Hitler no Brasil

Uma senhora de grande imaginação chamada Simoni Renée Guerreiro Dias revelou — certamente com grande perigo para sua própria integridade física — um segredo que forças ocultas tentam esconder de nós reles há mais de 70 anos, junto com a existência de ETs congelados nos porões de Washington. Vi agora no National Enquirer History.com que a dita senhora lançou no início do ano um livro em que afirma que Adolf Hitler morreu no Brasil, aos 95 anos.

O History, citando um autor russo chamado Dimitri Boryslev, diz que Stálin estava “convencido de que Hitler havia escapado. Ele suspeitava de um pacto entre o tirano alemão e as potências ocidentais, que teriam poupado sua vida em troca de conhecimentos de tecnologia bélica.” O que é tão óbvio que chega a ser vergonhoso duvidar: todos sabemos que, perto de Hitler, Von Braun era um estudante de terceiro ano primário.

Segundo a tese, foi assim: um submarino veio para a América do Sul deixando os refugiados — como Mengele e Eichmann — em vários países, mais ou menos como uma van parando de ponto em ponto com o sujeito pendurado na porta gritando; “Rio de Janeiro! Puerto Stroessner! Buenos Aires! Aceitamos vale-transporte e tique-refeição!” “Comboio do Holocausto” seria um bom nome para esse submarino da esperança. Ou, se alguém me perdoa a ironia, “Exodus”.

Sem ler o livro, o que posso intuir é que deve ser especificamente aí que entra a tese da senhora Dias. Segundo ela, assim que deu com os costados no Brasil, Hitler se transformou em um tal de Adolf Leipzig e foi morar em Nossa Senhora do Livramento, em Mato Grosso, como prova a foto ao lado.

Eventuais discrepâncias em sua aparência devem ser relevadas. Leve em consideração a passagem do tempo, a diferença de clima: há um mundo de diferença entre a temperatura amena de Obersalzberg e os 89 graus Celsius do inverno mato-grossense, e deve ter sido isso que fez o Führer repensar sua vida, colocar em xeque seus valores e emergir como uma pessoa melhor, provando que nem todo pau que nasce torto morre torto, que todo mundo no fundo é bom, e que a gente deve continuar a acreditar na humanidade.

Porque vir ao Brasil fez bem a Hitler, e a foto prova isso. Antes racista convicto, aqui se atracou a uma negona de responsa que deve ter ensinado a ele coisas que aquela lambisgoia da Eva Braun, com sua rigidez alemã, jamais poderia; e dizia em seu ouvido “ai, Dodô… ai, Dodô…” Seu nome, segundo o Daily Express, era Cutinga; ninguém pode ser amargo se se deita com uma Cutinga.

Antes antitabagista fanático, aqui se rendeu ao cigarrinho — como não sei de quando é a foto, não posso dizer se é Clássicos, Belmont ou Derby; mas o fato de estar na mão esquerda significa que, além de tudo, Hitler se tornou canhoto, o que prova a sua capacidade inacreditável de mistificação. Os trópicos aumentaram suas orelhas e ele provavelmente terminava a noite com uma cachacinha na bodega, não sem antes derramar o pouquinho do santo para abrir os caminhos.

E aí a gente não pode deixar de admitir que Araripe Júnior tinha razão quando falava na tal “obnubilação tropical”:

Agora, responda-se francamente: nessa constante surmenage, quando os corpos, atrelados a uma imaginação superexcitada, a todo o instante gravitam para o leito, há estilo que resista, há correção que se mantenha?

Mas por mais que eu goste da tese da senhora Dias, por mais que a admire pela coragem quase insana, a verdade é que tenho outra teoria. Está mais para “Meninos do Brasil” que para desesperos de fuga num pinga-pinga submarino. Além disso, estou plenamente convencido de que minha tese faz mais sentido na atualidade, e ajuda a explicar o mundo em que vivo.

Todos sabemos que a ciência alemã era uma das mais avançadas do mundo aquele momento. Todos sabemos também que Hitler era chegado numas macumbagens, numas coisas de ocultismo.

