A poesia das causas siderais perdidas

Existe um curso online de ufologia. Eles dão certificado e tudo. E você pode fazer mesmo que tenha sido abduzido, já que não é presencial.

Se eu fosse ainda o Rafael de 15 anos atrás estaria espantado com a estupidez do mundo, agora arreganhada sem nenhuma vergonha diante de meus olhos cansados. Mas nesses últimos anos passamos por tanta coisa. As manifestações de junho de 2013, a histeria canalha da Lava Jato, o impeachment de Dilma, Michel Temer, a ascensão da extrema direita, a eleição de Jair Bolsonaro, os quatro anos de tragédia e agonia, a pandemia de COVID. Passamos pelas pessoas que rezam para pneus e pela Cagona do 8 de Janeiro, a velha traficante que transformou o mero defecar em ato de terrorismo. Passamos pela transformação da esquerda em uma auxiliar boazinha de um capitalismo cada vez mais exigente, preocupada em me empurrar goela abaixo a ideia de que se eu falar “todes” as mazelas do mundo estarão resolvidas. Passamos pela consolidação da cultura do cancelamento, pela universalização da estupidez através das redes sociais.

Diante de tudo isso, a existência de ufólogos é quase um refresco, a sensação reconfortante de que a estupidez, afinal, não é de hoje e algumas coisas são permanentes neste mundo baumaniano. Para mim, ao menos, significa um tipo de maluquice inofensiva e quase benevolente, o sujeito que chamamos de excêntrico porque é o tipo de doidinho que não faz mal a ninguém, nem mesmo a ele. É uma variedade einsteiniana do astrólogo.

Mais que isso, me surpreende a tenacidade e a resiliência desse pessoal. Agora que todos têm uma câmera na mão, parece que ninguém mais tem uma ideia na cabeça.

É o grande paradoxo sideral destes tempos: há câmeras em tudo quanto é bolso, e mesmo assim ninguém agora tira foto de um disco voador. A chance que ufólogos tinham de provar que estavam certos, que os idiotas éramos os céticos, até agora não foi aproveitada.

Ninguém mais é abduzido, ninguém mais dá passeios pelo lado escuro da lua — nem mesmo a melhor das promessas feitas por esses alienígenas safadinhos, a ET verdinha e gostosa dos peitão que vinha fazer um filho para levar lá para a constelação da Ursa Polar, ah, nem mesmo isso parece existir mais. Os ETs broxaram, e nós também.

Por tudo isso é de se respeitar, sim, a insistência em acreditar no inacreditável.

E assim como admiro os golpes de Afonso Coelho, assim como um dia ainda compro um busto de Victor Lustig, o gênio que vendeu a Torre Eiffel como sucata, preciso prestar meus respeitos ao malandro que criou esse curso.

Porque de uns tempos para cá dei de pensar que deixar de acreditar em OVNIs é, no fim das coisas, uma coisa ruim, ruim e triste. Porque fazer isso seria como deixar a imaginação para os roteiristas de filmes de ficção científica, que seguem sempre a mesma inspiração, as mesmas fórmulas. Acreditar em OVNIs significa um resquício de fé no improvável, de teimosia em acreditar no que não existe; é, e isso é talvez o mais importante, uma forma mais pura de fé que a dos religiosos; ufólogos não esperam nada de ruim dos ETs, esperam paz e progresso e levá-los ao nosso líder — e não fazem mal a ninguém, nem mesmo a eles, ao contrário de quem acredita que seu Deus que os faz matar em nome do amor.

Borges dizia, e eu sempre repito, que a um cavalheiro só interessam as causas perdidas. Nenhuma causa é mais perdida do que essa, e isso a justifica e engrandece. E é assim, transformando a estupidez no mais próximo que consigo chegar da poesia, que a gente segue levando a vida.

Playboy

A primeira Playboy que comprei foi a de novembro de 1984, com Christiane Torloni na capa. Mas não foi por causa dela: foi pela entrevista com Paul e Linda McCartney. Deve ser por isso que, até hoje, uma das coisas que me irritam é quando riem descrentes de quem diz que “comprava a Playboy pelas entrevistas”. Pelo menos a primeira que comprei, foi.

Eram tempos diferentes: eu era um recém-adolescente mas o jornaleiro não via nenhum problema em me vender uma revista expressamente proibida para menores de 18 anos. Não havia, mesmo. Talvez porque a ditadura e a Censura estavam chegando ao fim e o país se sentia um pouco mais livre, respirando melhor; mas principalmente porque o Brasil de 40 anos atrás era menos pudibundo, menos americanizado, e todo mundo parecia ter uma relação diferente com a imagem do corpo, especialmente com a nudez, e era honesto o bastante para preferir a beleza. Basta lembrar os biquínis daqueles tempos, os fios-dentais, os asas-deltas, lembrar que nos comerciais de então a nudez era farta e comum. Isso ia até o exagero: sei de um comercial dos jeans Villejack que sugeria nada menos que uma suruba. Procura no YouTube que você acha.

