Ópera de Borracha

Não sei como as pessoas deixam isso passar batido e ficam aclamando injustamente o Sgt. Pepper’s Lonely Hears Club Band como o primeiro álbum conceitual dos Beatles, essas coisas aí que todo mundo repete que nem papagaio.

Porque o verdadeiro ábum conceitual da banda veio muito antes. É o Rubber Soul. É tudo tão óbvio.

O álbum começa com o sujeito recebendo um convite pra dirigir o carro de uma moça que quer ser uma estrela. Mas ela não tem carro; aí ele vai até o apartamento dela e toca fogo em tudo, e diz que ela não o verá mais, porque ele é um sujeito fazendo planos de lugar nenhum. Por isso ela vai ter que pensar por si própria: e se quiser ser livre, que diga a palavra “amor”: porque ele a ama, a ama, a ama, é tudo o que ele tem a dizer. Então pergunta o que é que está se passando na cabeça dela, e reclama que ela é o tipo de garota deixa os outros para baixo e se sentindo otários, mas ele está sacando a dela — e ainda assim, de todos os amigos e amantes, ninguém se compara a ela. Por isso ele pede para ela esperar até que ele volte, e escreva seu número no muro de sua casa porque se ele precisar de alguém, é nela que ele vai pensar. Mas que ela tome cuidado: ele prefere vê-la morta do que com outro homem, e se ela aprontar alguma, é melhor correr para não morrer.

Se isso não é uma ópera italiana, eu não sei o que é.

Não vivemos mais no mundo em que nascemos

O título deste post é um comentário do Thiago ao post de ontem,

É algo em que sempre acreditei. E talvez tivesse até alguma razão, como Heráclito tinha ao colocar o pé no rio. Mas eu estava enganado, porque só agora a frase se torna realmente verdadeira.

Eu era criança em 1980. Via filmes dos anos 50 ou 60 e achava que vivia mesmo num mundo completamente diferente, e não percebia que o que era essencial no mundo não tinha mudado em nada. Talvez justamente porque tanta coisa permanecia inalterada, era mais fácil ver o que tinha se transformado — os carros eram diferentes, as roupas eram diferentes — e dar a isso uma importância maior do que realmente tinha, como se o bolo de chocolate virasse bolo de morango porque a cobertura mudou.

Em 1960 uma criança — e é isso o que mais me importa aqui, a infância — ia para a escola sentar com lápis e papel para aprender o que professores escreviam em quadros-negros, ia brincar com os amigos na rua. Via TV, os mesmos desenhos e seriados e novelas que seus vizinhos assistiam, os pais liam os jornais e revistas que seus vizinhos liam, ia-se para o cinema ver o filme que todos iam ver.

30 anos depois, a vida continuava exatamente a mesma. A TV tinha ganhado cor, as modas tinham mudado — mas a essência das coisas, não. Os elementos fundamentais da vida cotidiana continuavam os mesmos. Em 1990 os filhos daquelas crianças de 1960 continuavam usando lápis e papel na escola, aprendiam com livros e quadros-negros, à tarde iam para a rua brincar, ou ver TV, e à noite estavam diante da TV, com jornais e revistas em volta. O mundo era o mesmo, só mudava a maquiagem e uma roupinha nova. Mas a gente pensava que tinha mudado tanto.

Agora a gente olha 30 para trás e percebe que só agora a frase se torna verdadeira. Internet e smartphones mudaram a maneira como as pessoas se relacionam, mediam mesmo a sua interação com o mundo. As pessoas sabem menos porque, paradoxalmente, o mundo lhes oferece mais e mais. Amizades e amores se formam à distância. Encontros são mais raros, e considerados cada vez mais perigosos. Vidas encapsuladas se tornam cada vez plenas na percepção de quem as vive. Essa é uma mudança real.

(Me permito achar isso tão estranho. Em 1980 eu tinha 9 anos e saía da Euclydes da Cunha, onde morava, pegava um ônibus ao lado do antigo Campo da Graça e descia em frente ao cine Guarani, na praça Castro Alves. Assistia ao filme, atravessava a rua e pegava o ônibus que me deixaria no mesmo lugar. No ano seguinte, talvez me achando adulto aos 10, não era incomum ir ao centro da cidade a pé — Rua da Graça, Corredor da Vitória, Campo Grande, Avenida Sete, rua Chile, Praça da Sé onde ainda existia algumas livrarias —, mas era muito mais comum ir até a Barra de onde eu nunca deveria ter saído, brincar com amigos no meu pequeno feudo que ia do final da João Pondé até a Alameda da Barra, hoje mais conhecida como rua Miguel Calmon. Não sei de criança de classe média que faça algo parecido hoje.)

Havia uma certa unidade de pensamento que a internet extinguiu, e as pessoas, fossem quem fossem, tinham mais coisas em comum.

O fim da TV aberta é um símbolo importante disso, e por isso o impacto simbólico da morte do patrão do Lombardi. Por ser linear e analógica, durante algumas décadas, ela ajudou a unificar o país e definir uma base social e cultural comum. Eu nunca assisti a Silvio Santos ou Faustão ou Hebe, mas nunca tive dúvidas de que, como outros marcos da TV como o Jornal Nacional, o Fantástico, as telenovelas, eles representavam essa permanência e essa unidade. E é por isso que sua morte — e o fim do programa do Roberto — dá a impressão de ser a pá de cal num mundo que vem morrendo há muito tempo.

Sempre me incomodei com aquele pessoal que vive dizendo que “no meu tempo era melhor”, porque essa lenga-lenga é repetida a cada geração. Não era o seu tempo que era melhor, você é que era. Agora, pela primeira vez vejo diferenças que me incomodam. Ao contrário de gente que publica livros dizendo que a burrice se alastra — impressão que, a propósito, tenho a cada olhada nas redes sociais —, não acho que as novas gerações estejam menos inteligentes. Mas tenho a sensação cada vez mais incômoda de que estão mais fechadas, mais isoladas, sem perceber a grande maravilha que é a diversidade de informações, de conhecimentos, de opinião, de gostos mundo afora. A internet é uma das responsáveis por isso: o mundo parece ter diminuído demais para tanta gente.

Em “O Incrível Homem Que Encolheu”, um pequeno grande filme de 1957, encolhemos porque descobríamos a nossa pequenez diante de um mundo cada vez maior que nós mesmos tínhamos criado; agora, encolhemos porque escolhemos fazer com que o mundo encolha conosco.

É por isso que ver a frase do Thiago agora me fez pensar. 30 anos atrás, eu pensava que isso já era verdade, e embora iludido achava isso uma coisa boa, boa de verdade. Perceber que agora isso se torna verdade não é apenas melancólico demais: é assustador.

