No sodalício dos imortais

Sou pontual ao chegar ao auditório, enfiado na minha roupa multi-uso — aquela que envergo em missa de sétimo dia, aniversário de parente distante, exame de fezes e casamento de pobre onde ternos parecem esnobes demais.

É a posse de um amigo na Academia.

Uma das tantas coisas que aprendi com ele foi a não levar a sério essas coisas. Fazem um bem danado à vaidade, é verdade, mas não são muito mais que isso. Graças ao que aprendi com o exemplo do sujeito olho para tudo com uma certa ironia, porque não pode haver nada mais engraçado que um bando de velhinhos falando em imortalidade.

O Estado inteiro estava lá. Só de ex-governadores contei quatro, incluindo um dos acadêmicos. Ministro, prefeito, deputados, desembargadores, um bocado de ex-professores meus. Se alguém ainda tinha alguma dúvida de que academias têm pouco ou nada a ver com letras e muito a ver com poder, basta ir a uma dessas cerimônias. É isso que faz delas algo interessante.

A verdade é que se fosse só um bando de escritores, uma academia não teria interesse nenhum. Escritores são chatos, a começar por sua mania de dizer as coisas para quem não precisa ouvi-las e a pose que costumam adotar para disfarçar sua profunda incompetência para viver e os sapos esquisitos que são obrigados a engolir dia após dia. Escritores são profundamente desinteressantes, são como adolescentes espinhentos que não perceberam ainda que as únicas pessoas que gostam dos seus wisecracks são outros adolescentes espinhentos que gostam de wisecracks.

Mas uma Academia de Letras é outra coisa. Diz respeito à estrutura de poder de um lugar. Diz respeito a política, e é por isso que o governador não está na posse do meu amigo, porque os dois são inimigos. É algo muito, muito mais interessante que um bando de bobos discutindo Balzac. Academias de letras, se fossem mesmo só de letras, seriam organismos mortos e absolutamente irrelevantes. Mas falam de política, falam de futuro e da maneira como ele é moldado, e é isso que lhes dá vida. Aqueles que reclamam da política na Academia não a entendem e não a merecem.

Fazia muito tempo que eu não via tantos políticos, advogados, juízes e promotores juntos em um lugar só. Não que eu seja um sujeito desconfiado, mas por via das dúvidas coloco a mão sobre o bolso onde está minha carteira. Prudência nunca fez mal a ninguém.

A cerimônia começa. Os velhinhos entram em fila indiana. Imagino que se somarmos a idade de cada um deles — e são muitos — o número final deve ser muito maior que a idade da primeira prensa de Gutemberg, talvez remetam ao tempo das Acta Diurna. Há alguns acadêmicos semi-novos, é verdade, mas são minoria; a imortalidade parece só admitir, curiosamente, aqueles que estão às portas da morte.

Há algo de muito ruim em mim, percebo agora. O sujeito que está tomando posse costumava me chamar de “deletério”, aparentemente sem razão; mas agora me sinto mesmo deletério, porque os pensamentos que passam pela minha cabeça só podem ser chamados por esse nome. Eu não tenho controle sobre eles. Não consigo evitar o seu sadismo. Enquanto vejo os velhinhos atravessando devagar o auditório para chegar à mesa, fico imaginando o que aconteceria se um deles — digamos que aquele ali, o encolhidinho e encurvado apoiado em uma bengala com castão de ouro — tivesse um piripaque e caísse durinho no chão. A mente prega umas peças esquisitas na gente. Eu devo ser uma pessoa muito má. Mas não morre ninguém, não agora. Meu amigo não merece isso.

Eles usam uma capinha de seda preta, chique no último. Só que eu não sei o nome do bagulho, e pergunto ao pessoal em volta de mim. Ninguém sabe, e minha ignorância se sente acompanhada. À minha volta há editores, jornalistas e até gente normal, mas ninguém sabe que coisa esquisita é aquela. Então alguém arrisca: aquilo é um solidéu.

Epa. Se não me engano solidéu é quipá de quem tem o pinto inteiro e mesmo assim não usa, mas se estão dizendo deve ser, mesmo. Solidéu. Vou me acostumar a esse nome.

Eles se referem à Academia como sodalício. Sodalício é um nome bonito, muito bonito; lembra um inglês falando sod off, mas uma expressão saxônica dessas me soaria profundamente inadequada neste momento. Sodalício significa “reunião de pessoas que vivem em comum”; me parece apenas um nome complicado, usado apenas porque esse pessoal chegado numa imortalidade gosta de falar difícil. É sinônimo de contubérnio; e então percebo que é melhor mesmo falar sodalício, porque a alternativa é muito pior.

