Mamães Evangélicas

Preocupações as há de todo o tipo, foi o que descobri quando me deparei com um site chamado Baby Center.

Dentro do site há um fórum destinado às “Mamães Evangélicas”. Não o li inteiro, não sei exatamente quais as diferenças entre uma mãe evangélica e uma macumbeira, porque minha ignorância a respeito dos códigos maternos de cada religião é avassaladora e irremediável. Sempre achei que mãe é mãe em qualquer tempo e lugar, mas em tempos de lugar de fala e de apropriação cultural deve haver mães e mães. Elas, pelo menos, acham que há diferenças suficientes para justificar essa seção.

Foi às Mamães Evangélicas que a PamAlex, cinco anos atrás, recorreu para resolver uma grande dúvida.

SEXO ANAL
Meninas, estou de 34 semanas e não consigo fazer vaginal, pois incomoda, meu marido pede pra fazer anal, ele é super atencioso e carinhoso, eu tenho muita vontade de fazer (rsrsrs) mas tenho receios, gostaria de saber como foi a experiência de vocês na primeira vez. obrigada!

Esses evangélicos, sei não. Você vê lá o sujeito saindo do culto com seu terninho, bibliazinha com zíper debaixo do braço, glória a Deus e aleluia irmão a três por quatro, e o imagina moço pio e recatado com sua mulher de cabelos longos presos e suas saias beirando o tornozelo.

Você vê, mas você não sabe que o diabo queima sua carne como queima a dos ímpios, e antes mesmo de transpor o umbral da porta da igreja ele já está pensando “hoje o bundão da PamAlex não me escapa”.

E assim, em meio a essa discussão titânica, a PamAlex recorreu ao melhor que pôde: à experiência de outras mamães evangélicas.

A primeira resposta foi dúbia, da Michele291:

Creio que sexo anal não foi criado por Deus e então não o agrada. Não estou aqui para julgar ninguém e tb quero aprender com todas, caso alguém tem olguma coisa pra falar estou pronta para ouvir.

Imagine a profundidade da discussão teológica que se pode ter a partir daí. Sexo anal foi ou não foi criado por Deus? E a espanhola, foi? Deus criou o ânus apenas para excretar? E por que aquela confusão de orifícios aos seu lado? Se Deus não criou, isso quer dizer que está liberado ou não? — porque alguém pode dizer que outras coisas não foram criadas por Deus, como o computador em que ela escreveu isso, e utilizá-los não é pecado.

Não conheço nenhum filósofo evangélico. Tenho certeza de que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, confrontados com esse dilema, também teriam problemas para responder. Mas a sabedoria não é privilégio de cristãos do tempo do onça. Michele291, por exemplo, sabe que as coisas não são, nunca, em preto e branco. “Também quero aprender”, ela disse, porque Jesus falou que nunca deves dizer “dessa água não beberei”, e se não falou deveria ter falado.

O que eu sei é que a Michele291 está morrendo de vontade. Um ímpio qualquer daria os parabéns a ela pela sua abertura — de pensamento, claro. Enquanto isso, Juanbi responde de um jeito que a faz parecer colunista de revista feminina:

Tudo depende muito do cuidado, carinho, respeito e amor.  …pode sim, ser muito prazeiroso.

Juanbi, tenho quase certeza, é (ou era, não sei se essas revistas ainda existem) leitora de Carinho, Capricho e de João Bidu. Juanbi, óbvio, é também adepta da prática. “Cuidado, carinho, respeito e amor” é como ela chama aquele momento em que, alucinada, olhinhos revirados e tudo, dedos crispados no lençol e dentes segurando firmemente a fronha do travesseiro, ela diz para o marido chamar o dito de pastel e enchê-lo de carne.

Juuh2001, por sua vez, se empolgou e levou a coisa mais adiante. Há um je ne sais quoi na velha e boa putaria que faz as pessoas se empolgarem quando o assunto vem à baila e, dependendo do que beberam, as faz subir na mesa e cair na dancinha da garrafa, quebrando até o chão. Óbvio, uma mamãe evangélica jamais faria algo semelhante, mas isso não a impede de se soltar, um pouquinho só que seja. A conversa era sobre sexo anal, mas Juuh2001 estava tão empolgada com suas aventuras de alcova que se antecipou e lá foi para o sexo oral, que não estava em pauta mas, ora bolas, ela queria falar para alguém:

Sexo Anal é sodomismo: Gays fazem sexo assim, sexo oral e uma preliminar,pelo menos pra mim, mas acho que se o casal não se sente bem, e acha que é pecado, nao deve fazer.