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Foi antes mesmo da pandemia que seu Antônio fechou a Panificadora São Carlos, na esquina da Augusto Maynard com a Vila Cristina. A padaria estava lá havia pouco mais de 40 anos, seu Antônio já tinha passado dos 85, estava na hora de descansar. Era lá que, quando eu ia tomar uma ou duas cervejas sozinho num começo de noite, eventualmente me serviam em copo de extrato de tomate.

Mais um pedaço do São José se foi naquele dia.

De uns tempos para cá a São Carlos parecia ser um dos últimos resquícios de um bairro que já representou talvez o melhor microcosmo da cidade, a mistura que condensou em uns tantos quarteirões a cidadezinha nova, acanhada e pretensiosa que Aracaju foi um dia. Alguns anos atrás, com os clientes tradicionais afastados pela infinidade de clínicas que se instalam nas redondezas como moscas e reconstroem as casas antigas, grandes e pequenas, reuniam-se ali alguns dos últimos bêbados do bairro para um happy hour que, também ele, já tinha se tornado tradicional. Entre eles o senhor que envergava sempre uma camisa do Fluminense, ganhasse ou perdesse; e aquela senhora, tão mirrada e pequena, que não parecia ser capaz de parir os tantos filhos que tinha, e que não abria mão de suas muitas cervejas no fim do expediente; e a moça que a acompanhava valentemente em cada copo, mas que pouco antes da padaria fechar caiu da escada e ficou paraplégica, ainda antes da padaria fechar.

Todos eles servem como lembrete de que o São José foi um dos bairros mais democráticos que já se viu nesta cidade. Ali morava Constâncio Vieira, industrial e engarrafador da Coca-Cola, na Augusto Maynard que ainda hoje é velha elegante, mesmo que dilapidada. Moravam também as lavadeiras da vila na rua General Chaves, as tantas e tantas famílias que se equilibravam entre a pobreza franca e a classe média baixa na Zaqueu Brandão. Morava Veiga na casa mais imponente da Stanley Silveira, com seu muro de estética singular decorado com peças de um finado Dodge Dart, assim como velhos comunistas como o Major Teles, velhos boêmios como Bisuca, e jogadores de futebol como Henágio, que chegou a vestir a camisa 10 do Flamengo nos anos 80.

Morava por ali Célia, moça com problemas mentais — “Lígia, peste!”, ela gritava para a vizinha circunspecta enquanto enfiava o dedo nas partes pudendas e cheirava —; eu a via quando passava férias em Aracaju e ela era grande e gorda e parecia a Madame Min, mas depois de muitos anos eu a vi uma vez e ela era tão pequenininha, tão mirradinha, e em vez de admitir que era o fato de eu ser muito criança que a fazia parecer maior do que era, decidi acreditar que Célia foi minguando, encolhendo, até desaparecer numa tarde de outono.

Célia era vizinha, pulando uma casa, do Amarelinho. Era no Amarelinho que, 45 anos atrás, seu Hunaldo roubava na conta e Perereco batia pontos todos os finais de tarde.

Era um homem magro, alto, com um nariz enorme cravejado e sempre vermelho, um andar meio trôpego e um sorriso triste no rosto. Era elegante, sempre bem vestido dentro do que achava ser elegância — o que significava que lembrava vagamente um bicheiro daqueles anos 70, com sapatos e calça brancos e camisas estampadas de seda e mangas compridas. Todo dia, religiosamente, por volta das cinco da tarde ele sentava diante de uma mesa do Amarelinho, O Globo a tiracolo. Os meninos ficavam por perto, sabiam que ele iria pedir para comprar cigarros, sempre Carlton, e os deixaria ficar com o troco, imediatamente transformado em balas e doces. De lambuja eu ainda podia ler a página de quadrinhos — então gigantesca, uma página inteira — do jornal, antes que ele ficasse completamente bêbado e fosse embora aos tropeços, tentando afastar sem sucesso os fantasmas que deviam lhe perseguir havia 40 anos.

O que os meninos não sabiam era que Perereco era veterano da II Guerra. Segundo dona Lígia, ele tinha voltado da Itália “descalibrado”. Parece ter sido um rapaz promissor, inteligente, mas a guerra tinha deixado traumas que ele só conseguia afogar na cachaça. Bom soldado, Perereco se esforçava aplicadamente nesse exercício, e mesmo hoje não serei eu a condená-lo, eu que nem sempre me furto a tentar também afogar fantasmas muito menos assustadores

Essas lembranças, em grande parte, são tudo o que resta do fastígio do São José. Porque já faz uns muitos anos que o bairro vem desaparecendo, perdendo sua identidade. Dia desses foi a vez da casa que meu tio se arrependia de não ter comprado, casa bonita com paredes de vidro amarelado. Resistiu solitária tempo demais, até, mas finalmente desapareceu para dar lugar a um estacionamento de alguma clínica, mais um, atendendo às tantas mazelas de um povo cada vez mais velho e mais doente e mais hipocondríaco.

Talvez o São José, no fundo, nunca tenha sabido muito bem qual o seu lugar no mundo. Não era chique como a Rua da Frente, nem como seria depois a 13 de Julho — enquanto o São José vivia seu auge, se é que teve um, a 13 ainda era uma coleção de casinhas de pescador com telhados de palha. Tampouco foi homogeneamente pobre como o bairro Industrial, mesmo o Grageru ou o Luzia; mas estava na zona sul da cidade ribeirinha que já espichava os olhos em direção à praia, pertinho da Rua da Frente, e era como o irmão remediado, mas mais velho e por isso merecedor de ainda algum respeito. A Augusto Maynard ainda é a rua mais charmosa da cidade, mas eu contei dia desses e com exceção dos seus dois únicos edifícios, há apenas 12 famílias morando nela. O resto é loja, é bar, é clínica, é petshop, é até Associação dos Renais de Sergipe. Apareceu agora uma delicatessen, não sei quanto tempo vai durar.

Na região em volta do Atheneu, aparentemente ocupada a partir dos anos 50, permanecem ainda casas belas que cristalizam um momento de um novo tempo estético na cidade., mas que já ficou para trás há muitas décadas. É de se imaginar que tenham pertencido aos filhos dos ricos da Rua da Frente, mas agora também elas estão desaparecendo. Uma a uma, vão dando lugar a clínicas e lojas de aspecto funcional, a lógica burra da funcionalidade. Parte grande delas já está desocupada, vítimas imóveis de inventários que se arrastam por ódio entre irmãos ou porque nenhum deles precisa de dinheiro, e mais cedo ou mais tarde serão demolidas, ou então descaracterizadas até ultrapassarem o limite da infâmia.

Essas casas sao lembranças de que em algum tempo o São José tentou se modernizar e se dar ares de chique. O Caga-em-Pé, se alguém perguntar, hoje é parte da 13 de Julho, bairro esnobe que finge que o grande esgoto que corre à sua frente ainda é um rio, e faz questão de não lembrar dos dias em que passava pouco de um grande charco baldio.