Meu amigo faz o seu discurso. O filho da puta está emocionado. Eu não sabia que ele iria ficar tão movido por isso, mas não posso dizer que fico muito surpreso quando, em muitos momentos, ele tem que parar, com a voz embargada e os olhos marejados. Se não levo a sério a tal imortalidade porque tenho a impressão de que todo mundo ali, assim como eu, vai bater as botas um dia, levo a alegria e a emoção do sujeito. Isso me deixa feliz.

Ele começa se justificando, porque aparentemente é esquisito que um jornalista sem livros publicados seja alçado à imortalidade. Seu discurso é afável, sem palavras difíceis como o tal contubérnio e bastante firme na defesa da liberdade de imprensa. Ele fala ainda mais uma vez sobre a sua estranha condição, como homem educado que é. Mas eu não sou, e poderia dizer que sou fã do que ele escreve e não leria dois parágrafos da maioria dos acadêmicos sentados ali. Melhor milhares de bons artigos de jornal nunca publicados em livro do que um só livro ruim — pior ainda se for de poesia.

Depois é a vez de o ministro fazer o seu discurso. Foi ele que indicou o meu amigo e é ele quem faz o discurso de recepção. O sujeito anda com o moral alto, principalmente depois que acabou com as esperanças de alguns deputados do mesmo PT a que foi filiado um dia e que o indicou ao cargo que ocupa. Eu esperaria dele um discurso meio embolorado, porque a única coisa que espero de bacharéis são mesóclises, mas até que o jurista é bem leve.

E então o presidente da Academia avisa que podem colocar o capelo no novo imortal.

Capelo, merda. O grupo onde estou se agita. Capelo. Era esse o nome que todos nós, ignorantíssimos, desconhecíamos. Definitivamente, não merecemos mesmo uma glória como essa. E já que nossas esperanças de imortalidade foram para as picas porque não fazíamos idéia do que era um capelo (talvez não tão ignorantes: desconfio que uma certa jornalista perto de mim leu, em algum momento da vida, “Fernão Capelo Gaivota”), nos resta apenas esperar o coquetel que vem a seguir. Nós nos contentamos com muito pouco.

Estamos chegando ao fim e eles cantam o Hino Nacional. Olho em volta e vejo o pessoal com a mão no peito. Ah, não. Ninguém vai me pegar nessa. Isso é só um truque para me fazer tirar a mão do bolso onde está a minha carteira. O Hino Nacional que se foda, eu é que não boto a mão no peito. Eu tenho uma perfeita noção de onde estou. Minha mão vai continuar protegendo meu bolso.

A cerimônia se encerra. O auditório se levanta. E o pessoal pode ser importante, alguns deles podem ser imortais, mas não é essa característica sobre-humana que vai fazê-los rejeitar um 0800. O bom de ter tantos velhinhos em um sodalício só é que as chances de uma nova boca livre nos próximos meses são sempre grandes. Eles devem esperar — eu esperaria, pelo menos — que um dos outros velhinhos bata as botas para indicar outro imortal e garantir outro coquetel desses.

Mas talvez não, talvez eu esteja sendo injusto. A idade provecta deve tornar aqueles imortais mais conscientes de sua própria mortalidade. E a morte de qualquer deles deve servir para lembrar que a próxima pode ser a sua. Com essas coisas não se brinca. E embora eu não tenha dúvidas de que cada um prefira rezar o cadáver do outro, para que não lhe rezem o seu, ao mesmo tempo compreendo que deva haver entre eles um profundo senso de solidariedade.

É o novel acadêmico quem paga as despesas do coquetel; e ele pelo visto valoriza sua novel imortalidade, porque o que passa a ser servido é Grant’s. Certo, não é um Blue Label; mas em seu lugar eu teria comprado Teacher’s, no máximo, e o pessoal deveria se dar por feliz por não se ver obrigado a castigar um Old Eight.

De longe vejo uma antiga professora minha. Antiga nos dois sentidos. A mulher está bonita, e lembro dos tempos em que ela me dava carona para casa e um ou outro desgraçado insinuava que eu estava pegando a macróbia (mentira vil e soez, coisa de advogados. Eu só dei em cima de uma professora, e não foi essa. Só desci a esse ponto para evitar ser reprovado por faltar à segunda prova. Não adiantou, mas a infeliz também não ganhou doce. Aposto que ela precisava mais do que eu. E tudo o que aprendi é que devia haver uma maneira mais fácil de cursar direito). Como eu disse ela está bonita; mas tão esticada, tão esticada que ainda bem que tem motorista particular, porque se tivesse que chamar um táxi, quando levantasse o braço a perna levantaria também.

