Jesus

É fim de ano e a época em que proliferam textos sobre Jesus Cristo, de todos os tipos. El País publicou um artigo de Juan Arias sobre o Jesus histórico, meu “abominável homem das neves” preferido.

É um texto razoável, embora não muito elaborado, e eu assinaria embaixo de muito do que ele escreve. Mas também tem algo que me deixa incomodado. E não é ele dizer repetidas vezes que, para a Igreja, Jesus nasceu no dia 24 de dezembro.

De modo geral, o que realmente me incomoda nessas avaliações são as convicções absolutas, e Arias é pródigo nelas.

Para mim, a única certeza justificável em se tratando de Jesus é a dos crentes, que veem nos Evangelhos a verdade absoluta. Não deveria ser a de nenhum historiador. A maneira mais sensata de enfrentar a questão do Jesus histórico é, em primeiro lugar, dando-lhe a devida importância: é um assunto fascinante, que interessa muito a mim e a muita gente, mas é irrelevante. Fosse quem fosse Jesus, o que realmente importa é o que Seus seguidores — principalmente Paulo de Tarso — fizeram d’Ele.

Em segundo lugar, é preciso usar uma combinação de bom senso e respeito histórico. A humanidade não mudou tanto de lá para cá: mudaram os costumes, mudaram as circunstâncias, mas a essência humana continua a mesma. É a mesma desde Homero, aliás, e certamente desde muito antes. Por outro lado, os padrões éticos e mesmo parte dos lógicos que utilizamos hoje foram definidos pelo cristianismo; não apenas em concílios e conclaves, mas principalmente no dia a dia, na tentativa abnegada e bem-intencionada de aplicação de seus preceitos à vida cotidiana. É preciso abdicar deles, tentar entender a lógica do seu tempo, mas também não custa muito entender que há um limite para as diferenças. O cristianismo não apenas modificou o mundo, mas se adaptou a ele; e não foi à toa que escolheu o 25 de dezembro, dia do Sol Invictus e solstício de inverno celebrado pelos romanos, como data do nascimento do Senhor, além de modificar a própria natureza do messias aguardado pelos judeus, na base do “não foi bem isso eu queria dizer”.

Para historiadores, devido à total ausência de registros fora da literatura canônica e apócrifa, e levando em conta a força da tradição oral que os precedeu na criação e transformação da narrativa que se tornaria prevalente, absolutamente nada deveria ser tomado por certo. Nem mesmo a existência de Jesus. Eu acho improvável que Ele não tenha existido, ou que não tenha sido crucificado — o que mais podia fazer as pessoas pegarem um símbolo de humilhação como a cruz e fazer dele um ideal de vida, mais ou menos como gays americanos assumiram uma denominação derrogatória como queer e seguiram em frente com ela? —, assim como acho improvável que Ele fosse exatamente como dizem as Escrituras; mas uma coisa é achar, outra é jogar essa certeza nas fuças alheias, dizendo cabalmente que “nada mais falso”, ou “Na verdade, aos 30 anos Jesus se mostra capaz de discutir com os doutores da lei, conhecia os textos sagrados do judaísmo, várias culturas como a grega ou a dos gnósticos, e outras religiões como o budismo”.

A partir da primeira vírgula desse último trecho, sinto discordar, é tudo ilação. Arias diz que Jesus conhecia bem a cultura grega. Baseado em quê? Meu conhecimento dos Evangelhos é pífio, e talvez por isso não lembre de nenhuma referência do De Cujus a Ésquilo, Aristófanes ou Aristóteles. Se Arias supõe todo esse conhecimento a partir dos raciocínios de Jesus expostos naqueles versículos, ou mesmo em outros textos apócrifos, não apenas subestima a cultura hebraica e inconscientemente tenta impor um eurocentrismo que anda meio fora de moda, mas ignora as contribuições dadas seguidamente por milhares de seguidores ao recontar Sua história. Quanto às discussões com os doutores da lei, Arias comete o erro gravíssimo de tomar os Evangelhos como verdade histórica sem questioná-los.