Seus limites se diluíram, e agora fica difícil sem recorrer aos arquivos da Prefeitura saber o que é São José, o que é Grageru, Salgado Filho e 13 de Julho. Seu único limite óbvio é a Barão de Maruim — mas esse limite só existe, se é que existe, na letra fria das ordenações urbanas e na memória de uns poucos aracajuanos, porque é cada vez mais difícil dizer o que é centro e o que é São José.

Mas o São José persiste. Senhoras nonagenárias ainda lembram de fulano ou cicrano, alguém pode lhe contar ainda o horror do crime da rua Campos. Senhoras septuagenárias ainda conseguem reconhecer as poucas, cada vez menos casas de sua infância. Mas dia desses foi dona Laís que morreu, e mais um pedaço da memória do bairro se foi com ela.

Se acabou também o Caldo Verde, o antigo bar de seu Nelson na esquina da praça Tobias Barreto com a Itabaianinha; seu Nelson morreu e outro velhinho assumiu o boteco, um dos dois únicos pés sujos autênticos do bairro, rivalizando com o Bico Doce. Noite dessas, faz uns anos já, um senhor relembrava os velhos tempos, o dia em que seu pai recebeu em casa o então candidato a presidente Paulo Maluf. O pai fora deputado, sei lá qual, a família viu dias de riqueza maior que aqueles que ele parecia viver, mas os tempos pareciam não ter sido bons para eles: naquela noite ele estava limitado a contar vantagens de um tempo passado a velhos como ele, também alijados do poder do estado, mas senhores ainda de suas memórias. O velhinho fechou o bar na pandemia, e agora o lugar vende açaí. Nada simboliza mais a decadência de um lugar decente do que vender açaí.

O São José viu também desaparecem tantos de seus velhos malucos de rua, dos quais sempre teve boa cota. Talvez seja um dos sinais mais tristes da decadência de um bairro; feliz da cidade que sabe quem eles são, porque conservam ainda uma humanidade e uma proximidade o crescimento sempre destrói.

Anos atrás, circulavam pelo bairro pessoas como Capone, sempre maltrapilho e xingando e ameaçando os meninos que o chamavam por esse nome. Os meninos diziam que ele tinha sido um menino muito inteligente que endoideceu de tanto estudar, e não podia haver desculpa melhor para eles gazearem as aulas no Atheneu ou no Patrocínio de São José. Capone, claro, não era seu nome. Dona Sinhá Galvão nunca foi de prestar respeito a quem não o merecia nem de negar o que é seu direito; e quando Capone chegava à sua porta pedindo comida, ela o chamava de seu Humberto. A casa de dona Sinhá hoje é um estacionamento de uma clínica, e com ela desapareceram as mangueiras que davam as melhores e maiores mangas-rosa que alguém poderia experimentar em toda uma existência.

Kikicacau morava perto do Carro Quebrado, moço com problemas de fala mas amor incomparável ao pés femininos. Com pena do rapaz, umas tantas moças deixavam que ele pegasse neles; e Kikicacau ficava lá, sempre arrumado, apenas segurando-os como quem segura um passarinho, beatífico, em paz — normalmente, normalmente; mas às vezes seu olhar se tornava brilhante demais e sua respiração um pouco mais acelerada, e então as moças puxavam o pé grosseiramente, e se o desespero de ver seu sonho escapar de suas mãos o fizesse tentar agarrar-se a ele às vezes lhe davam um chute, e sua tristeza expulsava a lubricidade dos seus olhos.

Felizmente não é por falta de malucos que o São José definha, porque malucos esta cidade ainda produz à mancheia. Rogério hoje vaga pelas ruas do bairro, recitando sempre sua interminável litania de bons votos para quem se deixa ouvir o que ele tem a dizer. Dentes em péssimo estado, ultimamente segurando sempre uma bandeira do Brasil, diz que já foi perigoso, um homem mau metido com coisa ruim, mas hoje seu único problema é “o vício”. Rogério é guardador de carros. Seu estado mental se deteriora a cada dia, como o São José. Andou uns tempos preso, violação de condicional, e quando voltou outro sujeito tinha ocupado o seu ponto; magnânimo, o usurpador lhe disse que ele podia ficar num ponto mais afastado, e nos dias que se seguiram Rogério estava revoltado, como é que se faz isso com um cidadão, como é que se tira o seu trabalho?, ele me perguntava. E eu não tinha o que responder.

Pelos arredores da praça Tobias Barreto circula Fábio. Fábio é esquizofrênico, e grita consigo mesmo, dá socos na própria cabeça, xinga aqueles que passam. Um amigo meu é “estuprador”. Outra amiga, “prostituta”. Eu dei sorte, sou só “o mais fodido” — “…E o mais fodido é você! O mais fodido é você!” Fábio xinga, assusta, mas não agride ninguém. Parece ser dos poucos a não ter medo do meu cachorro, que não gosta quando ele se aproxima. E se a lua não míngua Fábio é um rapaz civilizado, e diz que o pastor alemão é Deus na Terra, e lembra com carinho que foi um pastor que o prendeu uma vez porque ele tinha pulado o muro de uma casa para dormir. Suas diatribes misturam sexo e religião, e ele tantas vezes é Deus condenando fornicadores e ladrões e assassinos — e talvez, quem sabe, também os mais fodidos. Fábio acende fogueiras nos pés das árvores e toma banho completamente nu no lago da praça, sob o olhar indiferente da estátua de Tobias Barreto, mas a água suja nunca consegue limpar seus demônios.

Conta a lenda que Fábio era trabalhador de uma grande estatal, mas a noiva o traiu e ele endoideceu, e a gente sabe que o amor transformado em dor é tão pior que o que se transforma em ódio, e é tão melhor contar isso do que falar de esquizofrenia. De vez em quando a sua família surge do nada, e o leva para fazer prova de vida no INSS. Dizem que sua pensão é muito alta. Fábio, pelo visto, mesmo louco ainda sustenta a família, que não cuida dele.

Escrevo tudo isso porque a senhora mirrada e pequena que tomava suas cervejas na padaria de seu Antônio e ia para casa deixando o xixi correr pelas calças morreu há alguns dias.

No lugar da padaria, já há alguns meses, funciona um bar muito frequentado — não por ela, obviamente, que uma senhora tem que se dar ao respeito. O bar é sucesso absoluto de terça a domingo, sempre cheio de gente, cheio de luz, cheio de barulho. Fui tomar uma cerveja lá dia desses. Não me serviram em copo de extrato de tomate. Não, não, este não é mais um lugar para cavalheiros como eu.

Remakes

Tem uns tantos filmes aí que eu gostaria que fossem refilmados. São aqueles que poderiam ter sido muito maiores do que foram, mas por uma ou outra razão, ficaram aquém do que poderiam, quando menos depois que alguns anos se passaram e pudemos ver como resistiram à ação sempre deletéria e canalha do tempo.