E mesmo gostando tanto de letras, mesmo gostando tanto de uísque, o coquetel não parece atraente o suficiente a este gigolô do beletrismo, e vou embora depois de cumprimentar alguns amigos e beber uma coca-cola. Porque aqui quase não há bundas, e as que há já tiveram, se tiveram, o seu tempo de glória. E de que valem todos os livros e todas as honras e toda a imortalidade deste mundo se não há uma bunda grande, uma bunda redonda pontilhada de celulite sobre a qual repousar a perna enquanto nos aventuramos, digamos, nas brenhas de “O Ser e o Nada”? Meu amor aos livros, de resto muito pequeno, não consegue superar coisas tão comezinhas.

Mas ir a uma posse de acadêmico, ao ingresso de um grande amigo na Grande Planície da Imortalidade, me deixou achando tudo isso muito bonitinho. Me deu vontade de ser imortal também. Não sei se os daqui, como os da ABL, têm direito a mausoléu chique; mas mesmo que não tenham, mesmo que não tenham chá das cinco eu gostaria de ser acadêmico. Eu ainda tenho uns contos escritos quando tinha uns 20 anos; vou dar um jeito de publicar um livro com aquelas coisas ruins e me preparar para adentrar a glória eterna.

Se eu conseguir fazer com que não leiam este texto, podem apostar que ainda vão ouvir falar muito de mim nos séculos que virão.

A sorte de um amor tranqüilo

Notting Hill é o típico filme de que as pessoas têm vergonha de gostar — eu incluído.

Muita gente o compara a Pretty Woman, talvez por serem ambos comédias românticas, talvez por serem estrelados por Julia Roberts, ou porque os dois falam de uma história de amor entre pessoas sem nada em comum. Mas são filmes muito diferentes entre si.

Talvez a diferença esteja nos dois protagonistas masculinos. O personagem de Richard Gere é o sujeito que todo mundo gostaria de ser: bonito, rico, absolutamente seguro de si e do que representa na cadeia alimentar. É o sujeito acrofóbico que fica na cobertura porque não aceita menos que o melhor. E é homem o suficiente para casar com uma prostituta — embora isso só seja possível porque ela tem bons sentimentos, sente a verdade na ópera e, no banheiro, usa fio dental em vez de fumar crack. Ela pode ser puta, mas sua alma é a de uma dama.

O problema é que o único jeito de ser Richard Gere é nascer Richard Gere.

Mas em Notting Hill o personagem de Hugh Grant é exatamente o contrário. Um sujeito normal, com uns tantos fracassos na vida; inseguro, mas tranqüilo em relação à vida que leva; e extremamente capaz de amar. Ao contrário de Gere, o personagem de Grant não perdeu sua humanidade e sua fragilidade. Qualquer pessoa honesta se identificaria mais facilmente com Grant que com Gere. Mas além de tudo isso há um pequeno detalhe, que faz toda a diferença aí: William Thacker é também um vencedor, a seu modo. Não é inseguro demais; é confiante o suficiente para ir atrás de uma mulher que qualquer um julgaria impossível. É esse equilíbrio que faz dele um modelo melhor: ele é mais acessível, sem deixar de ser invejável. Lá no fundo você sente que não pode ser Richard Gere; mas pode ser Hugh Grant — e nem precisa gaguejar.

Pretty Woman não se eleva acima do seu amontoado de clichês. Notting Hill é uma das melhores comédias românticas feitas em muito, muito tempo. É, para começar, um dos filmes menos sexuais dos últimos anos. William Thacker e Anna Scott vão para a cama; mas é um não-evento, e na manhã seguinte não se vê nenhum deles cantando loas ao desempenho do outro. Sexo, aí, é entendido como apenas parte do amor, algo belo mas que não precisa ser supervalorizado, e talvez seja assim que deve ser.

Talvez o segredo de Notting Hill esteja no final.

Eu teria terminado o filme na cena da entrevista coletiva. Terminaria nos dois sorrisos, o de Julia Roberts e o de Hugh Grant. É assim que se encerram os filmes hoje em dia. É algo semi-aberto, que oferece apenas a promessa de uma possibilidade de futuro. As pessoas acreditam cada vez menos em finais felizes. Nos tornamos céticos e carregamos nossas cicatrizes com uma certa vergonha e muito medo de abri-las novamente.