Mais tarde, início dos anos 90, assinei a revista em alguns momentos de mais dinheiro. Obviamente, as moças belas em suas páginas eram um grande atrativo — quem não ficou fascinado pela Luciana Vendramini ou pela Andréa Guerra ou pela Vanusa Spindler, quem? É uma questão estética: para héteros ou gays, eu tenho certeza de que o apelo da Playboy era universal porque, como costumávamos dizer a quem ria de nossas desventuras, “mulher bonita até gay come, quero ver é ser macho pra pegar os urutaus que andei pegando” —, mas as entrevistas eram sempre uma parte importante. A entrevista de Tim Maia, por exemplo, é inesquecível.

Na mesma época um amigo que casou com uma mulher ciumenta me deu sua coleção, cobrindo boa parte da segunda metade dos anos 80. Revistas que depois desapareceram, infelizmente. Mais tarde, cheguei a ter um CD-ROM com todas as entrevistas da Playboy americana, das quais, infelizmente, li poucas antes que ele sumisse pelo mundo. E não lembro com muita certeza, mas não duvido que tenha sido numa entrevista à Playboy que Sandy & Júnior declarou a possibilidade de “prazer anal”; o fato de isso ter causado algum rebuliço então é uma mostra de como o mundo mudou: recentemente a Xuxa andou dizendo que gosta de sexo anal e de beber certas excreções e ninguém ligou.

Foi também no início dos anos 90 que comprei a primeira Playboy americana e descobri que era uma revista muito melhor que a brasileira. Enquanto esta me parecia destinada a punheteiros que sonhavam com mulheres e bens que jamais poderiam ter, a americana tinha uma postura política e um engajamento que refletia a necessidade ao combate ao puritanismo típico da gringolândia que, infelizmente, se espalhou pandemicamente pelo mundo com a internet. É bom não esquecer nunca que foi na Playboy americana que Gore Vidal publicou um artigo antológico, “Sexo é Política” (publicado aqui no livro “De Fato e de Ficção”). A gente quer putaria, nego, não fingir que é rico. Além disso, enquanto a daqui se dava ares de revista pra gente rica, a de lá não precisava disso. Outra diferença cultural importante era que a daqui se especializou em estrelas da nossa dramaturgia, enquanto a de lá se baseava em puta, mesmo — e eram mulheres de plástico, que eu nunca entendi como podiam motivar algum tipo de desejo; esses americanos são uns loucos.

O tempo passou e a revista ficou cada vez mais chata. E olha que, muitas eras atrás, cheguei a namorar pouquinho tempo uma moça gente boa que saiu sem destaque em uma de suas páginas. As vendas caíam e ela já não podia pagar o que estrelas exigiam. Não sei se por reflexo disso ou se porque o mundo foi mudando e mudando, as entrevistas ficaram mais simplórias. A internet, a consagração da autoexposição pessoal, a abundância de pornografia fácil e barata acabaram tornando a Playboy redundante, da mesma maneira que acabou a velha e boa coluna social. E em algum momento do século XXI ela anunciou que ia fechar e nunca mais ia deixar seus leitores na mão. Não me importei muito. A Playboy era, havia tempo, uma sombra do que tinha sido.

Mas o passar do tempo sempre gera alguma nostalgia.

No fim do ano passado apareceu um site chamado Inside Playboy Brasil que se dedicava a recuperar o material publicado na Playboy. Publicou, por exemplo, entrevistas maravilhosas com Chico Buarque, Caetano Veloso e Chico Anysio, todas da década de 70. Agora, depois de alguns meses, fui procurar pelo site e não achei. Desapareceu. É uma pena. Talvez exista alguma coisa no Internet Archive, eu não sei. Mas é um mau sintoma que sites como esse desapareçam assim. É como se o mundo perdesse um pouquinho da classe que lhe restava num mundo de OnlyFans.

O ano do cometa

Eu mal posso acreditar que vai fazer 40 anos.

Entre 1985 e 1986, só se falava na volta do cometa de Halley — ou cometa Halley, sem o “de”, como era mais comum escrever e falar na época. Um malandro brasileiro registrou o nome e deve ter ganho algum dinheiro, porque aonde se ia se via revistinha em quadrinhos, especial da Globo, reportagens, previsões. A maioria antecipava o alumbramento visual que seria a passagem do cometa e sua cauda incandescente. E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada.

Falava-se também do medo e pavor e terror e pânico sentidos pelas pessoas em 1910, quando ele tinha passado pela última vez.

Eu já conhecia a fama do Halley porque anos antes tinha assistido a um episódio de “Túnel do Tempo” que se passava no dia do periélio do cometa. Sabia do medo, do dia virando noite, da bola de fogo imensa no céu apavorando as gentes.

A única pessoa que eu conhecia e que estava viva da última vez que o cometa tinha passado era minha bisavó. E claro que perguntei a ela como tinha sido, se ela lembrava do pânico generalizado, do medo, da certeza do fim do mundo, se as pessoas em volta dela tinham arrancado os cabelos e se jogado ribanceiras abaixo em um surto de desespero coletivo.

