A Menina do Lado

Nos primeiros cinco minutos de filme, incluindo os créditos de abertura, o que chama a atenção são os vestígios de um mundo que não existe mais. Orelhões, fitas cassete, máquina de escrever, um Passat. Ao longo do filme, outras antiguidades vão aparecendo: Malt 90 em latas de folha de flandres, sacos de compras em papel pardo, resquícios de um mundo que existiu logo ali, mas já foi embora.

Esses artefatos arqueológicos de uma era que passou marcam a idade de “A Menina do Lado”. O filme é de 1987. Assisti a ele mais ou menos nessa época — não no cinema, mas em videocassete, outra relíquia que o tempo enterrou. Quase tanto quanto a história, me impressionou na época (e a muitos outros) a qualidade técnica do filme, superior à média do kinemanacional de então, a naturalidade de diálogos, a trilha sonora de Tom Jobim dando o clima mais que adequado ao filme.

“A Menina do Lado” conta a história de Mauro e Alice. Mauro é um jornalista enfurnado numa casa à beira da praia em Búzios para escrever um livro; Alice é uma garota que passa férias sozinha na casa da família, vizinha à alugada por Mauro. Mauro está beirando os 50 anos; Alice tem 14. Naquele ambiente isolado, livre das condicionantes do mundo cotidiano, longe das tantas coisas que nos ajudam a perceber a nós mesmos mais velhos ou mais jovens, nasce entre os dois uma paixão que se desenrola com a leveza de uma tarde sob o pôr do sol de Búzios. O espectador até esquece que, além de velho, Mauro é casado e seus filhos são mais velhos que Alice.

Então eu tinha aproximadamente a idade de Alice; revê-lo agora, quando estou mais perto da idade do Mauro do que daquela garota, deveria me dar uma visão diferente do filme: uma percepção recondicionada de “A Menina do Lado” como obra cinematográfica, claro, mas também da história que ele conta.

Mas o tempo não faz isso. Continuo achando o que achei então: o filme de Alberto Salvá é de uma delicadeza e de uma beleza enormes, algo incomum naqueles tempos em que a intelectualidade sudestina parecia inexoravelmente fascinada com o marginal, com a transgressão que a brutalidade do mundo atual parece ter tornado banais e quase pueris (apenas para efeito de comparação, vale a pena dar uma olhada em “Fulaninha”, de Davi Neves, filme da mesma época e com alguns traços em comum, mas mais preocupado em fazer um retrato pitoresco da Copacabana mítica da Prado Júnior). Mas talvez por entender melhor o que Alice significa para Mauro, hoje se torna impossível não achar que essa beleza e delicadeza eram ainda maiores em seu tempo.

O filme toma o cuidado de mostrar o nascimento da paixão em Mauro com delicadeza, evitando quaisquer paralelos possíveis com “Lolita”, a referência mais óbvia em se tratando de uma diferença tão grande de idade. Ao contrário de Humbert Humbert, em nenhum momento Mauro é apresentado como um predador obcecado, e aceita passivamente a evolução do relacionamento com Alice; diferente de Lolita, Alice não joga com o desejo de Mauro, e não está condenada a perder esse jogo como a jovem Dolores. O relacionamento entre Mauro e Alice não apresenta nada de doentio. Não que seja infenso aos problemas que a diferença de idade causa, ou que a própria situação não seja vista por ambos como complexa, mas as diferenças e a paixão são encaradas, acima de tudo, com naturalidade.

De certa forma, “A Menina do Lado” era um tanto anacrônico em seu tempo, e estava uns 15 anos atrasado. Na virada dos anos 60 para os 70 o tema parecia estar no ar: uma série de filmes abordou o mesmo tema, a paixão complicada entre gerações diferentes, como There’s a Girl in My Soup, com Peter Sellers e Goldie Hawn, Breeze, filme de estreia de Clint Eastwood, ou “Ensina-me a Querer”, que se não é clássico é pelo menos um filme cult há quatro décadas.

