe onde meu pai tinha sido preso em 64 e o Jornal de Sergipe e o Jornal da Manhã, os três já extintos, e o Jornal da Cidade —, e o tempo da informação era tão diferente, que ler o jornal à noite valia a pena, sempre.

Mas eram as revistas que faziam valer a pena ir com frequência a uma banca de revista, quando menos para checar o que havia saído nos últimos dias. A Veja, a IstoÉ, a Senhor (e a IstoÉ/Senhor), a Playboy, as tantas e tantas e tantas revistas em quadrinhos que comprei ao longo da vida, primeiro Disney, depois Marvel e DC, e ao menos um exemplar de virtualmente toda revista interessante que foi publicada com regularidade naquelas décadas; uma banca de revistas era a promessa de um mundo diferente.

Foi numa banca, não numa livraria, que um jornaleiro mais compassivo diante das dificuldades enfrentadas por dois adolescentes ensinou a mim e a Rone como abrir o plástico das Mini-Fiestas e depois fechá-las, queimando o plástico com um isqueiro, multiplicando o número de revistas que podiam ser lidas e aprendendo indecências inesquecíveis. Para quem descobriu assim esses truques, é ainda mais espantoso que hoje pornografia não seja mais algo de que se vá atrás sub-repticiamente, mas sim algo de que se precise proteger em tempos de internet, uma eterna ameaça de virii e trojans que parecem se materializar em cada pop up.

Tantos títulos que sumiram no tempo. Revistas como a Somtrês, Manchete, Be-a-Bá da Eletrônica, Bizz, Set, os quadrinhos Disney, os álbuns de figurinhas que iam além da Copa do Mundo; tantas editoras, também, como a Ebal e a Vecchi. E mesmo tantos livros comprados em bancas, mais baratos num tempo em que não havia Amazon.

O fim de quase todos os títulos e editoras que citei não tiveram nada a ver com o fim das bancas; mas isso não importa mais. O que acontece hoje é algo muito mais grave, mais dolorido, e é isso que mais se deve lamentar. O que mudou foi mais que o meio. A informação condensada em um único espaço, que tornava mais fácil a formação do pensamento, deu lugar à fragmentação total e irremediável, aos bits espalhados por todos os quadrantes. É um mundo mais vasto, mas ao mesmo tempo mais ignorante, mais cansado, enfastiado de informação. Talvez eu esteja velho; mas cada vez mais prefiro o mundo mais fácil e mais simples que tive a sorte de deixar para trás.

Nas bancas, em outros tempos, chegávamos a comprar enciclopédias: lembro da Novo Conhecer, da Biblioteca do Estudante, finalmente da Informática Hoje. Ou dos fascículos que tentavam me ensinar a tocar violão, Toque e Acorde. Era nas bancas também que comprávamos cigarros, primeiro “a retalho”, varejo, e depois maços inteiros que aos poucos duravam cada vez menos. Hoje poucas são as bancas que ainda vendem cigarros. Cigarros, como revistas, estão desaparecendo.

É incômodo ver bancas que em seu auge traziam uma diversidade imensa de produtos encolherem e desaparecerem. A banca que ficava no Largo da Barra, por exemplo, cujo dono, Renato, era a cara do Emerson Fittipaldi e que nos anos 80 vendia jornais estrangeiros, trocava dólares para os turistas e tinha até o luxo de um telefone. Ou do Moacir, quase em frente ao Cine Aracaju, também com sua cota imensa de jornais de todo o país e revistas de fora. Mas morreu o Cine Aracaju e morreu Moacir, e a banca do Renato, já uma sombra esmaecida do que fora por décadas, desapareceu durante a última reforma do largo. Assim como elas, tantas outras bancas definham, já sumiram — e ninguém parece ter chorado por elas. Dois anos atrás, tomei um choque de ver que a banca da rodoviária de Salvador, amiga velha de muitos anos, tinha fechado. Ninguém parecia ligar. Na verdade, ela fechou porque ninguém ligava.

Uma das bancas mais antigas de Aracaju, ao lado de um hipermercado, ainda tenta resistir. Vende jornais e revistas, também. Mas tenta desesperadamente diversificar sua atuação, se transformando também em uma espécie de armarinho, de venda de quinquilharias. A dona da banca entendeu que o seu tempo passou. Quem não entende sou eu.