Mas dona Sinhá não lembrava de nada; mais presente em sua lembrança era a pandemia de gripe espanhola, alguns anos depois. Era estranho, porque a pouca idade não justificaria o olvido se a passagem do Halley tivesse sido espetacular como se dizia que tinha sido.

Na madrugada do dia 11 de abril, acho, eu e Gal subimos ao telhado do edifício com um binóculo e procuramos o cometa. Foi uma das grandes decepções das nossas vidas. O que se via depois de muito esforço era uma vaga luzinha borrada, mais ou menos como a luz de um poste distante obnubilada pela neblina.

Tanta expectativa para tão pouco. Algo tinha dado errado para o cometa. E demorei algum tempo para concluir que talvez aquela histeria de 1910 de que eu tinha ouvido falar tivesse sido um pouco exagerada.

Mas essa bobagem é repetida ainda hoje. A própria página da Wikipedia sobre o cometa faz referência ao medo de 1910.

Sempre reclamo que as pessoas têm preguiça de pesquisar. Mas só agora lembrei que podia consultar o Jornal do Brasil na hemeroteca da Biblioteca Nacional e descobrir, finalmente, o que realmente aconteceu.

O ápice da passagem do cometa estava previsto para o dia 18 de maio. Entre janeiro e maio, as poucas referências ao cometa vêm de telegramas internacionais. Boa parte de quem dizia avistar o cometa estava vendo, na verdade, a velha e boa Estrela d’Alva. Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar.

Em 5 de abril já havia relatos de avistamento, desmentidos por cientistas. No dia 24 o JB publica um artigo que poderia ter sido publicado em 1986, fazendo referência ao medo que o cometa já tinha inspirado ao longo dos tempos.

Em 14 de maio, um telegrama do Maranhão dizia que lá já se via o cometa à luz do dia e as pessoas se aglomeravam na rua para ver. Os jornalistas maranhenses, pelo visto, eram uns pândegos. Dia 17 o JB antecipava o grande dia e a “grande chuva de estrelas” que se seguiria, e se perguntava canalhamente se seria o fim do mundo. Por causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada.

O JB de 19 de maio conta o que aconteceu no Rio de Janeiro na noite anterior. As pessoas se amontoaram na Beira Mar, nos quintais, nos morros, o fim do mundo estava previsto para as dez da noite.

E o que se seguiu foi aquela mesma mixaria que eu veria 76 anos depois.

E quem acreditou nessa conversa mole pensou que o mundo ia se acabar, e foi tratando de se despedir, e sem demora foi tratando de aproveitar. Beijou na boca de quem não devia, pegou na mão de quem não conhecia, dançou um samba em traje de maiô. Chamou um gajo com quem não se dava e perdoou a sua ingratidão, e festejando o acontecimento gastou com ele mais de quinhentão.

Agora eu soube que o gajo anda dizendo coisa que não se passou. Ih, vai ter barulho e vai ter confusão, porque o mundo não se acabou.

Era por isso que dona Sinhá não lembrava do tal cometa. Porque a uma criança no interior de Sergipe, a pantomima midiática simplesmente não chegava. Não havia jornais espicaçando a imaginação das pessoas, gerando ansiedade e medo, nada disso. E o Halley era apenas uma luzinha a mais no céu, visível apenas a quem prestou atenção.

Imagino o que vai acontecer daqui a 38 anos. As pessoas vão falar do pânico de 1986, porque parecem precisar disso. Vão falar que pessoas morreram e outras nasceram, vão falar de tumultos e de desespero.

E se eu estiver vivo, o que é altamente improvável, vou confirmar tudo isso.

Traduttore… Tradittore

A biografia de Walt Disney por Neal Gabler chegou há algumas horas. A tradução é de Ana Maria Mandim. O livro está na terceira edição. E está me lembrando também de algo que eu sempre disse: que o mais importante no ofício do tradutor não é tanto conhecer a língua de que se traduz, mas a língua para a qual se traduz.

Quando o livro menciona a fazendinha em Marceline, Missouri, em que Walt passou parte de uma infância idílica e que transformou no ideal americano de milhões de crianças em todo o mundo, é assim que o trecho é traduzido: “Havia raposas, opossums, guaxinins.” Uma nota da tradutora explica o que é um opossum:

Tipo de marsupial, que não é morcego, com aparência de um rato de pelo longo, encontrado na América do Norte, ao norte do Rio Grande.

Ainda estou em dúvida sobre o que a moça quis dizer: não sei se fico aliviado por saber que morcegos não são marsupiais, ou apavorado ao descobrir que o morcego é um marsupial, mas não é um opossum.

Essa mixórdia seria evitada se a moça soubesse que opossum tem tradução simples e fácil para a última vagaba do Lácio: gambá. Tudo bem que não traduzisse por saruê ou timbu, termos a que estou mais acostumado porque são nordestinos. Mas é gambá, diacho, bicho que a gente vê o tempo todo em quintais e esmagados em estradas. Um opossum é tão gambá quanto um raccoon é guaxinim — apenas são espécies diferentes: o único gambá da América do Norte é o gambá-da-virgínia, assim como o guaxinim do Norte é o raccoon e o nosso é o guaxinim ou mão-pelada. Se traduziu raccoon por guaxinim, que traduza opossum por gambá porque a lógica é a mesma, e está tudo certo e a gente segue a leitura em paz.