Ainda assim o filme despertou certa polêmica. Afinal, mesmo que se adote a postura leniente de que tudo é normal, o namoro entre um homem de 45 anos e uma garota de 14 é, no mínimo, incomum. Havia um nível diferente de tolerância, desde que respeitados alguns preceitos, mas os anos 80 não foram uma época de permissividade total. Isso fica claro na cena em que Adriano Reis, no papel de Lourenço — que aparece em cena logo depois de Mauro contar a Alice a história de Romeu e Julieta, história que tem como um de seus principais personagens um padre cujo nome não consigo lembrar agora —, se apavora com a notícia. No entanto, tenho a sensação de que, comparado às polêmicas de hoje, mais intensas, mais grosseiras e cada vez mais curtas, tudo foi bastante leve. Talvez porque naquele tempo a paixão de uma adolescente por um homem casado de meia-idade fosse insólita, até assustadora, mas não criminosa.

Mas o que mais me chamou a atenção agora não foi isso. É o fato de que essa polêmica hoje não existiria. Porque “A Menina do Lado” jamais seria feito em 2017.

Para ser válido e aceito hoje, “A Menina do Lado” teria que ser “Lolita”, talvez ainda mais condenatório, mais óbvio, mais categórico. Antes de crônica de um amor, deveria ser a denúncia de uma violência. Deveria ficar claro que aquela menina foi abusada, que não importa o seu consentimento ou sua iniciativa, não importa sequer a sua eventual maturidade.

Parece estar se consolidando uma noção geral de que a obra de arte não pode valer se não se adequa perfeitamente ao codex moral vigente. O mundus novus não aceitaria isso; o coroa necessariamente é malvado, deve saber e ater-se ao seu papel. Por outro lado a visão sobre a sexualidade de adolescentes é complicada e contraditória, defendendo uma liberdade cada vez maior dentro de um espectro de possibilidades cada vez menor. Diante de tudo isso, a nova ortodoxia não pode admitir que algo pré-definido como absolutamente monstruoso possa ser apresentado com um grau quase ofensivo de doçura e delicadeza.

Talvez o mundo esteja mais desiludido hoje, menos ingênuo. Talvez imagine, de saída, o que seriam Alice aos 40, Mauro aos 71. Talvez saiba que um amor assim jamais poderia dar certo, se por certo entende-se “duradouro”. Talvez tanta coisa, mas o que importa é que o calar de vozes e de experiências no campo artístico nos torna mais pobres. Não se trata da evolução dos costumes, de uma noção mais abrangente de tolerância e respeito: trata-se, ao contrário, do exagero normativista cada vez maior, do calar de vozes dissonantes e de um constante recurso à histeria como política.

Decididamente 2017 é um mundo diferente daquele de 1987. Um sinal disso é o fato de que há duas versões do filme no YouTube. Uma delas, a que tem mais republicações e visualizações, é uma versão mutilada e sanitizada: cortou as cenas de sexo e, o que é muito pior, a cena em que, num acesso de ciúmes, Mauro agride violentamente Alice. Como se o mundo, 30 anos mais velho, não fosse mais capaz de assistir àquelas cenas sem ter um ataque apoplético fulminante. Talvez não seja, mesmo.

De qualquer forma, é difícil condenar peremptoriamente esse mundo (desde que se releve aberrações como a recente onda de moralismo hipócrita, histérico e autoritário patrocinado por entidades como o MBL, que infelizmente pode ser explicada dentro de um contexto que os exageros do politicamente correto ajudaram a criar, ele também hipócrita, histérico e autoritário). É, afinal, um mundo com novos códigos — não melhores ou piores, mas diferentes, e sempre uma resposta ao seu próprio tempo. No entanto, é incômoda a sensação de que se está perdendo também a capacidade de enxergar o mundo fora do espelho — o que é estranho justamente numa sociedade que, mais rica do que nunca na história, acha que tem o direito absoluto a qualquer tipo de prazer, desde que em um mundo cada vez mais asséptico.