Graças a uma farta documentação fotográfica, hoje posso afirmar que, com a ajuda de seus cientistas e de seus magos, descobridores da conexão graálica entre ciência e sobrenatural, Hitler digitalizou completamente a sua mente, tornando-a imortal. Mandou queimarem seu corpo para todos acharem que ele estava morto: aquele churrasquinho de chucrute que os soviéticos encontraram era mesmo de Adolf. Mas a sua essência estava mais viva do que nunca, certamente mais viva que os judeus torrados em Auschwitz.

Hitler não fez isso à toa. Antes de todo mundo, ele percebeu para onde o mundo seguia. Anteviu o mundo hiperconectado do século XXI. Hoje, Hitler está completamente interligado à rede elétrica mundial e à internet, se multiplicando a cada clique numa página do MBL e a cada acendimento de uma lâmpada; e basta olhar em volta de você, basta ver o que as pessoas andam dizendo e pensando para entender que a minha tese este correta: só isso pode explicar o mundo em que vivemos.

Hitler hoje é uma tomada, é milhares de tomadas, talvez milhões, e está mais ativo do que nunca.

Hemingway

Minha primeira experiência com Hemingway foi — vamos usar um eufemismo — inauspiciosa.

Aí pelo meio da adolescência, veio parar nas minhas mãos um livro de capa rosa chamado “Do Outro Lado do Rio, Entre as Árvores”, obra de 1950 que li diligentemente, porque na época eu me impunha terminar tudo o que tinha começado a ler e porque já sabia que Hemingway era um bambambam e eu precisava conhecer o sujeito.

Conforme se viu mais tarde, perdi um tempo que, se não era exatamente precioso, poderia ter sido aproveitado com coisas um pouco melhores — o que não era difícil porque até caminhar a esmo pela cidade seria melhor do que ler aquele livro horrível. “Do Outro Lado do Rio, Entre as Árvores” era tão ruim que me deixou pensando como alguém capaz de escrever aquilo era tão glorificado. A única resposta possível era a de que os outros livros deviam ser tão bons que levavam as pessoas a fazer um esforço sincero, ainda que enorme, para esquecer que Hemingway tinha sido capaz de perpetrar essa bisonhice.

Mas daí talvez tenha vindo, também, uma eterna má vontade em relação ao escritor e aos seus personagens. Ou não, não era bem isso: talvez fosse mais adequado afirmar que eu encontrava mais facilmente uma característica peculiar aos seus protagonistas, um certo modo de ver a vida e o mundo que fazia de seus personagens uns grandes chorões, beirando a chatice. Um a um, pobre ou rico, jovem ou velho, choram todos os personagens de Hemingway: lamentam a inocência perdida, o amor perdido, a juventude perdida, o ideal perdido — ou, no caso de Jake Barnes, algo ainda pior, que ele deixou nos campos da Bélgica.

Alguns anos depois de ter conseguido terminar aquilo que fez John dos Passos se perguntar como um homem em sã consciência conseguia colocar tanto lixo no papel, comprei “O Sol Também Se Levanta”, em busca daquela resposta que eu tinha adivinhado uns tantos anos atrás. Não era possível que Hemingway fosse tão ruim como eu achava; ele tinha que ter algo bom, e “O Sol Também Se Levanta”, afinal, era o grande livro da tal geração perdida.

Talvez fosse a tradução. Talvez fossem os dias. Mas aquele livro não me empolgava. Ainda assim, li até a cena de uma viagem de trem que empacava na descrição de uma barata no chão. Só isso, mais nada. Uma barata. Não havia razão para a barata no piso do trem, mas ela estava ali, alheia a Jack Barnes, alheia a Hemingway e, principalmente, alheia a mim.

Era um detalhe bobo, curto, mas que me parecia tão sem sentido que me fez sentir enganado. Algo ali não combinava: de um lado um estilo seco, conciso e contido; do outro, um elemento absolutamente supérfluo que não acrescentava nada à narrativa. A barata me fez imaginar se Hemingway não estava sendo pago por número de toques.