Mas não, não fez isso e hoje vou ter pesadelos com morcegos marsupiais revoando meu telhado e carregando morceguinhos vampiros em sua bolsa.

O mais irônico é que tudo isso eu aprendi assistindo a “Disneylândia”, nos meus verdes e tão distantes anos.

Mas a coisa não termina aí.

A tal fazenda “era, nas palavras da tia de Elias, ‘um lugar muito boíto’”. A nota da tradutora explica:

No original, a frase é “very hansome (sic) place”. O correto seria “handsome”.

Eu até posso ouvir Elvis ou Carl Perkins falando hansome. Mas ninguém neste país assolado por Pablo Marçal fala “boíto” no lugar de bonito, com exceção de Didi Mocó muito tempo atrás. Traduzisse por “bunito”, tradução muito mais aproximada do contexto original, e não precisaria sequer de nota.

Tudo isso é na página 26. Tenho mais 700 pela frente. Que Deus me proteja.

Ópera de Borracha

Não sei como as pessoas deixam isso passar batido e ficam aclamando injustamente o Sgt. Pepper’s Lonely Hears Club Band como o primeiro álbum conceitual dos Beatles, essas coisas aí que todo mundo repete que nem papagaio.

Porque o verdadeiro ábum conceitual da banda veio muito antes. É o Rubber Soul. É tudo tão óbvio.

O álbum começa com o sujeito recebendo um convite pra dirigir o carro de uma moça que quer ser uma estrela. Mas ela não tem carro; aí ele vai até o apartamento dela e toca fogo em tudo, e diz que ela não o verá mais, porque ele é um sujeito fazendo planos de lugar nenhum. Por isso ela vai ter que pensar por si própria: e se quiser ser livre, que diga a palavra “amor”: porque ele a ama, a ama, a ama, é tudo o que ele tem a dizer. Então pergunta o que é que está se passando na cabeça dela, e reclama que ela é o tipo de garota deixa os outros para baixo e se sentindo otários, mas ele está sacando a dela — e ainda assim, de todos os amigos e amantes, ninguém se compara a ela. Por isso ele pede para ela esperar até que ele volte, e escreva seu número no muro de sua casa porque se ele precisar de alguém, é nela que ele vai pensar. Mas que ela tome cuidado: ele prefere vê-la morta do que com outro homem, e se ela aprontar alguma, é melhor correr para não morrer.

Se isso não é uma ópera italiana, eu não sei o que é.

Não vivemos mais no mundo em que nascemos

O título deste post é um comentário do Thiago ao post de ontem,

É algo em que sempre acreditei. E talvez tivesse até alguma razão, como Heráclito tinha ao colocar o pé no rio. Mas eu estava enganado, porque só agora a frase se torna realmente verdadeira.

Eu era criança em 1980. Via filmes dos anos 50 ou 60 e achava que vivia mesmo num mundo completamente diferente, e não percebia que o que era essencial no mundo não tinha mudado em nada. Talvez justamente porque tanta coisa permanecia inalterada, era mais fácil ver o que tinha se transformado — os carros eram diferentes, as roupas eram diferentes — e dar a isso uma importância maior do que realmente tinha, como se o bolo de chocolate virasse bolo de morango porque a cobertura mudou.

Em 1960 uma criança — e é isso o que mais me importa aqui, a infância — ia para a escola sentar com lápis e papel para aprender o que professores escreviam em quadros-negros, ia brincar com os amigos na rua. Via TV, os mesmos desenhos e seriados e novelas que seus vizinhos assistiam, os pais liam os jornais e revistas que seus vizinhos liam, ia-se para o cinema ver o filme que todos iam ver.

30 anos depois, a vida continuava exatamente a mesma. A TV tinha ganhado cor, as modas tinham mudado — mas a essência das coisas, não. Os elementos fundamentais da vida cotidiana continuavam os mesmos. Em 1990 os filhos daquelas crianças de 1960 continuavam usando lápis e papel na escola, aprendiam com livros e quadros-negros, à tarde iam para a rua brincar, ou ver TV, e à noite estavam diante da TV, com jornais e revistas em volta. O mundo era o mesmo, só mudava a maquiagem e uma roupinha nova. Mas a gente pensava que tinha mudado tanto.

Agora a gente olha 30 para trás e percebe que só agora a frase se torna verdadeira. Internet e smartphones mudaram a maneira como as pessoas se relacionam, mediam mesmo a sua interação com o mundo. As pessoas sabem menos porque, paradoxalmente, o mundo lhes oferece mais e mais. Amizades e amores se formam à distância. Encontros são mais raros, e considerados cada vez mais perigosos. Vidas encapsuladas se tornam cada vez plenas na percepção de quem as vive. Essa é uma mudança real.