Rubem Fonseca, 8 anos depois

Eu não vou esquecer de quando li “O Cobrador” pela primeira vez. Tinha 19 anos e tinha dormido na casa de uma amiga. Acordei sem ninguém em casa, porque ao contrário de mim as pessoas tinham vergonha na cara e trabalhavam, e sem ter o que fazer abri o livro que tinha comprado no dia anterior.

Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Um cego pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulhinho das moedas me irrita.

Aquilo era diferente de tudo o que eu conhecia. Era como se eu finalmente tivesse entendido Manuel Bandeira farto do lirismo comedido do lirismo bem comportado do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. Sabia dele, claro, porque uns poucos anos antes, quando “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos” fora lançado, a máquina de divulgação da Companhia das Letras, à época uma editora fascinante, fez com que a notícia extrapolasse o meio literário, virando quase um evento social. Mas não o conhecia. E então, de repente, dou de cara com aquele sujeito bruto, seco, visceral.

Faulkner jamais me daria novamente o choque que me deu em “O Som e a Fúria”, Dostoiévsky jamais repetiria a cena do assassinato das velhas usurárias por Raskólnikhov, ninguém pode imaginar a minha decepção ao ler “Dublinenses” depois de “Ulysses”, ou “Laranja da China” depois de “Brás, Bexiga e Barra Funda”.

Mas depois de “O Cobrador”, de “Feliz Ano Novo”, depois de conhecer boa parte dos livros dele publicados até então, li “Lúcia McCartney”, e de novo fiquei boquiaberto, sem reação que não fosse o deslumbre total. Ainda hoje “Lúcia McCartney” é, para mim, o melhor livro de contos escrito em língua portuguesa. A diversidade de temáticas e de abordagens, a verdade contida em cada um dos contos, a ambição literária que se podia ver nas palavras de um sujeito que sabia de onde sua prosa vinha, tudo aquilo me deixava embasbacado e impressionado.

Infelizmente foi mais ou menos nessa época, no começo dos anos 90, que essa magia devocional que já durava mais ou menos um ano se acabou. Um pouco depois de “Lúcia McCartney”: eu tinha esperado ansiosamente o lançamento de “Romance Negro”, mas já nas primeiras páginas uma frase me incomodou: “Seu corpo nu está me dizendo que é tudo verdade”. Corpos nus não dizem muito, dizem se têm frio ou calor ou vergonha ou medo, se estão excitados, e essa frase me soou tão falsa, tão artificial — especialmente nele, que escrevia brilhantemente a partir das verdades mais básicas, sem floreios, um Hemingway que deu certo — que foi como se, de repente, o meu deus infalível se mostrasse bêbado num fim de noite, olhado com desprezo pela moça que iria com ele para casa, um deus não tão infalível assim.

Mas aquele era um bom livro e isso era apenas uma bobagem menor que podia ser deixada para lá. Depois a coisa piorou, porque “O Selvagem da Ópera” era um livro tão destoante, e uma sequência de livros medianos (“Histórias de Amor” ou “O Buraco na Parede”) ou ruins (“O Doente Molière” é vergonhoso, “Diário de um Fescenino” não é muito melhor) transformou minha devoção em agnosticismo.

Curiosamente, à medida que sua obra ia decrescendo em qualidade, um fenômeno não tão curioso se consolidava: Rubem Fonseca parece ser protegido por uma certa camaradagem literária carioca, como se seus pares tentassem protegê-lo do mundo mau lá fora em respeito à sua obra pregressa, monumental. Basta olhar os jornais: não importa quão ruim seja um livro seu, sempre vai haver uma crítica favorável, no mínimo condescendente, em algum grande veículo de comunicação. Exemplos tantos de uma boa vontade generalizada, uma prontidão em inserir o livro no “estilo”, no “universo” de Rubem Fonseca. Vai ser fácil encontrar neles aquela vontade de ser amigo, de chamá-lo Zé Rubem, identificar aquela admiração necessariamente complacente que devia ser proibida numa reportagem sobre qualquer pessoa.