Highlander
Este é um filme redondo. Mas tem os defeitos da direção publicitária que era moda em sua época. Eu refaria o filme basicamente para corrigir isso, aproveitar a evolução tecnológica que sempre faz bem a filmes de ação, mas também para aproveitar a mesmice diretorial e fotográfica destes tempos novos . Mas como estaria com a mão na massa, aproveitaria para fazer um vilão menos caricato, mais sofisticado. Daria mais densidade dramática à relação com Hannah, a paixão não correspondida da menina salva não mais na II Guerra, mas no Vietnã — ah, tempo, esse infeliz que não para de passar. E elencaria George Clooney como Ramirez e Tom Hardy como McLeod.

 

Leon, o Profissional
Ao contrário dos outros filmes incluídos aqui, este é um excelente filme, bem feito, com boas atuações de Jean Reno e Gary Oldman e uma estreia estelar de Natalie Portman. Luc Besson tem altos e baixos em sua carreira, mas este é, definitivamente, um de seus melhores momentos. Eu na verdade refaria apenas uma cena do filme: aquela em que, ensinando Mathilda a se tornar uma assassina, Leon a faz atirar em um sujeito com uma bala de paintball. Eu os faria usar balas de verdade, mostrando o pouco valor dado por eles à vida humana. Mas no fundo o que eu queria mesmo era fazer, daqui a uns dez anos, uma continuação do filme. Faria da própria Portman uma assassina cinquentona, gasta pela vida, cínica, e a colocaria num relacionamento semelhante ao que ela teve com Leon. Mas agora ela destruiria o adolescente. Eu sou mau também.

Grease
Já escrevi aqui sobre a minha decepção ao ver o filme depois de ler o livro escrito a partir dele. A injúria foi agravada pela direção de Randall Kleiser, que levou para a telona os vícios dos telefilmes que fazia, com direito a vinhetinhas musicais entre uma gag e outra. Eu faria um filme a partir do livro de Ron de Cristoforo, uma comédia menos musical, com maior nexo narrativo, reforçando o deboche carinhoso com que ele revisita os anos 50. Seria um filme definitivamente informado pela aura do seriado “Anos Incríveis”, uma comédia sem nenhuma pretensão de ser engraçada, porque a vida já era engraçada o suficiente.

A Lista de Schindler
Nesse caso eu não refaria o filme, eu apenas reeditaria o seu final. 30 anos se passaram e ainda não me conformei com o final piegas e melodramático com que Spielberg conspurcou o que teria sido o seu melhor filme. Meu Schindler continuaria interesseiro e pragmático até o final. Sem chororô.

5% dos filmes nacionais
Uma das grandes verdades da vida é que praticamente todo filme brasileiro poderia ser refilmado. Mas 90% deles, talvez mais, não valem a pena, nunca valeram, em que pesem as perversões do pessoal do “audiovisual”, que elogia às escâncaras coisas que numa família de bons costumes jamais seriam mencionadas em voz alta perto da crianças. Outros 5%, talvez menos, perderiam tudo se fossem retirados de seu momento histórico, ou mesmo artístico: um filme como “Viagem aos Seios de Duília”, que não chega a ser magnífico, me pareceria mais pobre e sem sentido sem a sua fotografia. Mas há uma série de filmes que são quase bons, especialmente entre as pornochanchadas dos anos 70, e que se beneficiariam de maior aprumo técnico.

Há outros filmes, claro, que não consigo lembrar agora.

Augusto

Andei lembrando de Augusto esses dias.

Ainda posso vê-lo, muito magro, batendo as sete freguesias a pé, invariavelmente carregando alguns discos debaixo do braço. Ou sentado comigo num ponto de ônibus lembrando músicas um tanto obscuras dos Beatles, Stones ou Dylan. Ou ouvindo o Sgt. Pepper’s em CD pela primeira vez e dizendo “olha esse baixo!”

Nos conhecemos no Cine-Foto Walmir, numa época que eu voltava da escola a pé e nunca lanchava para poder comprar um disco no fim do mês. O Cine-Foto Walmir era a melhor loja de discos de Aracaju, a única, na metade dos anos 80, a ter um catálogo consistente de rock. Um amigo que morreu cedo demais, Jorge Eduardo, então namorado de uma tia, me levou lá pela primeira vez e me mostrou o Led Zeppelin II; a partir daí virei frequentador assíduo, embora comprasse poucos discos e ouvisse trechos de muitos. Fazia isso em livrarias e bancas de revistas, também.

A vendedora era Irani, morena deliciosa, de seios insolentes e bunda ofensiva — e tem coisa mais bela para um adolescente que rock and roll e uma bunda grande e peitos que fazem bullying com você? Foi ela quem, algum tempo depois, me apresentou o rapaz magrinho que estava na loja ao mesmo tempo que eu. Sabia que os dois eram fãs dos Beatles e achou que já era tempo de nos conhecermos.

Eu não conhecia outros beatlemaníacos em Aracaju e aquilo foi quase uma revelação.

Não lembro como, mas o assunto resvalou para livros sobre a banda, então raríssimos pelo menos em nosso canto do mundo; e eu falei que tinha o livro do Geoffrey Stokes. Augusto achou que era o do Peter Brown, The Love You Make, provavelmente o livro que todo mundo queria ler na época, porque contava os podres da banda e que nunca foi publicado em português. O mal-entendido foi desfeito logo, mas eu tinha uma coisa que qualquer pessoa quereria: o Decca Tapes.

Saímos de lá e fomos conversando até sua casa. Augusto me emprestou um disco que eu não tinha, “Álbum Branco”. De lá fomos na minha, onde emprestei a ele o Decca Tapes e, imagino, o livro de que tinha falado.

Minha mãe achou estranho eu chegar com um desconhecido, passar um tempo ouvindo discos no meu quarto e ele sair de lá com um disco meu, que eu não costumava emprestar. Eu tinha 15 anos. Olhando para trás, soa como maluquice duas pessoas que não se conhecem irem às casas uma da outra e saírem de lá com um disco. Isso nunca se repetiria depois, pelo menos não comigo.

Ainda lembro do que foi ouvir o “Álbum Branco” naquela noite. O tempo passaria e discos dos Beatles se tornariam atemporais para mim, porque os ouvi tanto que não podem me lembrar nenhum tempo ou lugar específicos; mas de vez em quando, quando ouço de novo esse disco, consigo lembrar exatamente o que senti enquanto ouvia embasbacado algo que, para mim, era totalmente inesperado.

Nos meses e anos seguintes, Augusto seria companhia constante. Discos iam e vinham o tempo todo — mais vinham do que iam: eu, que tinha muito menos, oferecia o que podia, e era pouco. O meu Decca Tapes eu sei que circulou a cidade inteira, passando de mão em mão e de gravador em gravador.