A Juuh2001 bota a culpa dessa sem-vergonhice nos gays, claro, que inventaram essas safadezas. Essas coisas de dar o rabo só pode ser viadagem. Coisa desses “sodomistas”, como ela diz. Mas acontece que a Juuh2001 parece gostar de falar com a boca cheia, e algum pudor ela ainda tem, e portanto levanta a ressalva: se você acha que não ofende a Deus, vai fundo — ou deixa o seu marido ir, dá no mesmo.

(Aqui, no entanto, devo abdicar da minha postura de mero registrador de efemeridades e ralhar com a senhora Juuh2001, e reclamar da sua hipocrisia. Eu sei que pornografia é o erótico dos outros, mas onde foi que Jeová Deus especificou em quais outros buracos senhoras podem enfiar aquele troço?)

No fim das contas, depois de ouvir e ponderar as opiniões, os conceitos e preconceitos, a delícias e dores experimentadas pelas irmãs em Cristo, PamAlex se decidiu. Pelas datas de seus posts, não demorou muito tempo — e o velho cínico em mim desconfia que ela sequer esperou as respostas.

Obrigado meninas!
eu acabei cedendo e no começo doeu mas depois fui gostando. agradeço a cada uma que expressou a sua opinião, abraços.

Ah, mas um tema desses gera polêmica, e a conversa continua; porque mais pessoas têm a mesma dúvida, porque mais pessoas querem cagar regras, e porque mais pessoas querem dizer “eu dou e eu gosto!”

O caso triste da meumilagrerosa é um desses:

Boa noite meninas já percebi que este e um tema polêmico. Aqui em casa também gera desconforto ainda mais que eu sirvo a Deus e  eu marido não. Oro sempre pedindo para Deus entrar na mente e no coração do meu esposo. Mas e difícil, e em muitos casos como o meu o que o marido não tem em casa ele procura na rua. Gostaria de ouvir opiniões.

Enquanto ela pede a Deus para entrar na mente e no coração do esposo, o esposo não espera e entra com tudo nela. Entra também na Maria, na Tereza, na Conceição — o marido, nesse caso, é um ímpio safado mulherengo, e meumilagrerosa tem razão em estar desgostosa com a vida. Mas sabe como é: além de estar preocupado com a bunda dos outros, Deus também manda a mulher obedecer. Sem querer ser um estraga-prazeres, algo me diz que não tem bunda que faça o marido da meumilagrerosa se aquietar, mas a fé dessa moça é invejável: um dia Deus ainda vai ouvir as suas preces e seu marido vai se conformar com o que tem em casa.

evangelicacasada, por sua vez, chegou tarde à discussão mas está desesperada para compartilhar experiências. MãmaDaLê2013, no que parece ser um ataque de voyeurismo, pede para ela contar a sua, talvez uma versão Mamãe Evangélica de “mostre o seu que eu mostro o meu”. Mas evangelicacasada some, talvez envergonhada, talvez desconfiada de que se falasse mais alguma coisa Deus jogaria sobre sua casa uma chuva de fogo e enxofre e ela viraria uma estátua de sal, como a mulher de Ló.

A conversa não para aí. A maior parte das mulheres, mais inclinadas a dar o dízimo do que a dar a bunda, recrimina a prática, diz que é pecado. Graziam1, indignada, reclama que está “faltando é intimidade com Deus, isso sim” — talvez fosse o caso de dizer a ela que, provavelmente, se Deus tivesse uma bundinha tão bonitinha quanto a da PamAlex ou da Juanbi e um remelexo gostosinho o que não faltaria era intimidade.

No fim das contas, é a postura equilibrada e sensata da Pri_NA1 que fica, e encerra a conversa:

Irmãzinha, faz o seguinte: orem sobre isso. Se vocês dois – ou, pelo menos, o seu marido (I Cor. 7:4) – não se sentirem acusados sobre isso, é confirmação de que, para Deus, isso não é pecado para vocês.

