Júlia, Sabrina e Bianca — e Momentos Íntimos

Anteontem parei numa banquinha de livros e revistas usados no mercado, enquanto ia comprar camarão, e comprei também uma Sabrina e uma Momentos Íntimos.

Alhures nesta internet sem lei você vai encontrar resenhas e críticas bem fundamentadas de livros decentes, como os do Machado de Assis, Alex Castro e Luiz Biajoni. Aqui neste blog não há lugar para tantas sofisticações, e portanto seguem alguns comentários sobre essa categoria literária tão desprezada por aí.

Antes, no entanto, uma explicação.

Uns sete lustros atrás, quando eu ainda era criança, costumava acompanhar minha mãe ao trabalho. Nunca tinha o que fazer, mas uma colega dela, que trabalhava no turno anterior, era viciada nesses romances de banca: Júlia, Sabrina e Bianca. Na época eu lia compulsivamente o que quer que me aparecesse na frente, e além disso tinha algumas horas completamente livres em minhas mãos. Assim, ao longo de alguns meses, li dezenas desses romances, a ponto de entender perfeitamente a estrutura comum a todos eles.

Lembre-se, era o começo dos anos 80. Aqueles livros editados então pela Abril tinham sido publicados nos EUA e na Inglaterra cinco, dez anos antes. Suas protagonistas eram sempre garotas belas, às vezes belíssimas, mas sempre despretensiosas. Sempre jovens, sempre querendo saber bem mais que seus vinte e poucos anos; trabalhavam, modernas que eram, mas muitas vezes apenas como um esforço orgulhoso e sensato por independência, antes que a necessidade mesquinha e pouco romântica de garantir o pão com manteiga da manhã seguinte e a prestação da geladeira. Porque no fundo, como moças sérias e direitas que eram, o que elas queriam era casar. Como um plus a mais adicional, essas heroínas eram invarialmente virgens, e embora já demonstrassem sentir alguma vergonha por insistirem em ser moças à moda antiga (o que obviamente as qualificava mais diante de suas leitoras), estavam decididas a se guardar para quando o amor verdadeiro chegasse.

Para essas moças que toda leitora queria ser, o de cujus chegava na forma de um homem alto, másculo, forte, seguro de si, dominador, arrogante, com um je ne sais quoi de mistério e, quase por desígnio divino, rico. Tinha sempre um “olhar magnético” — até hoje, quando lembro desses livros, é essa expressão presente em nove de cada dez deles que me vem à cabeça: um “olhar magnético”, geralmente vindo de olhos cinzentos.

Ela se apaixonava perdidamente, loucamente, descontroladamente, e a paixão era obviamente recíproca. Eles começavam a namorar, mas em algum momento um mal-entendido os separava, normalmente resultado da grande paixão e da grande insegurança de ambos. Era a suprema vitória dessas moças: conquistar o macho alfa, fazê-lo menino de novo, inseguro diante delas. Claro que, no final, o mal-entendido se resolvia. E a moça virtuosa e forte em sua feminilidade e o homem poderoso mas subjugado pelo amor seriam felizes para sempre.

Aí pela metade dos anos 80 apareceu um novo título. Se chamava Momentos Íntimos e trazia uma diferença fundamental, ainda que com um atraso de dez ou vinte ou oitenta anos em relação à vida real: agora as moças abriam as pernas. Momentos Íntimos tinha esse nome porque aqui o véu casto do pudor não mais caía depois do beijo mais ardente; em vez disso, éramos brindados com descrições lúbricas da maneira como ele, amante insaciável e talentoso, a fazia descobrir um novo significado para a vida. É bom lembrar que até o meio do livro as moças, assim como suas colegas belas, recatadas e do lar em Júlia, Sabrina e Bianca, eram virgens. Mas agora hímens rompiam a três por quatro, como barragens em Mariana.

Era isso que eu queria rever quando decidi comprar os livros.

Escolhi com algum cuidado. Os que eu queria precisavam ter sido publicados na primeira metade dos anos 80, no caso de Júlia, Sabrina e Bianca, e na segunda metade no caso de Momentos Íntimos. Escolhi a Sabrina pela logomarca, minha velha conhecida, e a Momentos Íntimos pelo preço original, marcado em Cz$.