Devo a Augusto toda a base que tenho de rock and roll. De Elvis a Velvet Underground, de Muddy Waters ao Clash, dos Doors aos Sex Pistols — essencialmente, quase tudo o que importa no rock eu aprendi graças a ele. Meus gostos e desgostos — como a antipatia inamovível pelo Pink Floyd, o desprezo pelo heavy metal — foram formados aí, a partir dos discos que Augusto me emprestava.

Foi ele também quem me emprestou o On the Road, de Kerouac, e “Morangos Mofados”, e “Porcos com Asas”. Mas livros eu tinha mais, e imagino que muitos saíram de lá de casa. A isso se seguiam o tipo de discussões que só adolescentes podem ter. Ele, por exemplo, concordava com a ideia de Lennon de que primeiro você muda para poder mudar o mundo. O velho leninista aqui, ao contrário, achava é que o negócio é descer o sarrafo, que todo mundo muda rapidinho. Continuo achando.

E então Augusto começou a me dar discos. Não precisava ser aniversário, nada disso: de vez em quando ele aparecia com um disco de presente. Fui ver agora quantos discos Augusto me deu. Contei 32. Help!, Yellow Submarine, Wild Life. Sua generosidade era impressionante. Cheguei a ter três White Albums em casa, todos dados por ele. E percebi agora que, com uma exceção, todos os álbuns de Lennon que tenho me foram dados por ele, provavelmente em uma tentativa vã de me convencer de que John era melhor que Paul. A preferência por Lennon ou McCartney era uma de nossas diferenças; outra é que ele tinha adoração por louras, enquanto eu sempre entendi que menino pobre não pode se dar a esses luxos: para mim valia até cor-de-burro-quando-foge.

Certa época ele se apaixonou por uma potiguar e sua conta de telefone ficou tão alta que começou a criar problemas em casa. Então ele passou a ligar da minha, o que fez com que em seu devido tempo o nosso telefone fosse cortado, por falta de pagamento. Se lembro bem, ele acabou conseguindo encontrar a moça em Natal, mas voltou de coração partido. No fim das contas, não adiantou nada. Só o prejuízo que ele deu em duas casas.

Mais ou menos nessa época comecei a trabalhar, e o primeiro CD que comprei, o Let it Be, foi para dar de presente a ele. Que obviamente repassou a alguém.

Deve ter sido mais ou menos nessa época que descobri que Augusto era, na verdade, uma espécie de Robin Hood dos roqueiros, tirando de quem tem tinha muito para dar a quem não tinha nada. Pegou de volta vários dos discos que tinha me dado, alguns outros sumiram, meu livro do Stokes desapareceu e não sei quem pegou. No fundo acho que foi ele: pegava, emprestava a alguém e esse alguém não devolvia. Mas gosto mais de acreditar em outra hipótese bem plausível, que ele encontrava alguém mais despossuído, alguém tão ansioso para conhecer música quanto eu quando o conheci, e então agia como um redistribuidor de renda e de cultura.

É um papel nobre, esse, e eu nunca reclamei. Fazia parte do seu jeito de ser, e mais que isso, era justo. Eu jamais poderia pagar o que Augusto tinha feito por mim — e considerando que ainda tenho aqueles 32 discos, ele pegou de volta muito poucos. Era justo que, agora, eu desse a minha pequena contribuição à evangelização roqueira que Augusto empreendia cidade afora.

Acabamos nos afastando em alguns momentos — a vida afasta as pessoas o tempo todo, adolescentes crescem e descobrem novos interesses. Uma dessas foi a última. Eu sequer consigo lembrar a razão, se é que houve alguma, nem quando foi. Só sei que foi assim, diria João Grilo, e desde então não ouvi falar dele.

Mas anteontem estava relendo uma “Heróis da TV” antiga, dessas que andei baixando na internet, e na seção de cartas apareceu o seu nome. Foi uma surpresa absoluta. Eu jamais teria imaginado que, em algum momento, Augusto tinha gostado dos super-heróis da Marvel, ainda mais no mesmo ano em que comecei a comprá-las. Muito menos que ele escrevia cartas para revistas; em todo aquele tempo, super-heróis nunca tinha sido um assunto comum. E então fiquei pensando que, no fim das contas, tínhamos mais coisas em comum do que eu imaginava.

Boa é a vida, mas melhor é o vinho

Dia desses o Hermenauta citou um enólogo que disse que nenhum vinho vale mais de 100 dólares. Na hora discordei rapidamente e deixei para lá, porque era tarde e ninguém tem a obrigação de aturar minhas diatribes.

Mas fiquei pensando nisso. O tal enólogo certamente não concorda com Fernando Pessoa, de quem furtei o título deste post. E cheguei à conclusão de que dizer isso é o mesmo que afirmar que nenhum carro vale mais que um Corolla.

Aos fatos: não existem mais carros ruins. Até aqueles chineses que se desmanchavam em movimento hoje conquistam mercado com um nível de qualidade cada vez maior. Mesmo o carro mais barato vendido no Brasil tem confiabilidade, conforto e segurança impensáveis 50 anos atrás.

Assim, o Corolla deveria ser um carro suficiente para qualquer pessoa — ou pelo menos é o que me dizem, porque nunca tive um e andei em muito poucos. Confiável, seguro, equipado com mais que o básico para o seu conforto. Está aí há décadas, e deve haver uma razão para isso.

Mas algumas pessoas precisam carregar carga, precisam de tração 4×4. Outras não abrem mãos das possibilidades de velocidade um Porsche oferece. Algumas pessoas precisam, ou acham que precisam, de mais espaço. Tem gente que faz de um carro uma afirmação ética, e se aboleta num Tesla. Ou faz questão daquela BMW que abaixa para você entrar nela, mais ou menos como uma jega do avô de um amigo já ia abaixando os quartos quando via o dono se aproximar.

No caso dos vinhos, a verdade é que quase todo vinho em torno dos 50 reais no Brasil é ao menos correto, sem grandes defeitos. Geralmente vale o que custa. A questão é que ele não vai oferecer a complexidade de cheiros e gostos que um vinho de 100 dólares — mais ou menos mil reais no Brasil — pode oferecer. Um vinho como o Marques de Casa Concha custa mais ou menos 25 dólares e, ele também, é suficiente para a vontade de beber um bom vinho seja plenamente saciada.

Se o tal enólogo dissesse que um vinho de 100 bidens é mais que suficiente para qualquer pessoa, eu assinaria embaixo. Diria que pode até ser um desperdício para quem gosta mesmo é de um Pérgola. Objetivamente, ninguém precisa beber um vinho desse preço, mas qualquer pessoa acostumada a beber vinho vai perceber a diferença e se sentir mais recompensada por isso.