É assim, por exemplo, que Pretty Woman termina. Em uma cena clichê e exagerada, mas adequada ao que o filme veio construindo, com o personagem de Gere dando uma de príncipe e vencendo suas limitações pelo amor de Julia Roberts. Ninguém sabe o que vai ser deles; mas ninguém se importa, porque naquele momento o amor se realizou completamente, e nestes tempos em que isso nunca acontece, em que as pessoas têm medo de dizer “eu te amo”, talvez não seja sábio esperar que sejam felizes para sempre.

Mas Notting Hill não tem vergonha de ser piegas, de se assumir romântico até as últimas consequências e de espalhar, sem medo de parecer bobo, os seus desejos. Talvez seja essa a grande força do filme. E por isso nós vemos o casamento de Anna e William, porque quando duas pessoas se amam sorrisos de parte a parte não bastam mais, elas querem ficar juntas; e então vem a belíssima cena final, com os dois no banco de um parque particular, ele lendo um livro, ela grávida, os dois se dando as mãos.

O que vemos ali, por alguns poucos segundos, é o que Cazuza chamou de a sorte de um amor tranqüilo. E por mais que as pessoas se digam modernas, por mais que elas assumam suas individualidades endurecidas e respeitem o espaço do outro, ainda é isso, afinal, que todos querem.

O homem da cabeça de repolho

A primeira vez que ouvi falar de verdade a respeito de Serge Gainsbourg foi em 1998, em um documentário qualquer exibido pelo Multishow.

Como todo mundo, eu conhecia Gainsbourg desde sempre, mesmo sem saber: através de Je T’Aime, Moi Non Plus, a “melô do motel”. E como todo mundo, eu tinha um desprezo enorme pelo sujeito, porque ele, claro, era apenas um palhaço brega, autor de uma piada que deu certo.

Foi aquele documentário, apresentando uma perspectiva diferente, mais abrangente e principalmente mais informada, que me fez ver que as coisas não eram bem assim. Na verdade, Gainsbourg era brilhante e eu não era tão inteligente quanto pensava.

Agora leio “Um Punhado de Gitanes“, de Sylvie Simmons, e minha opinião muda novamente. Gainsbourg era um gênio e eu, por não reconhecer isso com a presteza necesssária, sou um idiota. Simples assim.

Não foi à toa que Gainsbourg se tornou ídolo na França. Quase uma instituição — meio torta, é verdade, mas ainda assim uma instituição. Talvez um pouco disso seja pelas mulheres que teve: Brigitte Bardot, naquela época, era um acréscimo e tanto ao currículo de qualquer um. Mas seria diminuir Gainsbourg creditar sua fama a isso: ele conseguiu mais, e fez excelente música com ela. Em Comic Strip, por exemplo, o que o sujeito faz é fantástico: coloca BB para fazer os sons das onomatopéias dos quadrinhos. É brilhante, absolutamente brilhante.

Depois veio Jane Birkin, a mulher que praticamente se tornou a outra metade de Gainsbourg.

É difícil saber qual o maior talento de Gainsbourg. Talvez seja o de letrista. A delicadeza de letras como a de Comment Te Dire Adieu (Mon coeur de silex vite prend feu / Ton coeur de pyrex resiste au feu (…) Sous aucun prétexte je ne veux / Devant toi surexposer mes yeux / Derrière un Kleenex je saurais mieux) mostram que o sujeito tinha um talento descomunal para jogos de palavras e para o inusitado — rimar Silex, Pirex e Kleenex, e ainda aparecer com um prétexte e um surexposer belamente desconstruídos, não é para todo mundo. Mas pouca gente no Brasil sabe disso. É essa a nossa triste sina: a anglofilia idiota e compulsória pós-1964 impede que uma letra instigante como a de Je T’Aime, Moi Non Plus (que significa algo como “Eu te amo, eu também não”) seja compreendida, e então um conjunto brilhante (acordes repetitivos, interpretação com conotação fortemente sexual, letra cheia de duplo sentido) é relegado a isso, a “música de motel”.

Gainsbourg tinha uma qualidade rara: para ele, cada canção era uma canção. É o que explica sua trajetória errática, do jazz ao reggae, passando por virtualmente todos os gêneros da música popular. Algo em Gainsbourg fazia com que ele estivesse sempre atrás do que havia de mais atual na música. E não era só isso: ele tinha também uma concepção própria da arte e da música, mais elaborada do que os escândalos que protagonizava poderiam fazer pensar.

Mas foi durante os anos 70 que Gainsbourg se tornou realmente grande. Ao talento natural do compositor ele acrescentou uma maturidade como artista que, de longe, o transformou no maior músico francês, e uma seqüência de grandes discos apareceu a partir daí.