E se depois de decidirem que não é pecado você forem parar no inferno, tudo bem. O importante é que, por alguns breves momentos, o céu se abriu e vocês foram felizes. Amém.

Os 10 melhores filmes de super-heróis

Assisti a Shazam e a Captain Marvel dia desses, dois filmes horrorosos que apenas sinalizam o esgotamento de um gênero que andou fazendo muito sucesso nos últimos 20 anos. Mas isso não quer dizer que não tenha havido grandes momentos ao longo desse tempo. Ainda mais para alguém que aos 10 anos deixou de ter como prioridade as revistinhas Disney e caiu no mundo dos super-heróis. Gente como eu.

O primeiro pelo qual me apaixonei foi, entre todos, o Capitão América. Eu já os conhecia, claro. Além dos “desenhos desanimados” que a Tupi exibia nos anos 70, aqui e ali comprei uma ou outra revista do Homem-Aranha quando era criança. Mas foi com o Capitão que as revistinhas de super-heróis passaram a ser as minhas preferidas.

Era o início dos anos 80 e a Abril, que tinha conseguido os direitos de publicação dos personagens de segunda linha da Marvel, estava fazendo um bom trabalho com o personagem. Não só pelo cuidado editorial que a Ebal, a Bloch e a RGE nunca tiveram, mas também porque tomou a decisão correta de começar pela melhor fase do Capitão, do começo dos anos 70 (descobri décadas depois que boa parte das histórias já tinha sido publicada no Brasil). Escrita por Steve Englehart e desenhada por Sal Buscema, apresentava um herói torturado, deslocado em seu tempo. Essa fase representava uma transição do modelo de Stan Lee, àquela altura já em franco processo de esgotamento e repetição das mesmas estruturas ad nauseam, para histórias um pouco menos pueris e esquemáticas.

Pouco depois, passei a comprar algumas revistas do Homem-Aranha, então publicado pela RGE — por exemplo, a edição com a morte de Gwen Stacy e os almanaques, que se não me engano publicavam as tirinhas de jornal. Eram escritas principalmente por Stan Lee e desenhadas por John Romita. Mas só quando a Abril finalmente conseguiu os direitos de todos os personagens da Marvel, em 83 ou 84, é que comecei a comprar regularmente as revistas mensais. Era uma fase estranha, em que o pobre Aranha andava de um lado para o outro feito barata tonta. Desenhada pelo Ross Andru, era essencialmente uma longa ressaca pós-morte de Gwen Stacy.

As historinhas chatas do Aranha, a decadência do Capitão América depois da morte de Sharon Carter e, provavelmente, o fato de eu passar a ter outros interesses na vida me fizeram deixar de comprar essas revistas.

E então veio “O Cavaleiro das Trevas”.

Hoje é lugar comum dizer que a série de Frank Miller que reconstruiu o Batman deu origem a uma nova era nos quadrinhos de heróis. Mas eu estava lá, e se não sabia de sua influência futura, percebia em primeira mão a sua qualidade absurda. A partir daí o Batman — que na minha infância era apenas o personagem ridículo da série de TV — se transformou no meu preferido. Não era por menos: uma a uma, grandes histórias se seguiam: “Ano Um”, “A Piada Mortal”, “Messias”, “Morte em Família”, o deslumbre visual do “Asilo Arkham”. Mais ou menos nessa época o Aranha renasceu nas mãos de Todd McFarlane. E a Abril passou a republicar, numa revista chamada “A Teia do Aranha”, as histórias dos anos 60, início dos 70 do amigão da vizinhança.

Mas os tempos passaram e eu deixei, mais uma vez, de comprar essas revistas. E o responsável por isso foi o Superman.

“A Morte do Superman” foi uma grande ideia, mas foi também uma das coisas mais deletérias que poderiam acontecer para os quadrinhos, pelo menos do ponto de vista de gente como eu, junto com as destruições do mundo a cada 15 dias nas histórias do X-Men — grupo que jamais me interessou, nem mesmo quando desenhado pelo John Byrne.