Daí se pode imaginar o prazer com que li “Secreções, Excreções e Desatinos”, um livro “conceitual” como o Sgt. Pepper’s. Mas foi alegria efêmera, porque a ele se seguiram livros menores — eventualmente interessantes, como “Pequenas Criaturas”, mas nunca grandes. Ele mudou de editora (perdendo as capas lindas, tão lindas de Hélio de Almeida) e lançou “O Seminarista”, livro tão tosco que chegava a ter erros de continuidade.

Eu não tinha mais interesse em Rubem Fonseca. Em 2011 vi que ele tinha lançado dois novos livros, “José” e “Axilas e Outras Histórias Indecorosas”. Deixei para comprar depois. O depois veio e passou, e de tanto deixar eu esqueci. De lá para cá, durante muitos anos ele não me mandou mais notícias, não falou mais comigo.

***

E daí que depois de alguns anos sem saber de Rubem Fonseca, sem sequer reler seus livros, fui procurar sua biografia e descobri que desde “O Seminarista” ele tinha lançado mais cinco títulos. Deus habitava meu coração nesse dia, segunda-feira passada, e comprei os cinco de uma vez. Chegaram mais rápido que de costume. Li-os todos em umas seis, sete horas.

Comecei pelo último livro de que me lembrava, “José”. Tive uma surpresa agradável: em vez de uma novela, tratava-se de um pequeno livro de memórias que, apesar do tom meio desconjuntado, do apego excessivo ao seu próprio estilo pouco adequado a reminiscências, acaba apresentando uma doçura da velhice, quase intimidade, ainda mais insuspeita em um sujeito cujo mundo literário é no mínimo singular.

“Axilas e Outras Histórias Indecorosas” é mais um livro de contos. O primeiro, “Sapatos”, é muito bom, evocando os idos tempos dos anos 60 e 70, em que por trás do seu estilo havia uma visão ética de mundo e uma indignação que mais tarde se perderiam. O resto é uma sucessão de às vezes pouco, às vezes nada bem-sucedidos contos que, no fim das contas, parecem apenas variações da mesma história. É como se Rubem Fonseca escrevesse com má vontade, com pressa, até impaciência. Parte de situações bobas que não consegue resolver adequadamente, apelando sempre para uma solução que agora deixa de ser necessária para ser apenas fácil.

A mania de fazer pequenas explanações pseudo-enciclopédicas sobre um tema qualquer, cultura de Google que hoje faz ainda menos sentido do que na época em que fornecia esteio para romances inteiros, como as facas de “A Grande Arte” ou os sapos de “Bufo & Spallanzani” ou ainda Bábel em “Vastas Emoções”, agora transplantada para um formato que os dispensa, hoje não é mais que uma caricatura, um cacoete literário que soa constrangedor à medida que se empilha em cada conto — às vezes, é a sua própria essência.

Mais impressionante ainda, por alguma razão “Axilas” mereceu uma tese acadêmica, de Alana Vizentin. Não li, não posso falar nada — mas não li porque não acho que esse livro mereça qualquer coisa além de um contraponto numa mesa de bar, e porque acho que já faz algum tempo que a academia brasileira, por razões internas de sobrevivência e auto-justificação, enveredou por descaminhos bizarros. O que importa é que o fato de alguém se dignar a escrever uma dissertação sobre livro tão medíocre apenas confirma aquela impressão de que, mais do que qualquer outro escritor brasileiro em qualquer tempo, mais até que Guimarães Rosa ou Dalton Trevisan, Rubem Fonseca é o alvo carinhoso de uma condescendência quase suspeita da crítica, que transforma a sua autorrepetição crescentemente pior em estilo, unidade, densidade.

Mas o livro traz, para um velho leitor de Rubem Fonseca como eu, o reencontro com um estilo, e é essa sensação a única coisa que faz sua leitura valer a pena. Um ou outro conto parece quase alçar voo, quase chegar ao padrão a que o escritor acostumou seus leitores. Mas o resto é uma sucessão de peças escritas com displicência que, mais e mais, se assemelham a cópias malfeitas de algo que já foi bom.