O primeiro é o Histoire de Melody Nelson, de 1971, um álbum conceitual que conta a história da paixão de um francês de meia idade por uma garota inglesa, e que, como a história semelhante contada por Nabokov, só pode acabar em tragédia. A última faixa, Cargo Culte, é uma das mais tragicômicas de um sujeito qeu se especializou nisso.

Depois vem Vu de L’Extérieur. Se alguém ficou encantado com o “Secreções, Excreções e Desatinos” de Rubem Fonseca deveria escutar esse disco, uma ode à escatologia em canções como Des Vents Des Pets Des Poums e na belíssima Sensuelle et Sans Suite (Une histoire sensuelle et sans suite / Ça fait crac ça fait pschtt). Quando lembram do talento de Cazuza ao encaixar “desminlingüido” numa canção, eu penso em como Gainsbourg conseguiu fazer poesia com os sons que saem do traseiro de alguém.

E L’Homme À Tête de Chou, para muita gente um de seus melhores discos.

Aux Armes Et Caetera, de 1979, é, acima de tudo, um grande disco de reggae. Não podia ser diferente, com Sly Dunbar e Robbie Shakespeare na cozinha, e Rita Marley nos backing vocals como parte do The I Three. A faixa-título causou escândalo na França por ser uma versão reggae da Marselhesa, as outras deixaram Bob Marley puto ao descobrir que sua mulher tinha cantado letras eróticas sem saber, e o disco consolidou a imagem de Gainsbourg para sempre.

“Um Punhado de Gitanes”, no entanto, é parcial. Embora se pretenda apenas um apanhado geral sobre a vida e a obra de Gainsbourg, e tenha bastante sucesso nisso, falha em deixar mais claro que, a partir dos anos 80, a trajetória de Gainsbourg foi de decadência absoluta, tanto pessoal quanto musical. O Serge Gainsbourg que aparecia nos programas de entrevistas, aquela tradição francesa insuportável, era apenas uma sombra de um artista que havia sido realmente grande. Seus discos passaram a ser ruins, medíocres; sua vida se tornou ainda mais caótica. Seus vocais falados se tornaram caricaturas. O homem que morreu em 1991, um mês antes de completar 63 anos, estava doente e quase cego, com apenas um terço de seu fígado. Mas aquele era o homem que, para tanta gente, ofereceu mais contribuições à língua francesa no século passado. E, mesmo decadente, era o sujeito que em um daqueles tais programas disse — e repetiu em outra lingua, para que não ficasse dúvida — em alto e bom som para uma Whitney Houston escandalizada: “Eu quero foder você.”

Meus ídolos são velhos. São os mesmos há anos. É um alívio encontrar, depois de tanto tempo, um sujeito que foi adolescente até os 63 anos, que manteve, para o bem e para o mal, a pureza idiota e caótica de uma puberdade que não queria passar e que se manifestava não apenas em Gitanes sucessivos, mas em música de qualidade e poesia inteligente. Meu panteão de heróis, de repente, se renova.

carreirasolo.org

O Mauro Amaral está fazendo uma pesquisa para saber quem, afinal, são os leitores do carrreirasolo.org.

Eu já disse aqui várias vezes, e continuo repetindo: o carreirasolo é uma das mais interessantes iniciativas da blogoseira brasileira, pelo foco e pela capacidade de formação de uma comunidade de profissionais que têm, em comum, o trabalho criativo e a dedicação, parcial ou integral, ao freelance.

Para participar, basta clicar no banner. Não custa nada e vale a pena.

Bia

Quando o Brigatti me ligou avisando que tinha uma má notícia para dar, eu conseguia imaginar qualquer coisa — menos que o Bia tinha morrido. Não hoje.

Eu já tinha preparado um post pra ele. O filho da mãe estaria completando 35 anos hoje, e eu ia debochar da sua idade provecta. Eu sou um ano mais novo, seria sempre, então eu podia fazer isso. Bia sempre seria mais velho do que eu.

O Brigatti me acordou há alguns minutos mas não contou detalhes, estava assustado demais, e eu entendo. Parece que o Bia, quando saía de um bar no fim da madrugada, bateu o carro na traseira um caminhão que saía para entregar o Jornal de Limeira em Americana. Se foi isso mesmo, eu tenho mais é que xingar aquele filho da mãe, que usava ainda aquele Uno 88 a álcool. Batido. Agora é esperar por mais notícias.