Mas há possibilidades num vinho que só a fabricação mais elaborada e o tempo podem oferecer. E isso custa dinheiro. Claro, não é para todo mundo — mas um Porsche também não é, e não apenas por causa do preço. É a isso que se chama valor. Eu sempre disse que jamais compraria o Romanée-Conti que vi uma vez por meros 32 mil euros, porque duvido que alguém neste mundo tenha papilas gustativas suficientes para justificar esse preço; quem compra isso segue o mesmo raciocínio — ou falta de — que faz um redator gastar 18 mil reais num MacBook Pro para fazer o que qualquer PC faz por 3 mil. Mas a verdade triste é que eu seria capaz de dar, uma vez na vida, os 4 mil pedidos num Petrus, se 4 mil euros fossem para mim o equivalente a duas mariolas e um cigarro Yolanda.

***

Pensar nisso me lembrou de tempos idos há muito, e de como eu e o vinho sempre fomos bons amigos, ou quase sempre.

Nos anos 70, o que frequentava as mesas da classe média brasileira em Salvador era o Chateau Duvalier, vinho que, acho, nem existe mais de tão ruim que era. Lá em casa muito raramente havia bebidas, mas de vez quando aparecia uma garrafa dessas, sempre tinto, e me deixavam tomar um pouco, com água e açúcar.

No réveillon de 1980 acordei depois que a festa lá em casa, de que eu não tinha participado porque dormia muito cedo, havia acabado. Meio da noite, casa vazia. Vi uma garrafa de Chateau Duvalier rosé, que eu nunca tinha tomado, e resolvi tomar um pouco. Coloquei o vinho, a água, o açúcar, e tomei um gole. Vomitei tudo, imediatamente.

O mais próximo que cheguei de um rosé desde esse dia foi um clarete espanhol, uns 10 anos atrás.

Aí pelo final da adolescência, saindo por algum tempo com uma moça que comprava sempre um branco português chamado Calamares, me acostumei a beber uma garrafa inteira, sem problemas. Pouco depois, fui trabalhar numa agência grande em Salvador, por um salário que, para mim que andava mordendo beira de penico dizendo que era biscoito, era inimaginável.

Resolvi comemorar o meu primeiro salário com uma garrafa de vinho. Parei no Paes Mendonça do Shopping Piedade, no caminho da casa de minha avó, e perscrutei a prateleira de vinhos. Estava decidido a comprar uma garrafa de vinho chique, porque o mundo dá voltas, né, queridinha? Escolhi um vinho do Porto, de que eu já tinha ouvido falar em tantos e tantos livros — o senhor Wickfield castigava um Porto direitinho, em “David Copperfield”. Comprei até uma taça, que não havia na casa de minha avó, para beber um vinho comme il faut. Era dessas taças em que restaurantes simples mas metidos serviam água e refrigerantes.

Cheguei em casa, enchi a taça e em duas horas tinha bebido a garrafa inteira. Acordei debaixo do chuveiro, onde meu tio tinha me jogado para que eu não vomitasse a casa inteira. Foi a pior ressaca de minha vida, e dela não tenho saudades. Mantive distância de vinho do Porto até pouco tempo atrás, quando um amigo trouxe uma garrafa de Portugal para mim.

E os anos se passaram. Aprendi que vinhos suaves de mesa, os velhos e bons vinhos de garrafão, ofereciam excelente relação custo-benefício, e que o Figueiras era melhor que o Dom Bosco. Devo noites muito agradáveis a eles.

Na virada dos anos 80 para os 90, como resultado da evolução da vitivinicultura brasileira, começou-se a falar mais amiúde em uns tais “varietais”; até então, nós da plebe ignara só conhecíamos tinto, branco, rosé e champagne Georges Aubert — e o Surpresa, um espumante artificial que devia envergonhar seu fabricante. Foi quando surgiram, pelo menos para mim, marcas sofisticadérrimas como Forrestier e Almadén. Na minha imaginação, o Forrestier estava ali, pau a pau com o Chateau Lafite que eu sequer sabia que existia.

Em 92, 93, um sábado em que um dinheirinho a mais apareceu, fui até o supermercado e comprei uma garrafa de vinho, para beber enquanto lia os jornais do dia que só chegavam à tarde em Aracaju, o Jornal do Brasil e a Folha de S. Paulo.

Escolhi com mais cuidado que daquela vez em Salvador. Por via das dúvidas, apostei num branco de marca reconhecida e elegante: um “semillon blanc” da Almadén — o blanc era por conta deles, claro.

E enquanto bebia, sentia um cheiro estranho naquele vinho. Cheiro de algo meio podre, passado. Era como se eu tivesse comprado um minas frescal e recebido um camembert.

“Então esse é um vinho sofisticado”, foi o que pensei. “Então esse cheiro de cavalo suado é o cheiro da sofisticação, da elegância. Melhor eu me acostumar, não vou ser pobre para sempre.”

Só muito tempo depois entendi que aquele vinho estava contaminado com Brett. E o pior é que, depois de metade da garrafa, eu já estava gostando mesmo do negócio.

O tempo passou, os chilenos apareceram, vinho virou moda. Como já disse aqui antes, bebo bem mais que os padres do Vaticano, com a vantagem de não gostar de menininhos. Apesar de toda aquela conversa da primeira parte deste post, os vinhos lá de casa nunca passam dos 250 reais, e a grande maioria anda aí na faixa dos 50, porque eu gosto de beber mas não tenho dinheiro para comprar um Corolla e não tenho dinheiro para comprar um premier grand cru classé ou um brunello de Montalcino.

E porque, no fim das contas, é Pedro quem me orienta ainda hoje, a lembrança dele no dia em que, jovens estroinas que éramos no comecinho dos anos 90, resolvemos esbanjar comprando um Chateau Duvalier — sempre ele. Pedro não viu a garrafa e quando recebeu o copo, deu o primeiro gole, fez uma careta e se indignou:

— Oxente, e agora deram para falsificar o Dom Bosco, foi?

Joe, o Fugitivo

Durante anos, em conversas sobre seriados que marcaram a infância dos velhinhos da minha geração — “Túnel do Tempo”, “Viagem ao Fundo do Mar”, “Terra de Gigantes”, “O Incrível Hulk”, “O Homem do Fundo do Mar”, tantos e tantos —, eu sempre acabava perguntando por um de que eu gostava. Se chamava “Joe, o Fugitivo”. Ninguém lembrava.

Certo, era um seriado obscuro até mesmo nos EUA. Não passou de duas temporadas de 13 episódios cada. Mas por alguma razão a Globo do Rio de Janeiro o exibiu a partir de abril de 1975, apenas seis meses depois de ter estreado nos EUA. Mas também aqui ele nao parece ter feito muito sucesso e não ficou muito tempo na grade, ao que parece.

Ainda assim, não me parecia possível que ninguém lembrasse dele. Tanta gente lembrava de coisa pior. Só muitos anos depois entender que o problema não era a memória dos outros. Eles não lembravam porque não podiam. O seriado nunca foi exibido em Aracaju, simples assim.

O processo de implantação das redes nacionais de TV foi demorado. No que diz respeito à Rede Globo, durante todos os anos 70, apenas os telejornais nacionais e, acho, o Fantástico eram exibidos simultaneamente em todas as suas afiliadas e retransmissoras. O resto era um samba do crioulo doido, com fitas quadruplex e latas de filme viajando Brasil afora e sendo exibidos em uma praça de cada vez.