A Sabrina traz “Terra de Paixões”, de Janet Dailey, publicado originalmente em 1975 e, aqui, em 1983. Antes de me aventurar no conto de fadas tive um lembrete agradável de que às vezes o melhor de comprar livros usados são os brindes involuntários que você recebe. Nesse caso, ganhei dois vales-transporte de uns 30 anos atrás e uma xerox da carteira de identidade de dona Maria Luiza Teixeira dos Santos. As sucessivas donas desse livro também deixaram suas marcas. Uma rubricou seu nome com a data: 16/01/84; outra, pioneira da economia colaborativa, preferiu deixar seu veredito: “Muito boa. Agradável de ler, curiosa, diferente. 18/05/12, Aju”´.

Eu não queria diferente, eu queria igual. De qualquer forma, o nome da autora não me era estranho. Fui catar e ela está na Wikipedia. Morreu dia desses, não sem antes vender a bagatela de 300 milhões de livros. Dizem que inovou o gênero ao criar o “romance de western”. E “Terra de Paixões”, um dos seus primeiros livros e que ainda está no prelo, é exatamente isso: uma modelo linda e virgem e esforçada conhece um cowboy de rodeio com metro e noventa, belo, arrogante, infelizmente sem o clássico “olhar magnético”. Se casa por impulso, porque percebeu imediatamente que esse era o homem de sua vida, e vai para a fazenda nele no Novo México. O choque cultural causa problemas, o pobre vaqueiro rico se sente inseguro porque acha que ela não vai se adaptar à vida no campo, e naturalmente o orgulho de ambos os afasta. Mas ai de você, pessoa pobre do século XXI já descrente da felicidade que só se pode encontrar num homem alto, másculo, forte, seguro de si, dominador, arrogante, com um je ne sais quoi de mistério e, quase por desígnio divino, rico, se aposta que eles continuaram distantes um do outro: no final vence o amor, sempre o amor.

A Momentos Íntimos traz “Insensato Amor”, de Catherine Coulter, publicado originalmente em 1985 e aqui um ano depois. Pertenceu a dona Maria Juvanira Nunes, que o comprou em 24/01/1986 — não, 1987: ela tinha escrito 1986, antes de riscar e marcar a data correta. Ainda não tinha se acostumado com o novo ano.

Dona Coulter também está na Wikipedia, numa página que parece ter sido escrita por ela mesma mas sem o destaque de Mrs. Dailey. Neste livro a digna senhora conta a história de uma modelo linda e virgem que conhece um médico de metro e noventa, de olhos verdes (diabo, aqui também falta o “magnético”), atlético, bem-sucedido, 15 anos mais velho, por quem se apaixona perdidamente. Se no livro anterior a história é contada exclusivamente do ponto de vista da mocinha, aqui Coulter, menos talentosa em seu ofício, é uma narradora onisciente, e sabemos que o pobre doutor também está loucamente apaixonado, mas inseguro por ser tão mais velho e achando que a família dela não vai aceitá-lo; e então eles se afastam, apenas para se reconciliarem no final, que acaba lembrando o do filme Lover Come Back sem a graça deste.

Mas isto aqui é Momentos Íntimos, não é Júlia nem Sabrina nem Bianca; aqui a jurupoca pia e geme e grita. A primeira vez da mocinha deste livro é descrita em detalhes:

A língua ardente tocou-lhe o sexo, e foi como se seu corpo todo entrasse em comunhão. Nunca imaginara que pudesse existir um prazer tão intenso!

— Oh! Elliot… Não pare agora, por favor… — sussurrou, sentindo-se transportada para o paraíso.

Elliot afastou-se um pouco para admirá-la. Sentia-a reagir e beijou-a com sofreguidão, contornando-lhe a boca com a língua.

— Você é tão doce! — murmurou, segurando-lhe os seios.

Christine gemeu baixinho, contorcendo o corpo. Percebendo que ela estava pronta para recebê-lo, Elliot então penetrou-a lentamente, tentando não machucá-la.

Os dedos delicados cravaram-se nas costas largas. Christine sentia um misto de dor e desejo. Olhou atônita para o homem cujo sexo latejava dentro de seu corpo.