“Amálgama”, o livro seguinte, vem com pedigree. Diz um adesivo canalhamente colado à capa que o livro ganhou o Prêmio Jabuti. Alguém deve ter ganho um bom dinheiro para dar esse prêmio, porque “Amálgama” é um livro pior que “Axilas”, por sua vez medíocre. A orelha do livro tenta dar à obra um significado maior do que aquela a que ela pode almejar. O que eu não sabia, quando li “Secreções, Excreções e Desatinos”, é que ali Rubem Fonseca tinha descoberto uma fórmula para salvar seus livros cada vez mais fracos, mais descuidados: aglutine os contos sob um tema geral e o conjunto talvez esconda o fato de que eles são ruins. Funcionou em “Pequenas Criaturas”, um pouco menos em “Ela e Outras Histórias”, mas não pode salvar “Amálgama”.

A angústia existencial dos personagens de Fonseca agora se resolve, quase invariavelmente, com o assassinato. Essa sempre foi uma constante na sua obra, mas agora, de tão repetido, e em situações tão simplórias, o recurso perde significado. Personagens cada vez mais mal resolvidos, mais implausíveis, delineados de maneira tão descuidada, parecem matar apenas porque matar é fácil, ou porque esse é o final que se espera de uma história de Rubem Fonseca. Não há mais criatividade ou pujança: a literatura de Rubem Fonseca hoje se resume à aplicação quase mecânica de seus trejeitos e fórmulas sobre uma situação qualquer, sempre fácil.

Esta resenha de Luís Augusto Fischer me parece adequada. “38 contos, todos fracos, vários muito ruins, um ou outro de dar dó” é algo que define, e com uma grande dose de compaixão, “Histórias Curtas”.

E então vem “Calibre 22”, o mais recente livro. O primeiro conto traz uma ironia verdadeira e uma atualidade temática que parece indicar que o velho Rubem, apoiador do golpe de 64 e roteirista do IPES, pelo menos transformou sua visão de mundo em literatura de verdade, sintonizada com seu tempo. É só ilusão, no entanto: a ele se seguem contos e mais contos que repetem as mesmas anedotas mal estruturadas, mal escritas. Até mesmo Mandrake (que já tinha sido muito maltratado em “Mandrake: A Bíblia e a Bengala”), personagem recorrente desde os anos 60, se torna apenas mais um nome, alguém sem história, sem razão de ser. O conto que ele protagoniza, e que dá título ao livro, é tão vazio que faz pensar por que Rubem Fonseca colocou o que é seu personagem mais conhecido para protagonizá-lo, porque podia colocar qualquer um.

Rubem Fonseca se transformou em um pastiche de si mesmo, e talvez a melhor imagem para ilustrar essa transformação seja o fato de que, neste livro, “O Cobrador” se transformou em “O Matador de Corretores”, quase uma paródia triste e senil de sua obra. A coisa se torna tão séria que, embora as críticas favoráveis continuem pululando como sapinhos numa lagoa, apreciações corretas do verdadeiro valor de cada livro se tornam mais frequentes. Como esta, de Sergio Rodrigues, que beira o desrespeito — ainda que justo.

São quatro livros de contos publicados em seis anos. É impossível deixar de desejar que Rubem Fonseca tivesse evitado publicar tudo aquilo que escreve, que tivesse elaborado melhor seus contos, separado o joio tão abundante do trigo cada vez mais escasso, porque o resultado seria melhor. Ao longo desses quatro livros, alguns contos apresentados como medíocres ou francamente ruins poderiam ter dado origem a algo realmente bom. Mas a pressa que se depreende de sua escrita parece ser existencial. Não interessa mais a qualidade. O que Rubem Fonseca quer é continuar publicando, porque apesar do que ele diz, a literatura ainda faz sentido, e é isso que nos mantém vivos. Mesmo que nos mate aos poucos.