(Me permito achar isso tão estranho. Em 1980 eu tinha 9 anos e saía da Euclydes da Cunha, onde morava, pegava um ônibus ao lado do antigo Campo da Graça e descia em frente ao cine Guarani, na praça Castro Alves. Assistia ao filme, atravessava a rua e pegava o ônibus que me deixaria no mesmo lugar. No ano seguinte, talvez me achando adulto aos 10, não era incomum ir ao centro da cidade a pé — Rua da Graça, Corredor da Vitória, Campo Grande, Avenida Sete, rua Chile, Praça da Sé onde ainda existia algumas livrarias —, mas era muito mais comum ir até a Barra de onde eu nunca deveria ter saído, brincar com amigos no meu pequeno feudo que ia do final da João Pondé até a Alameda da Barra, hoje mais conhecida como rua Miguel Calmon. Não sei de criança de classe média que faça algo parecido hoje.)

Havia uma certa unidade de pensamento que a internet extinguiu, e as pessoas, fossem quem fossem, tinham mais coisas em comum.

O fim da TV aberta é um símbolo importante disso, e por isso o impacto simbólico da morte do patrão do Lombardi. Por ser linear e analógica, durante algumas décadas, ela ajudou a unificar o país e definir uma base social e cultural comum. Eu nunca assisti a Silvio Santos ou Faustão ou Hebe, mas nunca tive dúvidas de que, como outros marcos da TV como o Jornal Nacional, o Fantástico, as telenovelas, eles representavam essa permanência e essa unidade. E é por isso que sua morte — e o fim do programa do Roberto — dá a impressão de ser a pá de cal num mundo que vem morrendo há muito tempo.

Sempre me incomodei com aquele pessoal que vive dizendo que “no meu tempo era melhor”, porque essa lenga-lenga é repetida a cada geração. Não era o seu tempo que era melhor, você é que era. Agora, pela primeira vez vejo diferenças que me incomodam. Ao contrário de gente que publica livros dizendo que a burrice se alastra — impressão que, a propósito, tenho a cada olhada nas redes sociais —, não acho que as novas gerações estejam menos inteligentes. Mas tenho a sensação cada vez mais incômoda de que estão mais fechadas, mais isoladas, sem perceber a grande maravilha que é a diversidade de informações, de conhecimentos, de opinião, de gostos mundo afora. A internet é uma das responsáveis por isso: o mundo parece ter diminuído demais para tanta gente.

Em “O Incrível Homem Que Encolheu”, um pequeno grande filme de 1957, encolhemos porque descobríamos a nossa pequenez diante de um mundo cada vez maior que nós mesmos tínhamos criado; agora, encolhemos porque escolhemos fazer com que o mundo encolha conosco.

É por isso que ver a frase do Thiago agora me fez pensar. 30 anos atrás, eu pensava que isso já era verdade, e embora iludido achava isso uma coisa boa, boa de verdade. Perceber que agora isso se torna verdade não é apenas melancólico demais: é assustador.

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Foi antes mesmo da pandemia que seu Antônio fechou a Panificadora São Carlos, na esquina da Augusto Maynard com a Vila Cristina. A padaria estava lá havia pouco mais de 40 anos, seu Antônio já tinha passado dos 85, estava na hora de descansar. Era lá que, quando eu ia tomar uma ou duas cervejas sozinho num começo de noite, eventualmente me serviam em copo de extrato de tomate.

Mais um pedaço do São José se foi naquele dia.

De uns tempos para cá a São Carlos parecia ser um dos últimos resquícios de um bairro que já representou talvez o melhor microcosmo da cidade, a mistura que condensou em uns tantos quarteirões a cidadezinha nova, acanhada e pretensiosa que Aracaju foi um dia. Alguns anos atrás, com os clientes tradicionais afastados pela infinidade de clínicas que se instalam nas redondezas como moscas e reconstroem as casas antigas, grandes e pequenas, reuniam-se ali alguns dos últimos bêbados do bairro para um happy hour que, também ele, já tinha se tornado tradicional. Entre eles o senhor que envergava sempre uma camisa do Fluminense, ganhasse ou perdesse; e aquela senhora, tão mirrada e pequena, que não parecia ser capaz de parir os tantos filhos que tinha, e que não abria mão de suas muitas cervejas no fim do expediente; e a moça que a acompanhava valentemente em cada copo, mas que caiu da escada e ficou paraplégica, ainda antes da padaria fechar.

Todos eles servem como lembrete de que o São José foi um dos bairros mais democráticos que já se viu nesta cidade. Ali morava Constâncio Vieira, industrial e engarrafador da Coca-Cola, na Augusto Maynard que ainda hoje é velha elegante, mesmo que dilapidada. Moravam também as lavadeiras da vila na rua General Chaves, as tantas e tantas famílias que se equilibravam entre a pobreza franca e a classe média baixa na Zaqueu Brandão. Morava Veiga na casa mais imponente da Stanley Silveira, com seu muro de estética singular decorado com peças de um finado Dodge Dart, assim como velhos comunistas como o Major Teles, velhos boêmios como Bisuca, e jogadores de futebol como Henágio, que chegou a vestir a camisa 10 do Flamengo nos anos 80.