Mais uma vez deixei o coitado do Hem de lado. E por mais alguns anos o velho cachaceiro fanfarrão continuou ali, me incomodando, me chamando silenciosamente de idiota, de fracote.

Até que li, finalmente, “O Velho e o Mar”, livro que nego lê na adolescência mas que só encarei depois de bem avançados os meus anos. E o que li ali me fez finalmente admitir que Hemingway era — ou melhor, podia ser — um grande escritor.

Já vi muita gente esculhambar a história do velho Santiago. Coitados. Devem ser os mesmos que têm certeza de que o velho pescador azarado morre no final, porque não entenderam nada. Não podem compreender que não há símbolo algum, nenhuma intenção oculta, que Santiago apenas dorme, porque amanhã vai voltar ao mar e não vai trazer nada, e é esse estoicismo que lhe dá grandeza. Santiago é o único protagonista de Hemingway que não chora pelo que perdeu, porque sabe que não adianta.

Para mim, “O Velho e o Mar” é uma novela que beira a perfeição, como o Quincas de Jorge Amado. Tudo de bom que a crítica dizia de Hemingway estava contido ali, naquele livrinho curto, tão menor que “Por Quem os Sinos Dobram”.

Mas “O Sol Também se Levanta” continuava ali, me incomodando. Eu devia ter deixado passar alguma coisa. Então, com a esperança renovada pelo velho Santiago, resolvi comprar a versão original em inglês. Para não ter mais a desculpa da tradução, e por desconfiar que se o estilo era fundamental, o ritmo dado pela língua do bardo poderia fazer alguma diferença.

Pensando bem, mais que desconfiança, o sentimento em questão era esperança. E esperança é bicho frágil sempre pronto a ser despedaçado pela realidade dura e crua, é bicho que morre cedo.

E aí admiti finalmente que estava certo desde o início: Hemingway era um mau romancista e tinha problemas com textos longos. O problema é que The Sun Also Rises poderia perder um terço de seu tamanho em descrições desnecessárias. Hemingway tinha tudo resolvido de maneira perfeita, mas precisava alongar as coisas para, em vez de uma novela, escrever um romance para o qual ele simplesmente não tinha fôlego. Não é um julgamento ofensivo, pelo contrário: sua capacidade de síntese o levava, instintivamente, a criar narrativas fortes e enxutas que ele, mais tarde, julgava ser necessário preencher com superfluidades.

É a razão pela qual “O Velho e o Mar” é um livro perfeito. Tem o tempo certo, as palavras necessárias; acima de tudo, tem o personagem masculino que Hemingway tentou criar toda a vida, e que só conseguiria ali.

Descobri agora que Harold Bloom o vê exatamente como eu: um romancista menor com um grande estilo. Mas acho que posso ser um pouco mais generoso do que Bloom, porque não conheço literatura tão bem quanto ele e porque nosso Senhor Jesus Cristo encheu meu coração de amor e doçura quando me fez.

Porque o gênio de Hemingway não é o romance, nunca foi. Foi apenas quando comecei a ler seus contos que pude entender completamente o seu brilho. Contos como The Killers, ou Up in Michigan, ou The Short Happy Life of Francis Macomber ou Hills Like White Elephants, são pequenas obras primas. Ao contrário do romancista enchedor de linguiça, Hemingway-o-contista entrega peças fortes, vívidas, cheias de significado em sua economia. Aquelas emoções básicas, que ele tenta enfeitar e alongar em seus romances, aqui são apresentadas em seu estado natural. Hemingway parece ter tentado, durante toda a sua vida, ter feito essas pobres emoções durarem mais do que aguentariam. O resultado são romances sempre defeituosos que, com uma dose da humildade que ele nunca teve, poderiam ser contos ou novelas brilhantes. O problema do velho Hem é que ele nunca conseguiu entender isso.