Sebos e livrarias

Uma livreira da 7 de Setembro, há uns bons anos, reclamou comigo que a internet estava matando os sebos do Rio. Eram os livros didáticos, paradidáticos e de referência que os sustentavam, desde sempre, mas o Google e quetais estavam acabando com a utilidade dessas publicações. Ela via seus livros empoeirarem ainda mais nas prateleiras sem que ninguém mexesse neles, e antevia o dia em que, como outros antes dela naquela mesma rua, teria que fechar as portas.

Não percebi na hora, mas devia haver ali um recado disfarçado para mim, de que não seriam pessoas como eu, que fuçavam suas lojas atrás de algum livro valioso vendido a preço de banana, ou buscavam os saldões expostos na entrada em busca de algo que prestasse, também ao mesmo preço, que os salvaria.

De lá para cá, pelo que ando vendo, as coisas pioraram muito. Um a um, os sebos que eu conhecia vão fechando. Seu mercado encolhe a cada dia. Quando fecha um sebo famoso, como o São José da Primeiro de Março, o mundo vem abaixo; mas a verdade é que os primeiros a fechar foram aqueles com menor conhecimento dos objetos que vendiam, justamente os que me permitiam encontrar aquelas pequenas pérolas por preços risíveis, aqueles que mal sabiam a diferença entre velho e clássico, e que achavam que capa dura era sinal inequívoco de qualidade. Os poucos que resistem parecem se especializar em nichos mais restritos e com maior margem de lucro, como edições raras. Mas mesmos esses sofrem a concorrência avassaladora da internet. Há uns anos, atrás de um livro autografado por Jorge Amado para dar de presente à minha então namorada, sequer procurei nos poucos sebos daqui; sabia que não o encontraria. Em vez disso, corri para o Mercado Livre.

A Estante Virtual e a própria Amazon são pequenos paliativos para os sebos e, se salvarão alguns, não poderão salvar o mercado que paradoxalmente ajudam a destruir. Mas a internet fez mais mal às livrarias. Um artigo publicado no New York Times lembrou que livrarias estão se tornando pouco mais que showrooms onde você vai olhar os livros que pretende comprar mais barato online. O fenômeno é mais claro nos Estados Unidos; aqui, como a diferença de preços ainda é relativamente pequena, o estrago é um pouco menor — mas é inexorável, ninguém se iluda.

Minha infância foi marcada pelas livrarias Civilização Brasileira, em Salvador. Minha adolescência foi marcada pelas livrarias Civilização Brasileira, em Salvador, e pela Didática de Aracaju — onde eu tinha eternas coleções, sempre renovadas, de promissórias algumas vezes vencidas (o que, curiosamente, nunca os impediu de continuar a me vender fiado). Foi na Didática que li, em pé, todo o “Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída” — um bom livro para se ler aos 12 anos, como eu li. Foi lá que encomendei, um a um, os volumes da “Comédia Humana”. Foi ela que teve a coragem de vender a edição portuguesa de “Os Versículos Satânicos” pouco depois da fatwa de Khomeini. Era lá que, vez em quando, Marivaldo me avisava que um livro que poderia me interessar havia chegado.

A Civilização Brasileira tem outra história. Ela é uma das principais lembranças de infância; cresci com livros que traziam nas guardas o seu selo. Foi numa das Civilizações Brasileiras da Avenida Sete, por exemplo, que meu pai me mostrou que, sabendo procurar, era possível achar livros mais baratos — no caso, os cinco volumes da “História da Literatura Brasileira” de Sylvio Romero, diante de mim enquanto escrevo isto porque adoro a maneira como ele esculhamba Machado de Assis.

Mais tarde, na adolescência, era lá que eu via livros mais refinados e caros que jamais encontraria em Aracaju — livros de fotografias da Bahia antiga, uns tantos livros importados; foi lá que descobri Pierre Verger. Até hoje, a Civilização Brasileira, por provinciana que eventualmente fosse, me lembra essa sofisticação e variedade que me encantavam sempre que eu voltava a Salvador. Foram as Civilização Brasileira do centro da cidade que, ao longo dos anos 80, percorri em busca de livros sobre os Beatles — foi na rua da Ajuda que comprei meu primeiro livro sobre a banda, o de Geoffrey Stokes, e lembro da ansiedade ao carregar aquele volume enorme, embalado em papel celofane vermelho, até a casa de minha avó na Saúde.