— Elliot! — chamou, num espasmo de prazer.

Sinceramente não sei o que é pior, se a penetração lenta por um sexo que latejava dentro do seu corpo ou os adjetivos ou os pontos de exclamação. Mas o fato é que milhares, muitos milhares de senhoras neste país afora compraram e leram esses romances, e eles, ainda que por uns breves instantes, tornaram suas vidas um pouco melhores, com mais fé no amor e mais poesia.

Ler esses dois livros me fez perceber duas coisas curiosas. Uma, bem boba, é entender que pelo menos uma das minhas lembranças estava errada: eu achava que o rompimento entre protagonistas vinha antes, e não a apenas algumas páginas do final, como nesses dois romances; mas isso faz todo o sentido do mundo.

A outra é, antes de tudo, uma impressão: essas moças não faziam sexo oral. Em Momentos Íntimos a protagonista é servida magnificamente várias vezes, mas não retribui. Puxando pela memória, não lembrei de nenhum caso semelhante em algum dos tantos livros que li. E acho que há uma razão para isso.

De uma forma estranha, esses livros eram feitos não apenas para que as mulheres sonhassem com um príncipe encantado, mas para aumentar sua autoestima. Não importa a mediocridade da escrita, as estruturas dramáticass sempre iguais; o fato é que elas davam voz às mulheres, ainda que dentro de um contexto que dificilmente uma feminista, mesmo em sua época, iria admitir. Aqui as mulheres eram princesas modernas. E receber sexo oral pode implicar mais poder do que fazer. Sem falar no que pode ser um certo pudor natural da época: aprendia-se na Socila que uma moça decente não devia falar com a boca cheia.

Agora fiquei curioso para saber como é que são esses romances hoje. As pessoas parecem continuar precisando de amor e de sonhos, mas já não parece fazer sentido dividir as linhas em com e sem sacanagem. Mulheres virginais parecem alucinações do passado e a inocência parece pertencer a outros tempos. As moças de Júlia, Sabrina e Bianca ruborizavam; as de hoje mandam nudes pelo WhatsApp? Essas dúvidas, neste instante, me intrigam. Acho que vou na banca e perguntar ao jornaleiro: “Por favor, o senhor tem uma daquelas Júlias, Sabrinas ou Bianca bem românticas?”

Mesóclises

O Serge e o Thiago, nos comentários ao post anterior, me fizeram lembrar de alguns aspectos da língua escrita nas revistas em quadrinhos d’antanho. Por uma dessas coincidências da vida, andei pensando nisso ultimamente.

Nos últimos anos baixei o que pude de revistas antigas digitalizadas. Principalmente do final dos anos 70, início dos 80, e principalmente da Disney — porque essa, antes de tudo, é uma viagem nostálgica. Mas também de outras épocas, anos 50 e 60 e 2000, e me impressiona a maneira como os diálogos mudaram.

Nos anos 50 e 60 a linguagem era excessivamente dura. Não acho que tenha visto um “cáspite” nas revistinhas que baixei, porque isso era coisa do Tex, se lembro bem; mas tenho certeza de que havia um sem-número de ênclises. E não duvido que até mesóclises pudessem ser encontradas numa fala simples do Pato Donald.

O mais grave é que eu acho mesóclises bonitas. Quase passei a gostar do Temer por causa delas. Neste blog, se elas aparecem, é certamente de maneira irônica, porque eu sou um frouxo incapaz de desafiar as normas da escrita conscientemente (só inconscientemente, mas isso tem outro nome: ignorância); mas elas são bonitas, porque a língua não precisa ser simples, sempre. Ela precisa dar ao menos um espaço possível para ir além. É a diferença entre a Sétima Sinfonia do alemão surdo e a Melô do Não Sei Qual do Bonde do Sei-Lá-o-Quê. E que concisão: um ato, um objeto, um tempo contidos no mínimo espaço necessário. Em vez de “você vai fazer aquilo”, “fá-lo-ás”.