Em parte porque passaram a mirar um público mais adulto, as histórias se tornaram cada vez mais confusas, e ao mesmo tempo mais repetitivas. Paradoxalmente, eram complexas em excesso e banais demais. Há algo de profundamente chato nas constantes trocas de alter-egos, nas mortes a três por quatro seguidas de ressurreições que agora são quase mandatórias. A morte de Jason Todd, por exemplo, foi um dos grandes momentos dos quadrinhos; sua ressurreição não foi só desnecessária, foi idiota.

Deixei de ler super-heróis há muitos anos. Mas de vez em quando passeio pelas edições digitais antigas do Batman desenhado por Jerry Robinson, Frank Robbins e Sheldon Moldoff, do Aranha de Ditko e Romita e o Capitão América anticomunista dos anos 50. Eu ainda gosto deles. São simplórios, talvez, e muitas vezes pueris. Mas eu gosto. Freud explica, mas eu não estou interessado na explicação.

Todo esse nariz de cera é apenas para dizer que não aguento mais filmes de super-heróis.

É engraçado que, enquanto as revistas em quadrinhos ficaram chatas, no cinema os super-heróis viviam um renascimento. No começo deste século, o “Homem-Aranha” de Sam Raimi me deslumbrou. A evolução da computação gráfica tinha possibilitado transformar em imagens aquilo que só podíamos imaginar, e uma parcela importante da cultura pop finalmente tinha finalmente a chance de se realizar dignamente no cinema. Daí em diante, filmes de super-heróis viraram um segmento fundamental da indústria cinematográfica americana. Tem gente que chega a dizer que se tornaram o “amálgama da civilização moderna” ou algo do tipo, provavelmente porque ninguém pode ser punido por falar idiotices.

Mas eles se esgotaram. Cada vez mais, um filme de super-herói é a repetição da fórmula do filme anterior com um personagem diferente. Quando um filme como “Pantera Negra” é indicado ao Oscar, é mais ou menos como investimento na Bolsa: quando você fica sabendo de uma oportunidade é porque dali em diante aquela ação só vai cair.

Acho que parte do problema está na ênfase nos efeitos especiais, nas sequências cada vez mais mirabolantes de ação e na exigência de que o produto final fique dentro do padrão definido para esse tipo de filme, uma mistura de ação e humor semi-infantil.

O roteiro — ou melhor, a construção dos personagens — parece dizer cada vez menos. A revolução protagonizada por Stan Lee dizia respeito nem tanto aos heróis, mas aos seus alter-egos. Nunca foi o Homem-Aranha: era Peter Parker. Mas isso é menos importante em um filme, até pelas limitações de tempo. O resultado é que os personagens são menos ricos (Tony Stark, um personagem ressuscitado maravilhosamente pelo cinema, não acabou se transformando em pouco mais que uma caricatura?), as identidades civis dos personagens são cada vez menos importantes (o Capitão América tem vida privada?). Um filme de super-herói é basicamente correria, tiro, porrada e bomba, e um esforço sobre-humano em efeitos especiais cada vez mais próximos da perfeição.

Mas há um problema em tudo isso. Se a gente parar para pensar, quadrinhos são bem menos gráficos do que parecem. Sua mecânica faz com que a maior parte da ação seja essencialmente intuída pelo leitor. Um quadrinho apenas lhe dá um indicativo do que acontece, como uma fotografia; os detalhes dos movimentos, os sons, tudo isso acontece apenas na sua cabeça. É o leitor quem acaba de criar esses movimentos, no final das contas. Assim como cria as vozes de cada personagem, por exemplo.

Os filmes eliminam essa participação do espectador. Ele não tem que criar nada. Tem apenas que receber extáticos esse bombardeio sensorial, de preferência sem pensar.

Talvez por isso esses filmes me interessem cada vez menos. Passo batido por alguns (“Esquadrão Suicida”, por exemplo, vi apenas por que estava disponível em um voo), e outros vejo para esquecer logo em seguida. Eu simplesmente não consigo lembrar do último filme do Homem-Aranha, e nem faço questão. Filmes de super-heróis se transformaram no equivalente destes anos aos de Steven Seagal: você sabe exatamente o que vai receber antes mesmo de entrar no cinema. Em alguns casos a decadência é mais que óbvia: basta ver que a cada novo reboot o Homem-Aranha vem sendo humilhado.