Morava por ali Célia, moça com problemas mentais — “Lígia, peste!”, ela gritava para a vizinha circunspecta enquanto enfiava o dedo nas partes pudendas e cheirava —; eu a via quando passava férias em Aracaju e ela era grande e gorda e parecia a Madame Min, mas depois de muitos anos eu a vi uma vez e ela era tão pequenininha, tão mirradinha, e em vez de admitir que era o fato de eu ser muito criança que a fazia parecer maior do que era, decidi acreditar que Célia foi minguando, encolhendo, até desaparecer numa tarde de outono.

Célia era vizinha, pulando uma casa, do Amarelinho. Era no Amarelinho que, 45 anos atrás, seu Hunaldo roubava na conta e Perereco batia pontos todos os finais de tarde.

Perereco era um homem magro, alto, com um nariz enorme cravejado e sempre vermelho, um andar meio trôpego e um sorriso triste no rosto. Era elegante, sempre bem vestido dentro do que achava ser elegância — o que significava que lembrava vagamente um bicheiro daqueles anos 70, com sapatos e calça brancos e camisas estampadas de seda e mangas compridas. Todo dia, religiosamente, por volta das cinco da tarde ele sentava diante de uma mesa do Amarelinho, O Globo a tiracolo. Os meninos ficavam por perto, sabiam que ele iria pedir para comprar cigarros, sempre Carlton, e os deixaria ficar com o troco, imediatamente transformado em balas e doces. De lambuja eu ainda podia ler a página de quadrinhos — então gigantesca, uma página inteira — do jornal, antes que ele ficasse completamente bêbado e fosse embora aos tropeços, tentando afastar sem sucesso os fantasmas que deviam lhe perseguir havia 40 anos.

O que os meninos não sabiam era que Perereco era veterano da II Guerra. Segundo dona Lígia, ele tinha voltado da Itália “descalibrado”. Parece ter sido um rapaz promissor, inteligente, mas a guerra tinha deixado traumas que ele só conseguia afogar na cachaça. Bom soldado, Perereco se esforçava aplicadamente nesse exercício, e mesmo hoje não serei eu a condená-lo, eu que nem sempre me furto a tentar também afogar fantasmas muito menos assustadores.

Essas lembranças, em grande parte, são tudo o que resta do fastígio do São José. Porque já faz uns muitos anos que o bairro vem desaparecendo, perdendo sua identidade. Dia desses foi a vez da casa que meu tio se arrependia de não ter comprado, casa bonita com paredes de vidro amarelado. Resistiu solitária tempo demais, até, mas finalmente desapareceu para dar lugar a um estacionamento de alguma clínica, mais um, atendendo às tantas mazelas de um povo cada vez mais velho e mais doente e mais hipocondríaco.

Talvez o São José, no fundo, nunca tenha sabido muito bem qual o seu lugar no mundo. Não era chique como a Rua da Frente, nem como seria depois a 13 de Julho — enquanto o São José vivia seu auge, se é que teve um, a 13 ainda era uma coleção de casinhas de pescador com telhados de palha. Tampouco foi homogeneamente pobre como o bairro Industrial, mesmo o Grageru ou o Luzia; mas estava na zona sul da cidade ribeirinha que já espichava os olhos em direção à praia, pertinho da Rua da Frente, e era como o irmão remediado, mas mais velho e por isso merecedor de ainda algum respeito. A Augusto Maynard ainda é a rua mais charmosa da cidade, mas eu contei dia desses e com exceção dos seus dois únicos edifícios, há apenas 12 famílias morando nela. O resto é loja, é bar, é clínica, é petshop, é até Associação dos Renais de Sergipe. Apareceu agora uma delicatessen, não sei quanto tempo vai durar.

Na região em volta do Atheneu, aparentemente ocupada a partir dos anos 50, permanecem ainda casas belas que cristalizam um momento de um novo tempo estético na cidade, mas que já ficou para trás há muitas décadas. É de se imaginar que tenham pertencido aos filhos dos ricos da Rua da Frente, mas agora também elas estão desaparecendo. Uma a uma, vão dando lugar a clínicas e lojas de aspecto funcional, a lógica burra da funcionalidade. Parte grande delas já está desocupada, vítimas imóveis de inventários que se arrastam por ódio entre irmãos ou porque nenhum deles precisa de dinheiro, e mais cedo ou mais tarde serão demolidas, ou então descaracterizadas até ultrapassarem o limite da infâmia.

Essas casas são lembranças de que em algum tempo o São José tentou se modernizar e se dar ares de chique. O Caga-em-Pé, se alguém perguntar, hoje é parte da 13 de Julho, bairro esnobe que finge que o grande esgoto que corre à sua frente ainda é um rio, e faz questão de não lembrar dos dias em que passava pouco de um grande charco baldio.

Seus limites se diluíram, e agora fica difícil sem recorrer aos arquivos da Prefeitura saber o que é São José, o que é Grageru, Salgado Filho e 13 de Julho. Seu único limite óbvio é a Barão de Maruim — mas esse limite só existe, se é que existe, na letra fria das ordenações urbanas e na memória de uns poucos aracajuanos, porque é cada vez mais difícil dizer o que é centro e o que é São José.