Nos anos 70 a linguagem nas revistinhas começou a se soltar. Volto a elas daqui a pouco. E a partir dos anos 80, assim como enfiaram o Zé Carioca num boné com a pala para trás, também aderiram de maneira decisiva ao coloquial. Quadrinhos mais adultos, tipo super-heróis, ousaram muito mais, mas eles se dirigem a outro público. O que interessa é que a linguagem utilizada então, se ainda correta, já não diferia tanto da língua falada por gente comum.

Quando deixei de ler revistas Disney elas ainda se mantinham nesse nível. Não sei como estavam até deixarem de ser publicadas em Pindorama. As revistas mais recentes que li, geralmente de super-heróis, abusam da informalidade, da tentativa de transcrição da língua das ruas. E usam um bocado de palavrões.

Eu realmente tenho problemas com o uso excessivo de palavrões. Acho que são desnecessários. É engraçado ver essa pudicícia em mim mesmo: escrevendo isso, fico me achando um daqueles sujeitos que é contra a legalização do aborto mas enfia Cytotech na namorada quando ela engravida. Eu falo palavrões o tempo todo, tenho uma das bocas mais sujas que conheço, e para mim qualquer substantivo e qualquer adjetivo podem ser substituídos por algum deles. Na verdade eu não acho que não se deva usar palavrões nunca na língua escrita; só acho que devem ser usados com moderação. A força do palavrão está na sua transgressão, em sua imprevisibilidade.

(Claro, um gramático lexicógrafo semântico semiótico desses tipos novilíngua poderia dizer que isso é a língua em transformação, que o palavrão de ontem é a moeda corrente de ontem. Foda-se.)

E aqui voltamos aos pontos levantados pelo Serge e pelo Thiago.

Eu não aprendi a ler com os quadrinhos; foi minha mãe que me ensinou, antes do tempo normal. E não tenho certeza de que eles colaboraram demais para o pouco que entendo de português. Colaboraram, e muito, para a minha cultura geral; mas quanto à intimidade com a última marafona do Lácio eu realmente não sei, porque nessa época havia um bocado de livros de que eu gostava e dos quais não esqueci até hoje. Talvez esteja sendo injusto com o Tio Patinhas, talvez queira lembrar de mim mesmo lendo mais livros do que realmente li. Eu não sei.

Mas acho que a linguagem utilizada nos anos 70 ainda respondia a algumas das âncoras do português culto sem deixar que elas a prendessem a um passado que, se existiu realmente, já fazia muito tempo. As ênclises eventualmente estavam lá. E tenho certeza de que quem as lia tinha mais facilidade em falar e escrever corretamente.

Eu não concordo, nunca, com aqueles que adotam uma postura de absoluto laissez faire em relação à língua, que dão validade excessiva aos falares mais incultos. Uma coisa é respeitar o sujeito que fala “nós vai”; outra, completamente diferente, é tentar me convencer que ele está certo. No fundo, isso é reflexo de um paternalismo extremo. Lá está o sujeito que passou por sei lá quantos doutorados, que reconhece na educação formal e no reconhecimento de códigos um valor importante, tentando convencer o sujeito que mal cursou o ginasial que o jeito dele falar “estrupo” é aceitável. Então tá. O que chamam de respeito eu chamo de perpetuação da dominação.

Resumindo, eu acho que são necessários padrões. A função da língua escrita é, principalmente, possibilitar que alguém seja completamente entendido por outros. Agora imagine um texto todo escrito com expressões e termos exclusivamente gaúchos lido por um sujeito do interior do Piauí.

Por outro lado, é cada vez menos incomum para mim achar um sinônimo de algumas palavras mais facilmente em inglês do que em português. Isso não é sinal de proficiência em inglês, é sinal de deficiência crescente no portuga velho de guerra. Como o filho do português que, ao emigrar para Londres — no meu caso, a internet e a Netflix —, não aprendeu o inglês e estava esquecendo o português.

E por tudo isso eu fico cada vez mais pessimista em relação ao futuro da língua. De um lado, uma geração que simplifica em excesso os códigos que nunca dominou e torna aceitável a ignorância. Do outro, uma classe que se aproxima do inglês com a veneração de um melanésio diante de um caixote largado em suas cabeças. Isso não pode dar certo.