Eu ainda não consegui entender o que aconteceu. Tá tudo muito em cima, e nessas horas a gente fica zonzo, e não dá tempo sequer de sentir saudades.

O pior em tudo isso é que eu não vou mais comer a Valéria, Bia.

Mais notícias no Donizetti, no Bruno, na Carol, no Idelber, na Viva, no Marcos, no Edu, na Mônica, no Guto, na Thania.

A Criação da Xoxota

Sete bons homens de fino saber
Criaram a xoxota, como pode se ver:
Chegando na frente, veio um açougueiro
Com faca afiada deu talho certeiro
Um bom marceneiro, com dedicação
Fez furo no centro com malho e formão
Em terceiro o alfaiate, capaz e moderno
Forrou com veludo o lado interno
Um bom caçador, chegando na hora
Forrou com raposa a parte de fora
Em quinto chegou sagaz pescador
Esfregando um peixe, deu-lhe odor
Em sexto, o bom padre da igreja daqui
Benzeu-a dizendo: “É só pra xixi!”
Por fim o marujo, zarolho e perneta
Chupou-a, fodeu-a e a chamou de boceta

(Por favor, quem quer que tenha escrito essa pequena maravilha poderia se identificar?)

(Merda, lá se foi meu BLOGPRACUMÊMULÊ.)

Deus, fumante de havanas

A Brigada Humphrey Bogart acaba de decidir, em assembléia democrática da qual só participou o seu presidente, o seu hino oficial.

O hino não poderia ter sido feito por outra pessoa que não Serge Gainsbourg. Ele morreu em 1991, depois de uma vida de devoção à música, ao escândalo, à bebida e a mulheres como Brigitte Bardot e Jane Birkin.

E, claro, aos Gitanes.

Foram os Gitanes que o mataram em um ataque cardíaco, aos 63 anos, tendo apenas um terço do fígado — embora isso tenha sido culpa do álcool, ao qual ele também se manteve fiel até o fim. Ainda mais que a birita, foram os Gitanes que fizeram parte indissociável da sua imagem de gênio que seria maldito, se não fosse tão popular.

Gainsbourg se torna um ídolo ainda maior quando lembramos que aqueles cigarros — aos quais ele se referia no feminino, como um amante consciencioso — são mata-ratos muito piores que Derby. Eu, que sempre fumei muito, fiquei um ano inteiro com um maço de Gitanes na gaveta.

Um dia, quando a Brigada Humphrey Bogart finalmente erigir sua estátua, vai imortalizá-lo montando uma loura sexy, cabelos longos à guisa de rédeas, ajoelhada com os dois braços levantados, porque Serge Gainsbourg foi um herói que morreu em batalha. A mão que segura os cabelos da loura segura também um Gitane, com aquele jeito francês que tenta traduzir em gestos o spleen baudelaireano; a outra erguerá bem alto uma garrafa, em celebração à boa vida. No pedestal, a letra brilhante de Je T’Aime, Moi Non Plus.

Por isso o nosso hino é uma canção de Gainsbourg cantada em dueto com Catherine Deneuve, e que eleva o tabaco e aquele alcalóide chamado nicotina a uma condição quase divina.

Dieu fumeur de havanes

Dieu est un fumeur de havanes
Je vois ses nuages gris
Je sais qu’il fûme même la nuit
Comme moi, ma chérie

Tu n’es qu’un fumeur de gitanes
Je vois tes volutes bleues
Me faire parfois venir les larmes aux yeux
Tu es mon maître après Dieu

Dieu est un fumeur de havanes
C’est lui-même qui m’a dit
Que la fumée envoie au paradis
Je le sais, ma chérie

Tu n’es qu’un fumeur de gitanes
Sans elles tu es malheureux
Au clair de la lune ouvre tes yeux
Pour l’amour de Dieu

Dieu est un fumeur de havanes
Tout près de toi loin de lui
J’aimerais te garder toute ma vie
Comprends-moi, ma chérie

Tu n’es qu’un fumeur de gitanes
Et la dernière je veux
La voir briller au fond des mes yeux
Aime-moi, nom de Dieu

Dieu est un fumeur de havanes
Tout près de toi loin de lui
J’aimerais te garder toute ma vie
Comprends-moi, ma chérie

Tu n’es qu’un fumeur de gitanes
Et la dernière je veux
La voir briller au fond des mes yeux
Aime-moi, nom de Dieu

Faustino

Por Cipy Lopes

Final dos anos 70. Salvador, como outras grandes capitais brasileiras, foi invadida por grafites. Expressão de rebeldia num momento de grande mobilização na cena política do país, dos gritos que precederam ao ‘Diretas Já’, grafites como ‘Faustino’, ‘Baldeação’, ‘Mancha’ e ‘Madame Min’ alegravam a cena urbana da cidade da Bahia. Nas manhãs, quando eu saía para o trabalho (morava na Graça e trabalhava no Caminho das Árvores – trajeto relativamente longo) levava a expectativa de ver as frases engraçadas, inteligentes, carregadas de teor político-social, escritas sempre na madrugada em muros estrategicamente escolhidos. Mas o meu grafite preferido era o Faustino.