Mas então vieram as grandes redes para engolir as pequenas livrarias, aquelas que floresceram enquanto as cidades pertenceram às pessoas. Conglomerados como a Saraiva fizeram com que as livrarias locais perdessem condições de competir. Agregaram outros serviços, ampliaram o escopo de produtos à venda. Numa Saraiva você compra o livro da moda enquanto toma um café superfaturado, e se for um completo idiota — o que pode lhe poupar muitos dissabores na vida, é preciso reconhecer — pode até se imaginar no Café de Flore; mas não acho que, nesse caso, você vá estar interessado nisso.

A Didática não existe mais. Fechou de repente, eu nem morava mais em Aracaju. A Civilização Brasileira, por sua vez, morreu de maneira mais lenta e mais degradante.

Foi um choque quando, há alguns anos, vi que ao menos a loja da Civilização Brasileira do shopping Iguatemi tinha sido remodelada para ficar igual às Sicilianos da vida. Era óbvio que se tratava de uma tentativa de mimetizar-se no inimigo. Mas para mim aquilo era apenas uma mostra de desespero e de maus augúrios para um futuro cada vez mais duvidoso.

Acima de tudo, ela tinha encerrado seus últimos vestígios de identidade própria. Porque o que faz mais falta nas livrarias antigas é isso: sua personalidade. Uma livraria era diferente da outra, e não apenas pela escolha dos livros que oferecia em suas estantes. A partir daquele momento, a Civilização Brasileira era apenas uma Siciliano com estoque mais pobre. E um pedaço da minha infância morria ali.

Claro, nem tudo na vida é preto e branco. Filmes como “Mens@gem Pra Você” encamparam a luta romântica e quixotesca das pequenas livrarias, carpindo a pequena e charmosa livrariazinha do bairro que é engolida pelas grandes redes. Acontece que a resistência de um modo de vida suplantado pelo novo devorador de inocências é agradável aos olhos, mas inegavelmente também tem muito de pieguice boba. Assim como os cinemas de rua, as pequenas livrarias sucumbem porque as pessoas encontram melhor relação custo/benefício em outros lugares. Por mais agradáveis que sejam, por mais simbólicas e mais importantes em termos urbanos que sejam as lojinhas da esquina, a verdade é que elas desaparecem porque alguém faz o que ela faz de maneira mais eficiente.

Esses conglomerados se adaptaram ao novo mundo, e não sei se se pode realmente lamentar esse fato. Mas isso não me tira o direito de chorar as minhas livrarias. Raramente compro alguma obra nos mercados de livro que frequento. Saraivas são lugares de passeio para mim, um olhar as novidades, um café de vez em quando — mas livros, mesmo, só de vez em quando, e só por impulso. E faço isso, em parte, por desagravo ao mundo que elas tiraram de mim.

Resta um consolo, apenas. As redes não estavam sozinhas na cadeia alimentar e a história ainda não havia terminado. A internet viria vindicar as pequenas livrarias, porque Deus é cruel e canalha, mas é justo. E enquanto tomo um café na Kopenhagen quase em frente à Saraiva do shopping, olho para ela com a paciência fria dos sabem o que é o verdadeiro ódio, e um só pensamento na cabeça: “Sua hora há de chegar.”

Os burgueses do porto de Calais

Lendo aqui que na Coreia do Norte fotos de soldados são proibidas.

Ditadura, gritam. Opressão. Queremos liberdade para eles. Como é ruim viver num país assim, onde não se pode tirar uma simples foto. Morte ao gordinho maluco.

E aí lembrei de um pequeno episódio no porto de Calais.

Naquele tempo ainda se usavam máquinas fotográficas. Puxei a minha para tirar umas fotos do lugar; era uma área comum, ao ar livre, eu sequer estava no centro de operações do porto. Então uma lourinha de uniforme vistoso veio correndo até mim.