Stan Lee

A morte de Stan Lee não poderia acontecer em hora mais adequada, se é que há algum tipo de adequação na morte que justifique uma frase tão infeliz quanto a que abre este texto.

Durante algumas décadas, Lee foi um velho conhecido dos fãs de quadrinhos de super-heróis, e nesse nicho da cultura pop nada é capaz de obscurecer o seu legado. Ele foi o maior de todos, o sujeito que revolucionou o segmento ao incluir nele elementos da vida real, criando personagens como o Quarteto Fantástico, e logo depois o Homem-Aranha, com algo semelhante aos problemas cotidianos das pessoas comuns: contas para pagar, amores mal-resolvidos.

Resumindo da melhor forma possível, a verdadeira revolução de Stan Lee não foi criar o Homem-Aranha, foi criar Peter Parker.

Nos últimos 15 anos, no entanto, o cinema fez sua fama extrapolar o mundo dos quadrinhos. Stan Lee se transformou no tipo de celebridade que é ainda maior do que sua obra, com o detalhe raríssimo de ter uma obra realmente importante. A internet fez dele um mito, e hoje um número monstruoso de pessoas sabe que ele é o “pai dos super-heróis”, o que é uma injustiça com nomes como Jerry Siegel e Joe Shuster, Bob Kane, Lee Falk e mesmo Will Eisner, mas não está muito longe da verdade. Mesmo os mais desavisados sabiam que ele era o velhinho de bigode que aparecia nos filmes de super-heróis.

E isso ainda é pouco para Lee. Seu impacto na cultura popular do mundo inteiro é incalculável, e poderia ser o objeto da inveja de milhares de filósofos, escritores e músicos, que faziam cultura e arte mais séria, mas para infinitamente menos pessoas.

Como tudo tem outro lado, no começo dos anos 70 Stan Lee já tinha dado o que tinha de melhor como criador. Havia estabelecido uma fórmula infalível e a repetia em todas as histórias que assinava. Isso é compreensível se lembrarmos o volume desumano de roteiros que escrevia mensalmente, mas isso significa que seus personagens ficaram cada vez mais parecidos. Assim, os dilemas vividos por Steve Rogers eram muito parecidos com os de Peter Parker: amores desencontrados e às vezes silenciosos, um profundo senso de inadequação ao mundo, intermináveis dúvidas existenciais — basicamente, Lee colocava em quadrinhos a vida dos adolescentes que o liam. Hoje suas histórias soam até pueris, embora ainda mantenham uma aura de verdade intrínseca que não é moeda corrente em boa parte da produção atual.

Nada disso diminui a sua importância. Suas histórias foram revolucionárias em sua época. O homem foi um dos gigantes do século XX — eu já escrevi aqui que acho os super-heróis uma das grandes invenções do século passado, e Stan Lee foi fundamental para a sua permanência.

Mas o século XX já passou. E Stan Lee morre exatamente no momento em que a indústria que ele ajudou a revolucionar está desaparecendo.

Durante todo o século passado, revistinhas em quadrinhos foram um dos principais passatempos de crianças e adolescentes. A partir dos anos 80, quando houve uma explosão criativa e elas se tornaram mais complexas (se eu fosse escolher um marco arbitrário para essa transição seria “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller), passaram a ser consumidas sem culpa por adultos, o que garantiu status de quase arte para o gênero.

Mas os anos pós-HAL-9000 (curiosamente Douglas Rain, que deu voz a HAL em “2001”, morreu no mesmo dia que Lee) têm sido espinhosos com essa indústria e as revistinhas em quadrinhos estão condenadas a desaparecer.

O fim recente da publicação dos personagens Disney pela Abril não é resultado apenas da crise em que a editora se encalacrou. As vendas vêm despencando nas últimas décadas, e nada indica que deixarão de rolar morro abaixo. Como disse o Paulo Maffia, que editava a Disney cá nos trópicos, o problema é muito mais grave: a verdade é que a era das revistas baratas vendidas mensalmente em bancas está chegando ao fim, porque elas estão perdendo o sentido e a importância para as novas gerações. Aliás, até as bancas estão acabando, para minha tristeza inconsolável. Quadrinhos estão deixando de ser mídia de massa para se alojar nos nichos dos encadernados de luxo, à venda em livrarias.