Nascido em 1979, Faustino foi o pioneiro e, pra mim, o mais expressivo personagem que o spray revelou nos muros brancos da velha cidade. Trazia um humor sutil e bulia com as pessoas com suas tiradas jocosas. Simpático, era totalmente integrado à nossa urbanidade, e nunca ficava despercebido, nem mesmo ao mais desatento, distraído e alheio caminhante ou passageiro das avenidas daqui.

Faustino cheira o fio dental é uma das muitas frases que li por aí e que guardo na ‘gaveta’ como testemunho de um tempo difícil em que manifestações anônimas – e proibidas – me contentavam. Em qualquer lugar, Faustino sempre era motivo de boas conversas e ótimas risadas. Mesa de bar, trabalho, faculdade, nada escapava.

Uns tantos reclamavam muito da ‘sujeira’ nos muros. Pra outros, isso de ‘sujeira’ passava ao largo. ‘A Tarde’ – o maior jornal local – era uma voz reclamona. Faustino é assinante d’A Tarde foi uma reação de pronto às matérias publicadas sobre a ‘sujeira’ na cidade. E o pessoal do jornal gostou da brincadeira.

Filho da crise, Faustino faz piquenique no motel, vendeu o ouro do dente e carrega uma calculadora na capanga. E ele quitou o carnê do bloco. Já podia receber o kit que fazia a alegria dos foliões da classe média: mortalha, chapéu e mamãe-sacode. Nesta época os blocos de Carnaval e os promotores de espetáculos colavam cartazes pela cidade, muitos deles em cima das frases que o imortalizaram, pelo menos pra mim.

Cafona-nostálgico-saudosista, Faustino usa calça Topeka, lava a roupa com Rinso e usa escovinha pata-pata. Faz curso Madureza e tem um gosto musical pra lá de especial: aprecia o Trio Yrakitan e ouve Julio Iglesias. Ah, ele também canta no coral da empresa.

Faustino tem um terreno na Ilha (Itaparica). E status! Este era um dos sonhos de consumo da classe média soteropolitana. Outro sonho realizado foi quando ele tirou um Chevette Jeans no consórcio. O modelo escolhido atesta a sua cafonice, e no consórcio, a alternativa da hora. Cafonice também foi possuir uma pasta 007, inicialmente símbolo de executivos bem sucedidos e que à época era usada por contínuos nas suas caminhadas diárias pelas agências bancárias do Comércio, o nosso centro financeiro.

Interessante é que todos comentavam sobre Faustino, mas ninguém sabia quem era o seu criador, até que os jornais ‘Correio da Bahia’ e ‘A Tarde’, em março e abril de 1984, respectivamente, lhes dedicaram uma página inteira cada um. E Faustino teve, aos 4 anos, a identidade paterna revelada: Miguel Cordeiro, economista, fã do rock do ‘Camisa de Vênus’, então com 28 anos. Confesso que esta revelação me foi uma espécie de semi-alegria. O fato de não saber quem fazia aqueles grafites trazia uma sensação diferente.

Miguel Cordeiro fazia desenhos também, e os apresentava na galeria aberta que eram os muros das Av.s Manoel Dias da Silva e Paulo VI, na Pituba; o final da Oito de Dezembro, na Graça; Marquês de Caravelas e Afonso Celso na Barra, para lembrar alguns. Sim, geograficamente a história de Faustino e a arte plástica de Miguel foram expostas entre a Barra e o Caminho das Árvores.

E taí o Faustino.

Bons tempos aqueles em que se saía de casa e se encontrava um bom humor; uma graça poética dessemelhante pelas ruas, num diálogo charmoso onde o sorriso discreto, ou não, sempre brotava.

Não ouvi mais falar em Faustino, como também no seu pai. Ele, o cafona simpático, vive na minha lembrança e deve viver também na lembrança dos apreciadores da arte que tinham a Soterópolis de então, e que levam a Bahia a sério.

Cine Rio Branco

Passei a adolescência em Aracaju e, numa cidade ainda sem shopping centers, o centro da cidade era, realmente, o centro da cidade.