E cada emissora escolhia o que exibir nos horários que não eram ocupados pela programação nacional. Em 79, por exemplo, a TV Aratu, retransmissora da Globo na Bahia, exibia “Daniel Boone” ao meio-dia, o que não acontecia em mais nenhum lugar. (Uma pequena curiosidade: se você procurar internet afora, vai encontrar a informação de que a primeira temporada desse seriado, em preto e branco, só foi exibida uma vez no Brasil. Não é verdade. Ela foi exibida em Salvador no início de 1980 pela TV Aratu, que não costumava respeitar a ordem dos episódios. Na verdade, a Globo também não).

Quando a Globo Rio desistiu de exibir “Joe, o Fugitivo”, simplesmente passou as latas de filme adiante para suas afiliadas. Nos quatro anos seguintes deve ter pulado de cidade em cidade, até chegar a vez de Salvador.

No final dos anos 70 a TV Aratu já tinha sua antena de microondas, mas filmes e seriados eram exibidos de acordo com os seus interesses. E assim, nos fins de manhã do final de 1979, ela resolveu exibir “Joe, o Fugitivo”, provavelmente porque o seriado finalmente estava disponível e ninguém queria aquele bagulho.

A história era uma mistura de “Lassie” e “O Fugitivo”, e o título brasileiro era mais bandeiroso que o original americano, Run Joe Run: um cachorro do exército americano, Joe, é acusado de um ataque que não cometeu e condenado à morte, mas consegue fugir. Uma recompensa é colocada sobre sua cabeça, mas o seu adestrador sabe de sua inocência e vai atrás dele; no entanto, Joe acha que o adestrador quer sacrificá-lo, e foge dele; enquanto isso, vai ajudando as pessoas que pode no caminho,colocando em prática o que aprendeu no exército.

Na segunda temporada o enredo do seriado mudou completamente, provavelmente porque a audiência se mostrou pífia e a criançada, seu público-alvo, cansou do jogo de gato e rato: agora Joe andava ao lado de um jovem mochileiro que vagava país afora, aparentemente sem destino — quer coisa mais anos 70 do que isso? —, e os dois continuavam ajudando as pessoas no caminho.

Ao menos em Salvador, “Joe, o Fugitivo” foi exibido por pouco tempo, entre o fim de 1989 e o começo de 1980. Em mim, pelo menos, o resultado foi uma paixão por pastores alemães que dura até hoje — embora, inexplicavelmente, nenhum dos meus cães se chame Joe.

Lembrei do seriado dia desses porque, de repente, percebi que isso nunca mais vai se repetir.

Desde a primeira metade dos anos 80 as TVs estão totalmente integradas em tempo real. O espaço para a programação local encolheu absurdamente; a programação nacional é igual em todo lugar, a todo tempo. Quem cresceu nos anos 80 e 90 vai ter exatamente as mesmas lembranças e os mesmos referenciais, seja onde for.

Mas até isso é coisa velha, caquética. TVs abertas não importam mais, são um fenômeno do passado, já morto. A meninada que cresce agora vai ter outros referenciais, todos tirados da internet ou do streaming. E isso quer dizer uma infinidade de coisas simultâneas, cada vez mais fragmentadas, mais assíncronas. A ideia de as pessoas encontrarem algo em comum numa coisa que viram há muito, muito tempo em pouco tempo vai ser um delírio, apenas. Não acredito que muita gente sinta falta disso. Mas vai fazer. É mais um elemento de união que se vai, por desimportante que seja. E o mundo não ficará melhor por isso.

Bizz

Muitas, muitas eras atrás o Marcus ficou puto comigo porque falei mal da Bizz. Eu disse que ela era “uma das revistas mais medíocres e provincianas da história do país, onde músicos frustrados escreviam sob pseudônimos resenhas sobre suas próprias bandas, que só eles ouviam, e se deliciavam em anunciar bandas de um buraco qualquer da Inglaterra, que ninguém jamais ouviria.”

Com elegância, o Marcus apontou qualidades na Bizz que eu, claro, não quis mencionar. A principal era o fato de a revista ter sido a mais importante formadora de público roqueiro dos anos 80, a triste geração de que o Marcus e eu fazemos parte.

Lembrei da revista dia desses porque achei nos meus arquivos um documentário em vídeo chamado “Bizz – Jornalismo, Causos e Rock and Roll”. Já tinha visto, mas tinha esquecido porque ele é francamente ruim: mal concebido, mal dirigido, mal fotografado, mal editado. Mas oferece ao menos um vislumbre do que foi a revista, porque traz depoimentos em primeira mão de gente que participou de sua trajetória, ainda que em entrevistas mal-conduzidas.

Em retrospecto, a Bizz chegou um pouco atrasada ao cenário, porque havia pelo menos três anos que o rock brasileiro se consolidava no alto das paradas de sucesso. Mas esse atraso era apenas relativo. O Rock in Rio tinha sido, como dizem, um divisor de águas. Durante todo o final de 1984 a Globo tinha exibido, diariamente, o “Minuto do Rock”, num esforço para garantir o seu investimento como patrocinadora do evento, e começando um processo de doutrinação que atraiu muita gente — como eu. Havia um alvoroço generalizado, que se combinava com a expectativa pelo fim da ditadura. O festival coincidiu com a eleição de Tancredo Neves, foi um sucesso e em 1985 o rock era a trilha sonora do país.

Na época, pululavam nas bancas, especialmente do sudeste, uma infinidade de revistas normalmente malfeitas e sempre sem distribuição nacional adequada. Sem ter conhecido a Pop, revista da Abril que, pelo que deduzo das capas, era uma mistura de revista Bizz e Capricho, as únicas publicações a que o país tinha acesso regular, se não me falha a memória ruim, eram a Roll e a Somtrês.

A Roll era uma revista menor e malfeita, mas dedicada exclusivamente à música. A Somtrês se dividia entre música e aparelhagem de som. De modo geral era uma revista mais sólida, e fez algumas boas reportagens. O problema é que ela era velha, feita para anciãos esnobes que podiam gastar dinheiro; não tinha como público-alvo o jovem urbano roqueiro. Ainda assim, muitos dos críticos que mais tarde chegariam à fama de nicho da Bizz já estavam ali: José Emílio Rondeau, Roberto Muggiati, Maurício Kubrusly, talvez a Ana Maria Bahiana, uns tantos por aí.

A revista que a Abril lançava em agosto de 1985 finalmente mirava esse espaço específico. Com um projeto gráfico inspirado na estética new wave, demorou alguns meses até ela consolidar um formato próprio; em seus primeiros números, trazia seções sobre cinema, instrumentistas, até cifras de músicas, coluna de fofocas e de heavy metal.