Um dos eventos que mais me fascinam nos Evangelhos, e que me faz duvidar em princípio de cada fato narrado neles que não tenha sido comprovado historicamente, é o massacre dos recém-nascidos promovido por Herodes. Ele só existe nas Escrituras e nenhum historiador respeitado acredita que tenha possivelmente ocorrido. E no entanto, em apenas algumas décadas milhões de pessoas acreditavam piamente que Herodes tinha passado os bebezinhos no fio da espada. Isso mostra a força dos Evangelhos, sua capacidade de criar pós-verdades, mostra um pouco da lógica por trás do raciocínio que levou milhares de gentios, todos os anos, a se converterem. Por si só já seria um recado importante para historiadores.

É por isso que não sei se dá para negar com absoluta certeza que Jesus era analfabeto, como faz Arias. Todo o ministério de Jesus foi feito de maneira precária, sem recorrer à escrita, como provavelmente era a regra naquele tempo e naquele lugar. É mais lógico supor que Ele fosse analfabeto, mesmo. Mas há espaço para discussão.

Por um lado, não é absurdo acreditar que Ele tinha um domínio teológico acima da média, o suficiente para garantir o respeito de Seus seguidores (embora o público não fosse lá dos mais exigentes), e isso em tese pressupõe um nível de estudo difícil de ser conseguido apenas por via oral — embora eu ache que isso seja perfeitamente possível, ainda mais naqueles tempos; é só imaginar a dimensão do conhecimento revolucionário criado a partir dos diálogos com Sócrates, posto no papel muito tempo depois.

Ao mesmo tempo não há nenhuma referência a algum escrito d’Ele, e isso é incômodo.

É improvável que um evangelizador alfabetizado e com a posição e as responsabilidades sociais de Jesus dentro do seu círculo não tivesse escrito cartas, como Paulo faria algumas décadas depois, ou deixasse algum documento escrito. Eram uma ferramenta importante para a realização da sua missão, e às vezes até mesmo uma providência necessária e corriqueira. Imagine-se um seguidor de Jesus que tem uma carta de próprio punho do Senhor em suas mãos. Você certamente a guardaria com sua vida, como guardaram as epístolas de Paulo. É claro que nenhum documento semelhante precisaria ter sobrevivido, porque aqueles tempos não eram exatamente um passeio nos campos elísios; no entanto, forçosamente haveria alguma referência a ele, em algum lugar, mesmo que num apócrifo, da mesma forma que as palavras de Sócrates sobreviveram através de Platão e Xenofonte. Inventaram uma infância para Jesus, uma filiação divina, um parentesco com o que provavelmente era o mais importante pregador de seu tempo, João Batista, e até mesmo um milagre bem batuta de transformar água em vinho — mas não inventaram uma carta escrita por Ele, e isso é significativo.

Também acho que não há por que afirmar que Jesus era casado só porque, a princípio, todo judeu era casado. Independentemente do fato de sempre existirem exceções, a vida de pregador errante escolhida pelo filho de José (“Meu uma ova!”, grita José) tornava o casamento uma escolha muito difícil, até improvável. Os apóstolos não eram casados (aliás, se não me engano Pedro era, mas disse à patroa que ia comprar mirra e nunca mais voltou). É possível que estivessem seguindo o exemplo de Jesus, ou simplesmente se virando dentro do que era possível, como Ele fez. Não havia uma conversa de abandonar tudo e seguir Seus passos? E a vida difícil que escolheram em nome de sua fé não era exatamente de encher os olhos de pais em busca de um marido para suas filhas.

Além disso, me irrita profundamente a certeza de que Ele era casado com Madalena. Se eu não soubesse que a tese era anterior, diria que quem afirma isso levou “O Código da Vinci” a sério demais. Aqui parece haver a contaminação de uma hipótese histórica pelas convicções de outra era. Assim, Jesus não apenas devia ser casado, mas (numa variação matrimonial e feminista da santidade de Maria) ela era uma senhora douta e importante e houve uma campanha posterior para denegri-la, movida pela conhecida misoginia da Igreja.

Por favor, das duas, uma: ou a gente adequa a vida singular de Jesus aos padrões de Sua época, e Ele então seria casado, mas muito provavelmente com uma mulher comum, que ficava cuidando da casa e lamentando o maluco com quem tinha juntado os trapos, ou O transforma em um revolucionário dos costumes, e então Ele tanto poderia ser casado com uma mulher à frente do seu tempo quanto ser solteiro. É um silogismo estranho: Arias afirma que Jesus apareceu primeiro para Madalena porque era casado com ela, mas esse casamento é inferido porque Ele apareceu primeiro a ela.