O Cine Rio Branco ficava exatamente ali. Até 2002 era o cinema mais antigo de todo o mundo em funcionamento contínuo. Era a única coisa de classe mundial que Aracaju tinha, a única coisa realmente singular que aracajuanos poderiam se orgulhar de ter.

Como todos os moradores de Estados atrasados pobres e cidades pequenas, aracajuanos têm auto-estima baixa e são muito suscetíveis à opinião dos outros. Se ofendem quando alguém não acha que sua cidade é a tradução perfeita da imagem que escolheram (no caso de Aracaju, uma cidade calma, tranqüila e bem organizada de povo acolhedor — e não, eu não copiei isso de um folder turístico). Mas eles simplesmente não sabiam o que tinham nas mãos.

Certo, havia muito tempo que os intelectuais da cidade gritavam em mesas de bar que se deveria preservar o cinema, mas nunca fizeram muito mais que isso. E o Rio Branco foi demolido na virada de 2002 para 2003, na calada da noite. A maior parte do pessoal que gritava que deveriam preservá-lo, em uma espécie de reflexo condicionado, sequer pareceu notar.

Desde 1997 eu tinha certeza de que o Rio Branco chegaria ao fim. Foi quando fecharam o melhor cinema do centro, o Palace, com sua decoração que lembrava os fantasmas dos anos 50. Esse teve um destino que pode até se dizer honroso, porque se tornou um bingo. Depois foi o Cine Aracaju, com destino mais inglório: virou igreja evangélica por pouco tempo e hoje é um estacionamento.

Ninguém falou nada enquanto esses cinemas iam abaixo. Provavelmente não compreendiam a sua importância dentro da história cultural da cidade. Não sabiam que os cinemas de rua, mais que salas de exibição, são instituições que se integram à memória afetiva da cidade, que de maneira quase imperceptível chegam a ser formadores da própria identidade cultural da cidade. Apenas pareciam compreender o que significava o Rio Branco; infelizmente sua compreensão me parecia se limitar ao prédio em si.

O Rio Branco, à parte algumas placas comemorativas de grandes nomes do teatro brasileiro que passaram por lá, não tinha nada de especial. Não chegava aos pés, por exemplo, do Jandaia de Salvador, provavelmente o cinema mais bonito do Brasil e que até há pouco tempo se deteriorava em frente aos camelôs da Baixa dos Sapateiros vendendo defumadores e patuás. Sequer do São Luiz de Fortaleza e seu mármore italiano. Sua glória estava justamente na sua existência. O Rio Branco só era grande porque funcionava. Só por isso.

Havia algumas alternativas para ele, claro. Mas sempre faltou interesse e visão de um Estado que não preza por preservar a sua cultura, principalmente porque normalmente tem uma visão equivocada do que ela é.

O cinema foi abaixo, virou uma loja de roupas baratas, e agora não há mais nada a fazer. Só pegar as lembranças e tentar fazer delas algo compreensível. Uma delas é o outro recorde do Rio Branco. Em 1987 ou 1988, não sei direito, foi o cinema com maior público pagante em todo o país. Venceu cinemas de shopping centers do Rio e São Paulo. A razão era simples: o Rio Branco tinha se especializado, a partir do segundo quarto da década de 80, em filmes pornográficos. Era o único em Sergipe, em uma época em que a população mais pobre aina não tinha vídeo-cassete.

Era uma delícia passar em frente ao cinema e ver os títulos dos filmes em exibição. Eu sempre tive a impressão que os cineastas e tradutores brasileiros criavam os títulos desses filmes depois de um dia duro de trabalho: iam para um bar, enchiam a cara e, depois de contar piadas e fofocas, tentavam achar o título mais esculhambado dentro de um mínimo de pertinência possível.

Um deles era “Senta na Minha Que Eu Entro Na Tua”. E em 1989, época do sucesso do “Batman” de Tim Burton, o Rio Branco apareceu com o divino “Batxota”. Mas nada, nada poderá substituir a glória sado-masoquista delirante de “Penetradas por Trás com Dor e Força”. Quer dizer: quase nada. Porque aí a gente lembra de “Oh! Rebuceteio”, e por trás do sorriso que vem à boca imediatamente fica uma impressão de exuberância despudorada que não se vê mais por aí.

E na Semana Santa o dono do Rio Branco substituía os filmes de sacanagem por qualquer outro filme com título mais pio. Ele, como bom católico, tinha que respeitar a moral e os bons costumes de um povo que não sabia que o seu maior cinema estava às vésperas de uma morte inglória.