(Uma pessoa mais chata poderia lamentar isso, apontar para o fato de que em vez de ler livros de verdade as pessoas estão lendo quadrinhos, e isso estaria contribuindo para a epidemia de burrice que assola o mundo e tem surtido efeitos tão nefastos em eleições mundo afora. Que bom que eu não sou chato.)

Diante do esboroamento de seu mundo, os super-heróis — certamente ajudados pelos seus superpoderes — se adaptaram e encontraram uma sobrevida no cinema. Mas há um grande paradoxo nisso. A tecnologia que permite que eles sejam representados de maneira verossímil é a mesma que está matando o astro de cinema (nesses blockbusters o importante é, por exemplo, o Hulk ou o Pantera Negra, não os atores que os representam. Estes podem mudar sem problemas: só o coitado do Homem-Aranha já foi interpretado por três sujeitos diferentes desde 2001) e, paradoxalmente, as próprias revistas em quadrinhos; mas isso não interessa.

Talvez por isso a morte de Stan Lee pareça tão tempestiva. Morrer aos 95 anos não é injusto para ninguém, para sermos francos. Tampouco é motivo de alegria. Mas se é possível achar algum motivo de, pelo menos, consolo nesse pequeno incidente, ele está em entender que a vida foi mais que boa para o velho e bom Stan: ele morreu antes de ver a sua indústria, pela qual ele fez muito mais que a maioria de seus colegas, agonizar e morrer.

Obviamente, resta ainda uma esperança: que a sua morte seja igual às de tantos super-heróis, mortes espetaculares que invariavelmente são revertidas logo depois.

Talvez Stan Lee volte no próximo número.

Beatles, raspando o fundo do tacho

Durante décadas, o legado dos Beatles foi mantido com uma pureza que nenhuma outra banda, na história, repetiu. Os Stones vivem raspando seus tachos em busca de algo que possam vender já desde os anos 60. Até Bob Dylan, desde os anos 80, vem revirando seus baús e transformando em algo rentável sobras de estúdio e quetais.

Os Beatles, não. Durante o quarto de século seguinte ao seu fim, o catálogo original de 13 álbuns foi mantido intacto, entronizado como a obra cristalizada de uma banda revolucionária e inigualável, um cânon pelo qual a música popular ocidental deveria se guiar. Suas músicas não eram licenciadas para comerciais. Raramente apareciam em filmes (eu só consigo lembrar de Shampoo). A integridade de sua obra nunca foi ameaçada.

O que a gente não sabia é que isso talvez se devesse menos a um purismo excessivo do que ao fato de, durante aqueles primeiros 25 anos, o emaranhado de processos e contra-processos em que os Beatles se meteram impediam o mínimo acordo para a rentabilização do seu catálogo. Além disso, ainda vigorava a era do LP: as vendas lhes davam dinheiro suficiente para que pudessem manter a compostura.

Resolvidas as questões judiciais, no início dos anos 90, a Apple se viu livre para colocar caça-níqueis em cada loja de discos do mundo e faturar com o que, até então, tinha sido o playground dos piratas. Os primeiros lançamentos foram excelentes: o Live at BBC e os Anthologies trouxeram gravações importantes, de grande qualidade. Mas o se seguiu foi apenas uma sucessão de bobagens desnecessárias. O Let it Be…Naked decepcionou quem quer que conhecesse a história de suas gravações. On Air, Hollywood Bowl — não sei se sou só eu, mas a cada novo lançamento dos Beatles eu venho torcendo o nariz e criando uma resistência que só faz crescer.

E agora que eles aprenderam a lição de Paul McCartney, a coisa parece ter saído de controle.

Enquanto a Apple se perguntava se liberava ou não suas canções para o iTunes, Paul McCartney veio tratando seu material solo de maneira diferente, até agressiva. Quando lançou seu catálogo em CD, nos anos 90, tentou agregar valor a eles incluindo os compactos contemporâneos, dando um panorama histórico mais abrangente e muitas vezes fortalecendo o próprio disco. (E mesmo assim eu não gosto. Um LP é uma obra fechada. Se o Ram se tornou um pequeno clássico ou se Wild Life é até hoje esculhambado, é pelas canções que traziam quando foram lançados, não pelas correções feitas depois. Isso é trapacear.)