Eu certamente não percebia que portos são, ao menos em tese, unidades militares. Muito menos que um paraíba com uma câmera na mão pode ser na verdade um espião perigoso a soldo dos soviéticos, homem de artes e talentos saídos diretamente de um livro de John Le Carré. Perigosíssimo, eu. Um paraíba tão insidioso que, em vez de usar câmeras em canetas ou em botões de camisa ou implantadas na íris, tentava dar uma de turista desavisado com uma câmera furreca. Afinal de contas, quem seria tão idiota para tirar fotos de um lugar feio como aquele? Pensando nisso agora, com a serenidade e a clareza que o passar dos anos às vezes nos dão, eu devia me sentir lisonjeado: na verdade, eles me tomaram por muito, muito mais do que eu poderia ser.

Porque o que eu sabia era outra coisa: que fora ali que D’Artagnan embarcara em direção a Londres para encontrar o Duque de Buckingham e frustrar um plano de Richelieu. Fora ali em que ele tinha mostrado com quantos ferros se faz um buraco no bucho de uns pobres guardas e embarcara com destino à grande inimiga de sua pátria. Tudo bem, o lugar onde D’Artagnan mostrou que era o guarda real mais batuta da Lutécia não devia parecer muito com aquilo que eu via; mais de 350 anos haviam se passado. Mas para mim Calais é e sempre será, antes de qualquer coisa, um cenário para D’Artagnan mostrar sua bravura e lealdade à rainha.

Mas a guarda lourinha estava se lixando para o mosqueteiro, Darta quem?

Ela era bonitinha, britanicamente bonitinha. Com aquela simpatia inglesa, me disse que era proibido tirar fotos ali. Bem simpática, a moça, tentando fazer o seu trabalho com o máximo de civilidade possível, acostumada provavelmente a reprimir, todos os dias, centenas de turistas desavisados como eu, tarefa ainda mais doce porque feita na terra dos outros. Simpática, de fato.

Mas eu sou baiano e para mim simpatia é quase amor. Ainda tentei jogar uma conversa qualquer, Hello, my name is John Holmes; mas ali não havia conversa possível. Sorrindo ainda, um sorriso que deve ter se desvanecido em tédio assim que me virou as costas, ela se afastou como quem não entende a cordialidade brasileira. Deve ser o clima, tadinha, o frio e a falta de sol fazem isso com as pessoas.

Tomara que o Google Earth tenha tirado o emprego daquela moça.

***

Foi naquele ano que vi pela primeira vez os “Burgueses de Calais”, de Rodin, nos jardins de Victoria Tower, ali pelos fundos do parlamento londrino. Eu não sou daqueles fãs alucinados de Rodin, mas aquela escultura que evocava justamente um lugar que eu tinha acabado de conhecer ficou na minha cabeça. Imaginei a guardinha inglesa enchendo o saco daqueles pobres burgueses, Sorry, no pictures, sires.

Uns anos depois voltei ao mesmo local, procurando meus companheiros de infortúnio, e os burgueses tinham desaparecido.

Eram os tempos posteriores à crise de 2008, aquela que diziam ser a mais grave de todos os tempos, tempos de desespero e medo do futuro. A ausência dos burgueses foi, para mim, a maior prova de que a crise era mesmo grave, marolinha coisa nenhuma. A crise tinha destruído os burgueses de Calais, eles deviam ter se mudado para Dagenham, deviam estar sobrevivendo do que ainda restava do welfare state inglês, tentando trocar cupons por um pint de Guinness num pub qualquer.

Mas tudo isso eram apenas suposições. Eu tinha uma única certeza: em nenhum momento duvidei que foi aquela guardinha inglesa que tirou os coitados dali.

De lá para cá os burgueses voltaram. Da última vez que andei por lá, os danados estavam no mesmo lugar de antes, com as mesmas cordas no pescoço, em sacrifício não mais a Eduardo III, mas ao deus Mercado. Eu devia saber que nessas crises do capitalismo quem sempre se ferra de verdade são os pobres. E que nesses momentos sempre aparece uma guardinha inglesa para dizer: Sorry, no pictures.