O sucesso da revista foi absoluto. Até hoje, muita gente escreve showbiz com dois ZZ, por causa de uma de suas seções. E então é aquilo que o Marcus disse: a revista introduziu a abordagem cultural paulista ao resto do país com uma eficiência maior que a Globo, por exemplo — que, aliás, nunca escondeu o seu carioca way of life. Atenta ao que acontecia lá fora, especialmente na Inglaterra, e tentando atender a vários nichos da cultura jovem urbana, a Bizz inegavelmente aproximava os grotões do mainstream paulista.

Havia um descompasso enorme. Um exemplo bobo: até ler a matéria de capa da edição de estreia, eu não fazia ideia de que Bruce Springsteen fazia tanto sucesso, ou que seus shows duravam quatro horas. Foi o não reconhecimento desses aspectos positivos que irritou o Marcus, e isso é compreensível.

Porque com todos os defeitos, a importância histórica da Bizz é inegável. A época de ouro do rock brasileiro foi o último momento em que a música conseguiu unificar e dar voz a uma geração inteira: depois disso veio o caos, a fragmentação em nichos, isso que a gente vê hoje e que nos surpreende a cada dia, toda vez que descobrimos que um sujeito de quem nunca ouvimos falar, e cuja música é feita inteira no computador, faz shows para dezenas de milhares de pessoas que cantam suas letras inanes do início ao fim. Musicalmente, a sensação que se tem é que chegamos ao apocalipse. O cenário da música brasileira nunca foi tão ruim. Diante de quatro tão tétrico, fica mais fácil achar que a Bizz eternizou em tinta impressa uma época que hoje parece dourada. De maneira às vezes deturpada, muitas vezes canalha, ela foi uma coadjuvante importante nesse processo de uniformização cultural de que, às vezes, tanta gente sente falta, eu inclusive.

Mas importância histórica o nazismo também teve. A Bizz trazia também o que São Paulo tinha de pior: um colonialismo cultural abjeto, uma ignorância profunda acerca do que está além de seus horizontes e que, não por coincidência, é talvez a característica definidora da “crítica de rock”, de Christgau a Lester Bangs. E a canalhice pura e simples, descarada, sem vergonha. E a inconsistência, a falta de um padrão estético claro e honesto, uma glorificação da subjetividade quase absoluta. Um exemplo são dois comentários, separados por alguns anos, que José Emílio Rondeau fez sobre dois discos de McCartney:

Talvez fosse disto que o velho Macca precisava para neutralizar a dormência criativa que o vinha atacando: cabeças diferentes, opiniões externas. Pete Townsend, Phil Collins, Carlos Alomar (guitarrista de Bowie), Eric Stewart (ex-10cc) e zilhões de artistas de primeiro escalão deram sua contribuição ao melhor disco de Paul desde… quando, mesmo? Com Eric Stewart repartindo a parceria em 60% das músicas e Hugh Padgham polindo uma produção ultra-moderna, Paul ressuscitou. Durará? (José Emílio Rondeau, Bizz 16, novembro de 1986, sobre o Press to Play, considerado por muitos o seu pior álbum)

Sete anos depois…

“O Paul McCartney quer virar Gipsy Kings”, disparou um adolescente fã de grunge, depois de ouvir pela primeira vez “Hope of Delivery”, uma das faixas “politizadas” do novo álbum do velho Macca. Talvez o menos ruim do últimos discos lançados por Paul em dez anos, Off the Ground é uma tentativa do ex-Beatle (êta, sombra difícir) de recuperar sua credibilidade artística/musical. Mas o máximo que consegue é ser apenas suportável ou parecido com alguém. Maybe next time… (José Emílio Rondeau, Bizz 93, abril de 1993)

Talvez um exemplo do que ela tinha de melhor e pior seja a seção a que o Marcus se referiu, a Porão, que em toda edição trazia duas bandas gringas e duas brasileiras ainda desconhecidas.

Na verdade, as gringas só eram desconhecidas porque não tínhamos acesso ao que se fazia lá fora. Mas até aí tudo bem, era esse o papel da revista em tempos de Telex. Da grande maioria das brasileiras, no entanto, nunca mais ouviríamos falar — porque aí era o negócio dos amigos, as canalhices a que me referi no texto original.

Eu fui um leitor assíduo da Bizz, já partir do número 1. É uma revista que ajuda a definir os meus anos 80. A última edição que comprei foi a de julho de 1989, quando ela mudou sua logomarca pela primeira vez: trazia Prince na capa e uma entrevista razoável com Paul McCartney. Mas eu já tinha deixado de comprá-la regularmente desde o ano anterior. A Bizz inicialmente me interessava porque me falava de coisas que eu não tinha ouvido, e nisso ela foi um guia cuja importância eu não posso esquecer; mas no fim dos anos 80 eu já tinha ouvido a música que ela cultuava, e não gostava dela.

A partir daí não sei mais nada sobre a revista. O documentário mencionado acima dá um resumo razoável sobre sua trajetória: a revista mudou de nome para Showbizz, decaiu, decaiu mais, deixou de ser publicada, voltou com o nome original. À medida que o rock ia perdendo espaço para outros gêneros, aparentemente ela se dirigia a um nicho cada vez menor e mais desinteressante, ignorando o resto da música que se fazia no mundo lá fora. Enquanto a Bizz olhava para porões em Manchester o país gestava uma revolução. Em Recife o mangue bit tomava forma, o tecnobrega se consolidava em Belém, e durante toda a sua existência a revista ignorou a evolução constante da música baiana, apenas para dar exemplos que conheço razoavelmente.

A internet jogaria a pá de cal sobre a Bizz, escancarando o seu papel de mero mensageiro para a colônia. Mas agora ninguém mais precisava de uma intermediária, a revista não tinha por que continuar existindo.

A geração formada pela Bizz parece trazer, ainda hoje, essas características. Você vai encontrar por aí muitos roqueiros decadentes lamentando o fim do ciclo roqueiro no país; dizendo que quando o sertanejo tomou conta das paradas no início dos anos 90 era resultado da crise estética da era Collor, ou então que o crescimento e enriquecimento da classe C jogou o padrão estético do brasileiro na latrina — como se aquelas bombas dos anos 80 fossem melhores. Mas se alguém olhar com um tico de atenção as paradas musicais dos anos 80, verá — especificamente nas paradas paulistas — a ascensão lenta e constante desse novo sertanejo, modernizado, maleável às influências musicais de seu tempo como qualquer outra. Enquanto o rock se esgotava em seu universo da classe média urbana, o sertanejo crescia oferecendo respostas musicais e líricas a um universo muito maior de brasileiros.

Disso eu sempre soube. Mas acho que faltava reconhecer que tudo isso, ao menos em parte, foi influenciado pela Bizz. Hoje ela pode ser lida neste site, que eu de vez em quando frequento quando bate alguma onda de saudosismo. Depois de velho, passei a gostar da revista de novo.