É importante lembrar também que o cristianismo paulino que se tornou hegemônico era apenas um entre tantos cristianismos. Isso está bem representado nesse trecho de Arias:

Foi sempre esse fato a grande dor de cabeça de Tomás de Aquino, doutor da Igreja, que faleceu sem entender por que Jesus não apareceu em primeiro lugar para Pedro, que era o chefe do grupo de apóstolos, e sim para uma mulher.

É aí que está a questão. Isso era dor de cabeça para Tomás de Aquino porque ele raciocinava necessariamente dentro da lógica cristã definida pela narrativa oficial.

Para começar, ele parte da certeza de que a ressurreição aconteceu, que não foi uma possível combinação de alucinações individuais, em um momento de choque e dor, e invenções malandras posteriores. Tudo bem. Além disso, desconfio que a ideia de Pedro como “pedra fundamental” da Igreja por indicação de Jesus é uma construção posterior, consolidada paralelamente ao cristianismo paulino a partir do fortalecimento da posição política de Pedro, e tão imaginária quanto o galo que cantou três vezes. Mas abstraia tudo isso, fuja da narração canônica, e tudo pode se encaixar. Jesus apareceu primeiro a Madalena como poderia ter aparecido para Tadeu ou para o bodegueiro da esquina, por um lado. Por outro, não seria cinismo demais supor que a narrativa é verdadeira e Madalena apenas teve uma alucinação primeiro. Obviamente, o importante aqui não é a ressurreição em si, mas a lógica que levou a pessoa que escreveu isso pela primeira vez a criar essa situação específica.

Madalena é o resultado da nossa evolução social. As conquistas feministas levam algumas pessoas, mais radicais e chegadas num revisionismo, a exigirem um lugar para a mulher numa história que sempre foi eminentemente masculina, nem que para isso que seja preciso reescrever a história; são os Kruschevs do Senhor. Ao mesmo tempo, há algo de arraigadamente machista nessa certeza: costumes da época só são válidos se interessam à nossa tese.

Eu consigo imaginar um cenário muito simples para os anos que se sucederam à crucifixão de Jesus, e ele ajuda a explicar o problema de Madalena.

Jesus morre e o seu círculo de seguidores — que pode incluir seu irmão Tiago, sua mãe Maria e sua mulher Madalena — tenta dar prosseguimento ao seu trabalho. É um círculo pequeno, conservador. Eles operam dentro dos limites do judaísmo, e seu sucesso é, na melhor das hipóteses, moderado. Eles estão felizes com o seu pequeno status quo, com o respeito que aquele pequeno grupo lhes presta, com a certeza de que estão honrando a memória e fazendo a vontade de um homem amado e respeitado, e como um bônus de Natal estão construindo o seu caminho para se dar bem no Juízo Final. Mesmo dentro desse pequeno círculo a mensagem cresce, sai de controle, as pessoas que a repetem fazem seus próprios acréscimos, ajudam a criar a lenda de Jesus não mais um homem santo, mas um deus.

E então chega um sujeito de fora, sem compromisso com esse legado. Ele se chama Saulo de Tarso, não conheceu Jesus, e a imagem que faz dele é principalmente uma recriação. Saulo não é apenas judeu, mas é romano também. E o choque de concepções que se segue, assim como a disputa por poder, é vencido pela concepção paulina, cosmopolita e evangelizadora.

Mesmo dentro desse panorama, enxovalhar a reputação de uma veneranda Madalena que tinha dividido a cama e a pregação com Jesus cada vez mais Cristo seria impossível, pelas reações que geraria.

Mas nada disso importa, na verdade. O Jesus histórico não existe, nunca existiu. O verdadeiro Jesus era filho de Deus, nasceu em Belém, foi visitado por três reis magos, aos 13 anos impressionava os doutores do templo com Sua sabedoria, e aos 30 levantava os mortos e foi crucificado mas ressuscitou no Domingo de Páscoa. Foi esse Jesus que, nos últimos 1700 anos, escreveu a história do Ocidente e ajudou a definir os rumos do mundo. O resto é lenda.

O Natal de 1980

No Natal de 1980 eu não ia ganhar nenhum presente.

Minha mãe nos avisou. A coisa está complicada, ela me disse. Não vai dar para comprar presentes para vocês. Eu entendi. Eram cinco filhos, e pelo visto daquela vez não seria possível dar presentes. Tudo bem.