Nos anos 2010, às voltas com a necessidade de reembalar um material tantas vezes relançado, McCartney resolveu dar um passo adiante. Agregou a seus discos outtakes, demos, livrinhos, o escambau: seus relançamentos são pacotes caros, feitos para fãs dispostos a pagar por arrotos engarrafados, e que vão muito além da única razão de ser de um LP: a música.

Ano passado a Apple parece ter aprendido essa lição e cruzou o Rubicão. Lançou um Sgt. Pepper’s cheio de badulaques desnecessários. A impressão que um velho fã chato como eu tem é a de que conspurcaram algo sagrado, como se tivessem passado batom e maquiagem pesada numa criança e enfiado a coitada em lingerie vermelha. Mas o resultado parece ter sido satisfatório para os cofres da Apple, porque agora anunciaram uma nova versão do “Álbum Branco”, cheio de penduricalhos para aumentar seu valor de mercado.

A versão deluxe, aquela a que todos vamos dar preferência na hora de baixar ilegal e gratuitamente nas redes da vida, traz um volume enorme de material.

São seis discos, ao todo, além das fotos e pôster originais e um livreto. Os dois primeiros CDs são o velho e bom “Álbum Branco”, agora remasterizado — pela segunda vez em menos de dez anos. O terceiro disco traz as famosíssimas “Esher demos” (voltando da Índia e precisando gravar um novo disco, os Beatles se reuniram na casa de George, Kinfauns, em Esher, e gravaram versões de demonstração das suas novas canções para escolher o repertório do disco, cujas sessões seriam caóticas e serviriam como marco, um tanto arbitrário, do início do fim da banda). Os três discos restantes, intitulados Sessions, trazem sobras de estúdio. Takes alternativos, jams, ensaios. Algumas das faixas aparentemente já foram lançadas oficialmente, como Step Inside Love/Los Paranoias, no Anthology III. O resto parece ser basicamente o que vimos na edição comemorativa do cinquentenário do Sgt. Pepper’s, ano passado: material ruim que uma pessoa honesta jamais revelaria para o mundo.

Isto aqui não é uma resenha porque parece estranho resenhar sobras de estúdio e demos, ainda mais antes de serem lançadas. E porque a grande maioria desse material está disponível, há muitos anos, nas redes. From Kinfauns to Chaos é um entre tantos álbuns feitos apenas como as demos de Esher, e boa parte das sobras de estúdio incluídas nos outros discos também circula fartamente na internet. Quem tiver curiosidade procure pela versão deluxe do “Álbum Branco” lançado pela Purple Chick.

Definitivamente, esses não são os discos que eu gostaria de comprar. Principalmente porque, fora desse esquema de recauchutagem, há uma imensidão de faixas realmente inéditas oficialmente que dariam novos álbuns interessantes. Eu compraria um Decca Tapes oficial, mesmo tendo o pirata há mais de 30 anos; compraria, se fosse lançado como um álbum isolado, as demos de Esher. Compraria um disco com curiosidades como versões de Maxwell’s Silver Hammer, I Lost My Little Girl, I’ve Got a Feeling e Get Back cantadas por Lennon, Something por Paul e por John, Get Back em algo que parece alemão ou cantada por George. No entanto, aparentemente isso não seria suficiente para fazer alguém comprar esses discos. Por isso a versão desnecessária de Sgt. Pepper’s do ano passado, e agora esse “Álbum Branco” gordo, pesado.

***

Mas essa nova orientação de lançamentos pode vir a trazer uma coisa boa para os fãs.

Em 2020, o Let it Be completará 50 anos. É a chance de lançar o filme restaurado nos cinemas (embora eu goste mais da sugestão que já dei aqui: entregar o material bruto para Martin Scorsese e deixar que ele faça algo decente daquela mixórdia), e as versões de Glyn Johns para o Get Back original. Eu entraria em qualquer fila para comprar esse LP, talvez um álbum duplo com as duas mixagens e com a capa original.