Mesmo assim, eu com minha mania de listas resolvi fazer a minha de melhores filmes de super-herói, uma daquelas listas idiossincráticas que volta e meia aparecem por aqui. Alguns filmes poderiam estar na lista, mas têm defeitos que acho graves demais. O Batman de Tim Burton, por exemplo: filme importantíssimo na história da construção da viabilidade do gênero, mas que traz um Coringa totalmente equivocado e um total desrespeito à origem do personagem.

Porque para entrar nessa minha lista boba um filme tem que respeitar as origens quadrinísticas do personagem. Ao mesmo tempo, tem que trazer algo novo. A lista está em ordem cronológica. Obviamente, não assisti ainda ao último dos Vingadores, porque ainda não ganharam as redes e eu não vou mais ao cinema. O penúltimo, no entanto, não me disse muita coisa, além do fato de parecer ser apenas um prólogo para esse filme. Tampouco assisti ao último do Homem-Aranha. Mas esse não tem como ser bom, desde que resolveram violentar o pobre Parker e transformá-lo em pupilo de Tony Stark. Esse não é o meu mundo.

Superman I e II (1978/1980)
40 anos se passaram e Superman I e II continuam insuperáveis. Feito sem os efeitos especiais atuais, mas com um grande cuidado no roteiro, o resultado é um filme novo, equilibrado. Cenas de um lirismo hoje impensável, como o passeio de Superman e Lois Lane no céu, quase inimagináveis hoje, mostraram que o cinema podia enriquecer os quadrinhos com possibilidades que o papel lhes negava. Ele é contado aqui como um filme apenas porque foi gravado praticamente inteiro de uma só vez, por Richard Donner. Richard Lester, creditado como diretor do II, apenas terminou o segundo filme — e destruiria a franquia em Superman III. Em 2006, Superman Returns tentaria retomar o universo criado aqui; o resultado foi um filme que, embora eu goste muito, não foi bem aceito pela maioria das pessoas. Depois vieram os filmes com Henry Cavill, abaixo de qualquer crítica. Sabe Deus o que o destino reserva para o Homem de Aço.

Corpo Fechado (2000)
Embora sem uniformes, e com superpoderes disfarçados, o filme de M. Night Shyamalan é um grande filme de origem de super-herói. Bem feito, brincando adequadamente com as estruturas do gênero, e dispensando efeitos especiais mirabolantes, Unbreakable vai à essência do que é ser super-herói. Dentro desses limites, é um filme brilhante.

Homem-Aranha 2 (2004)
Embora o primeiro filme do Homem-Aranha dirigido pelo Sam Raimi tenha sido o grande responsável pela nova era de filmes de super-heróis, o que faz dele um marco inegável, é em “Homem-Aranha 2” que a série atinge a quase perfeição: os únicos defeitos do filme, como a presença extemporânea de uma Mary Jane interpretada pela atriz errada, são herdados do filme original. O resto são atores adequados e um dos vilões mais ricos desse universo, o Dr. Octopus de Alfred Molina.

O Cavaleiro das Trevas (2008)
Batman Begins foi aclamado como um grande filme, mas era medíocre — sua sorte é que era necessariamente comparado aos filmes anteriores de Tim Burton e Joel Schumacher, que transitavam entre o ruim, o ridículo e o escabroso. Christopher Nolan finalmente conseguiu dar aqui a densidade necessária ao personagem, ajudado pelo melhor super-vilão de todos os tempos: o Coringa de Heath Ledger atualizou e levou o Palhaço do Crime a desvãos assustadores. (Eu falei minhas bobagens aqui sobre Batman Begins e sobre O Cavaleiro das Trevas.)

Homem de Ferro (2008)
Uma coisa que as pessoas deveriam ter em mente é que filmes de super-herói funcionam melhor quando o personagem é relativamente desconhecido, tipo segunda linha, porque isso possibilita mais liberdade na reconstrução do personagem para uma nova mídia. Neste caso, o Homem de Ferro ganhou uma abordagem mais rica do personagem ao mesmo tempo em que teve sua origem respeitada. Além disso, sua armadura era mais fácil de transplantar para o cinema sem violentar os quadrinhos. O resultado é um clássico do gênero.