Mas o São José persiste. Senhoras nonagenárias ainda lembram de fulano ou cicrano, alguém pode lhe contar ainda o horror do crime da rua Campos. Senhoras septuagenárias ainda conseguem reconhecer as poucas, cada vez menos casas de sua infância. Mas dia desses foi dona Laís que morreu, e mais um pedaço da memória do bairro se foi com ela.

Se acabou também o Caldo Verde, o antigo bar de seu Nelson na esquina da praça Tobias Barreto com a Itabaianinha; seu Nelson morreu e outro velhinho assumiu o boteco, um dos dois únicos pés sujos autênticos do bairro, rivalizando com o Bico Doce. Noite dessas, faz uns anos já, um senhor relembrava os velhos tempos, o dia em que seu pai recebeu em casa o então candidato a presidente Paulo Maluf. O pai fora deputado, sei lá qual, a família viu dias de riqueza maior que aqueles que ele parecia viver, mas os tempos pareciam não ter sido bons para eles: naquela noite ele estava limitado a contar vantagens de um tempo passado a velhos como ele, também alijados do poder do Estado, mas senhores ainda de suas memórias. O velhinho fechou o bar na pandemia, e agora o lugar vende açaí. Nada simboliza mais a decadência de um lugar decente do que vender açaí.

O São José viu também desaparecem tantos de seus velhos malucos de rua, dos quais sempre teve boa cota. Talvez seja um dos sinais mais tristes da decadência de um bairro; feliz da cidade que sabe quem eles são, porque conservam ainda uma humanidade e uma proximidade o crescimento sempre destrói.

Anos atrás, circulavam pelo bairro pessoas como Capone, sempre maltrapilho e xingando e ameaçando os meninos que o chamavam por esse nome. Os meninos diziam que ele tinha sido um menino muito inteligente que endoideceu de tanto estudar, e não podia haver desculpa melhor para eles gazearem as aulas no Atheneu ou no Patrocínio de São José. Capone, claro, não era seu nome. Dona Sinhá Galvão nunca foi de prestar respeito a quem não o merecia nem de negar o que é seu direito; e quando Capone chegava à sua porta pedindo comida, ela o chamava de seu Humberto. A casa de dona Sinhá hoje é um estacionamento de uma clínica, e com ela desapareceram as mangueiras que davam as melhores e maiores mangas-rosa que alguém poderia experimentar em toda uma existência.

Kikicacau morava perto do Carro Quebrado, moço com problemas de fala mas amor incomparável ao pés femininos. Com pena do rapaz, umas tantas moças deixavam que ele pegasse neles; e Kikicacau ficava lá, sempre arrumado, apenas segurando-os como quem segura um passarinho, beatífico, em paz — normalmente, normalmente; mas às vezes seu olhar se tornava brilhante demais e sua respiração um pouco mais acelerada, e então as moças puxavam o pé grosseiramente, e se o desespero de ver seu sonho escapar de suas mãos o fizesse tentar agarrar-se a ele às vezes lhe davam um chute, e sua tristeza expulsava a lubricidade dos seus olhos.

Felizmente não é por falta de malucos que o São José definha, porque malucos esta cidade ainda produz à mancheia. Rogério hoje vaga pelas ruas do bairro, recitando sempre sua interminável litania de bons votos para quem se deixa ouvir o que ele tem a dizer. Dentes em péssimo estado, ultimamente segurando sempre uma bandeira do Brasil, diz que já foi perigoso, um homem mau metido com coisa ruim, mas hoje seu único problema é “o vício”. Rogério é guardador de carros. Seu estado mental se deteriora a cada dia, como o São José. Andou uns tempos preso, violação de condicional, e quando voltou outro sujeito tinha ocupado o seu ponto; magnânimo, o usurpador lhe disse que ele podia ficar num ponto mais afastado, e nos dias que se seguiram Rogério estava revoltado, como é que se faz isso com um cidadão, como é que se tira o seu trabalho?, ele me perguntava. E eu não tinha o que responder.

Pelos arredores da praça Tobias Barreto circula Fábio. Fábio é esquizofrênico, e grita consigo mesmo, dá socos na própria cabeça, xinga aqueles que passam. Um amigo meu é “estuprador”. Outra amiga, “prostituta”. Eu dei sorte, sou só “o mais fodido” — “…E o mais fodido é você! O mais fodido é você!” Fábio xinga, assusta, mas não agride ninguém. Parece ser dos poucos a não ter medo do meu cachorro, que não gosta quando ele se aproxima. E se a lua não míngua Fábio é um rapaz civilizado, e diz que o pastor alemão é Deus na Terra, e lembra com carinho que foi um pastor que o prendeu uma vez porque ele tinha pulado o muro de uma casa para dormir. Suas diatribes misturam sexo e religião, e ele tantas vezes é Deus condenando fornicadores e ladrões e assassinos — e talvez, quem sabe, também os mais fodidos. Fábio acende fogueiras nos pés das árvores e toma banho completamente nu no lago da praça, sob o olhar indiferente da estátua de Tobias Barreto, mas a água suja nunca consegue limpar seus demônios.