Vingadores (2012)
A fórmula se consolidou definitivamente aqui: muita ação, umas pitadas de humor para temperar a coisa, muitos efeitos especiais e uma batalha final apoteótica. É um filme redondo, bem feito, e que nortearia virtualmente todos os filmes de super-herói feitos depois.

Capitão América: Soldado Invernal (2014)
Com a fórmula consolidada, basta um bom roteiro para fazer um grande filme. Estruturada livremente sobre a melhor fase do Capitão, do início dos anos 70, e baseada em uma grande história, sólida, o segundo filme do Capitão América faz justiça à lenda de um dos personagens mais antigos do cânon. É um filme brilhante.

Deadpool (2016)
A essa altura a fórmula já estava desgastada, e então aparece Deadpool com uma proposta simples: vamos avacalhar a bodega. Só isso. Mas faz isso com graça e com risadas legítimas.

Mulher Maravilha (2017)
Olhando direitinho, não há muita coisa nova em “Mulher Maravilha”: a protagonista é uma mulher, e estamos conversados. O desrespeito total à mitologia grega é um detalhe apenas, que certamente passou em branco para a plateia. Fora isso não há muito mais que clichês, ou no mínimo as regras básicas do filme de super-herói. Mas os autores entenderam que para fazer um filme com uma super-heroína nos anos 10 não basta simplesmente trocar o nome do protagonista. O filme precisa trazer uma certa ideologia, e por rasa que possa ser — e é —, “Mulher Maravilha” se beneficia disso. Acabou sendo um sopro num gênero cada vez mais cansado; mas a julgar por Captain Marvel, um sopro bem fraquinho, quase um suspiro.

Eu nunca fui bom de matemática.

João Gilberto

Ao contrário de tantos outros artistas brasileiros, João Gilberto era um samba de uma nota só. Nunca evoluiu. Aquilo que ele trouxe de uma temporada de surto em Juazeiro o acompanhou a vida inteira. Ele nunca fez algo diferente, nunca foi adiante. O que ele fazia em 1959 era exatamente o que fazia meio século depois, mas agora brigando com aparelhos de ar-condicionado. Era um maluco — chame de excêntrico, se quiser, mas ele era maluco — com um talento único, capaz de descontruir harmonias inteiras e reconstruí-las de maneira surpreendente, que inventou um jeito assombroso de tocar violão e repetiu isso pelo resto da vida. E que, de lambuja, aperfeiçoou um jeito de cantar que iria se afirmar definitivamente em Roberto Carlos.

Mas essa única coisa que ele fez foi revolucionária. Sozinho, João Gilberto criou um gênero musical que revitalizou a música brasileira de maneira impensável e irreversível. Sem ele, Tom Jobim e Vinícius de Moraes fariam uma música diferente — bela, certamente; melódica e liricamente sofisticada, com certeza; mas não nova. Basta ouvir o disco “Canção do Amor Demais”, de Elizeth Cardoso, para entender isso. Sem João, a bossa nova seria pouco mais que uma cópia descarada do jazz temperada com pouquinho de samba aguado, eventualmente cedendo aos arroubos semi-sinfônicos de Tom Jobim. Seria Carlinhos Lyra cantando “Influência do Jazz”, ou Billy Blanco jogando uns panos mais arrumados nas costas da música da favela e usando a coitada para cantar as agruras da classe média carioca.

A bossa nova é talvez o gênero musical mais superestimado da história da música brasileira. Se esgotou rápido demais, e no fim das contas não conseguiu superar suas origens de elite carioca. Mas a sua influência é imensurável, e ela certamente não seria a mesma sem João Gilberto. Se conquistou os jazzistas americanos — e sua influência, pelo menos durante um breve instante, foi enorme; o que me vem à cabeça imediatamente é Sonny Rollins tocando If I Ever Leave You, mas exemplo é o que não falta — não foi porque os deslumbrou com algo diferente ou no mínimo exótico com Carmen Miranda 20 anos antes; foi porque eles reconheceram sua própria música ali, mas com a impressão digital de João Gilberto.

E isso basta.