Conta a lenda que Fábio era trabalhador de uma grande estatal, mas a noiva o traiu e ele endoideceu, e a gente sabe que o amor transformado em dor é tão pior que o que se transforma em ódio, e é tão melhor contar isso do que falar de esquizofrenia. De vez em quando a sua família surge do nada, e o leva para fazer prova de vida no INSS. Dizem que sua pensão é muito alta. Fábio, pelo visto, mesmo louco ainda sustenta a família, que não cuida dele.

Escrevo tudo isso porque a senhora mirrada e pequena que tomava suas cervejas na padaria de seu Antônio e ia para casa deixando o xixi correr pelas calças morreu há alguns dias.

No lugar da padaria, já há alguns meses, funciona um bar muito frequentado — não por ela, obviamente, que uma senhora tem que se dar ao respeito. O bar é sucesso absoluto de terça a domingo, sempre cheio de gente, cheio de luz, cheio de barulho. Fui tomar uma cerveja lá dia desses. Não me serviram em copo de extrato de tomate. Não, não, este não é mais um lugar para cavalheiros como eu.

Remakes

Tem uns tantos filmes aí que eu gostaria que fossem refilmados. São aqueles que poderiam ter sido muito maiores do que foram, mas por uma ou outra razão, ficaram aquém do que poderiam, quando menos depois que alguns anos se passaram e pudemos ver como resistiram à ação sempre deletéria e canalha do tempo.

Highlander
Este é um filme redondo. Mas tem os defeitos da direção publicitária que era moda em sua época. Eu refaria o filme basicamente para corrigir isso, aproveitar a evolução tecnológica que sempre faz bem a filmes de ação, mas também para aproveitar a mesmice diretorial e fotográfica destes tempos novos . Mas como estaria com a mão na massa, aproveitaria para fazer um vilão menos caricato, mais sofisticado. Daria mais densidade dramática à relação com Hannah, a paixão não correspondida da menina salva não mais na II Guerra, mas no Vietnã — ah, tempo, esse infeliz que não para de passar. E elencaria George Clooney como Ramirez e Tom Hardy como McLeod.

 

Leon, o Profissional
Ao contrário dos outros filmes incluídos aqui, este é um excelente filme, bem feito, com boas atuações de Jean Reno e Gary Oldman e uma estreia estelar de Natalie Portman. Luc Besson tem altos e baixos em sua carreira, mas este é, definitivamente, um de seus melhores momentos. Eu na verdade refaria apenas uma cena do filme: aquela em que, ensinando Mathilda a se tornar uma assassina, Leon a faz atirar em um sujeito com uma bala de paintball. Eu os faria usar balas de verdade, mostrando o pouco valor dado por eles à vida humana. Mas no fundo o que eu queria mesmo era fazer, daqui a uns dez anos, uma continuação do filme. Faria da própria Portman uma assassina cinquentona, gasta pela vida, cínica, e a colocaria num relacionamento semelhante ao que ela teve com Leon. Mas agora ela destruiria o adolescente. Eu sou mau também.

Grease
Já escrevi aqui sobre a minha decepção ao ver o filme depois de ler o livro escrito a partir dele. A injúria foi agravada pela direção de Randall Kleiser, que levou para a telona os vícios dos telefilmes que fazia, com direito a vinhetinhas musicais entre uma gag e outra. Eu faria um filme a partir do livro de Ron de Cristoforo, uma comédia menos musical, com maior nexo narrativo, reforçando o deboche carinhoso com que ele revisita os anos 50. Seria um filme definitivamente informado pela aura do seriado “Anos Incríveis”, uma comédia sem nenhuma pretensão de ser engraçada, porque a vida já era engraçada o suficiente.

A Lista de Schindler
Nesse caso eu não refaria o filme, eu apenas reeditaria o seu final. 30 anos se passaram e ainda não me conformei com o final piegas e melodramático com que Spielberg conspurcou o que teria sido o seu melhor filme. Meu Schindler continuaria interesseiro e pragmático até o final. Sem chororô.

5% dos filmes nacionais
Uma das grandes verdades da vida é que praticamente todo filme brasileiro poderia ser refilmado. Mas 90% deles, talvez mais, não valem a pena, nunca valeram, em que pesem as perversões do pessoal do “audiovisual”, que elogia às escâncaras coisas que numa família de bons costumes jamais seriam mencionadas em voz alta perto da crianças. Outros 5%, talvez menos, perderiam tudo se fossem retirados de seu momento histórico, ou mesmo artístico: um filme como “Viagem aos Seios de Duília”, que não chega a ser magnífico, me pareceria mais pobre e sem sentido sem a sua fotografia. Mas há uma série de filmes que são quase bons, especialmente entre as pornochanchadas dos anos 70, e que se beneficiariam de maior aprumo técnico.

Há outros filmes, claro, que não consigo lembrar agora.