Eu sempre tinha recebido presentes interessantes no Natal. A verdade é que estava acostumado a ganhar o tipo de presente, em qualquer momento do ano, que outras famílias só trocavam no Natal, no máximo no Dia das Crianças e em aniversários. E por isso, o Natal era reservado para presentes bem mais caros, aqueles que você passava o ano desejando.

Devia ser uma seis da tarde, um pouco mais que isso, quando minha mãe chegou afobada em casa, carregando um saco grande de plástico, desses usados para colocar lixo. Dentro dele uma porção de brinquedos. Eram todos brinquedos muito baratos, o tipo que não costumávamos ganhar, ainda menos em datas especiais. Porque Natal, aniversário, Dia das Crianças, todos esses dias mereciam presentes mais caros, mamãe fazia o possível para nos dar o que pedíamos.

O meu foi uma lancha de plástico amarela. Não uma lancha chique, com motor ou plástico de qualidade ou cheia de detalhes: uma lancha simples, sem absolutamente nada, plástico e uns adesivos de papel, apenas. O tipo de presente que se compraria mais tarde em lojas de 1,99, em dollar stores.

Foi o presente mais vagabundo que eu ganhei em qualquer Natal. Foi o melhor presente que eu ganhei em qualquer Natal. Aquilo tornou aquele Natal pungente, doce, inesquecível. Ainda que não tivéssemos tantas provas da sua dedicação a todos nós, naquele momento nós saberíamos.

Por uma dessas estranhezas da vida, não lembro bem dos presentes que ganhei ao longo daqueles anos. Lembro mais dos que não ganhei: o Panzer, o Stratus, o Ar-Tur, porque minha mãe não gostava de brinquedos desse tipo, controlados por controle remoto. Mas sei que no Natal de 1980 eu ganhei uma lancha de plástico amarelo.

Antes e depois ganhei presentes muito mais caros. Nunca mais ganharia de Natal um presente tão simples, tão barato, tão vagabundo. Mas também nunca mais ganharia um presente tão maravilhoso, tão carregado de amor e esforço quanto aquela lancha de plástico amarelo.

Aqueles presentes tiveram um significado muito maior que qualquer outro depois. Porque percebi imediatamente que era o resultado de um esforço grande. Aquilo era tudo o que ela podia nos dar; talvez fosse até mais do que era possível. Estávamos todos conformados com o fato de não ganhar presentes; e mesmo assim ela fez um esforço grande para evitar que seus filhos não ganhassem nada. Aqueles presentes foram uma surpresa. Eu sabia que os tempos eram difíceis.

Mais tarde, depois da ceia, assisti a uma adaptação de “Romeu e Julieta” na TV Aratu, estrelada por Fábio Júnior e Lucélia Santos. Jamais esqueceria da cena em que Romeu, num porão pedregoso de uma igreja, acreditando que sua Julieta tinha morrido, se oferece a um escorpião: “Vem, bicho nojento.” Quase quatro décadas depois pude rever essa cena no YouTube, e me impressiona ver como eu lembrava perfeitamente dela.

Esse é o Natal de 1980: Shakespeare e uma lancha de plástico amarelo. É também a salada de frutas na mesma bandeja inox que um ano antes, em tempos de fartura absoluta, em tempos de seis empregados em casa, tinha presenciado um Natal tão farto, mas do qual não lembro que presente ganhei.

Vieram outros presentes depois. De alguns ainda lembro, a maioria se perdeu na minha memória. Depois disso, uns poucos Natais permanecem: o primeiro Natal da minha filha, o Natal em que passei doente. Mas em nenhum deles minha mãe chegou com um saco plástico, trazendo dentro dele o melhor presente que eu recebi em minha vida.

Dia desses, uma moça encontrou minha irmã e falou da gratidão que sente em relação à minha mãe: ela era doméstica num apartamento vizinho, ficou doente, e mamãe a colocou lá em casa e garantiu que ela melhorasse. Eu não lembro disso, e minha mãe também não. Mas essa moça lembra, e isso é o bastante. Do que lembro é do Natal em que ganhei uma lancha de plástico amarelo, e decidi que aquele era o melhor presente que eu ganhei em toda a minha vida. Porque tem gente que é filho de gente boa, e tem gente que é filho de gigantes. Eu tenho essa sorte.

Get Back and Let it Be

Eu já escrevi sobre isso aqui, em mais de um momento, mas não custa escrever de novo.

Basicamente, o filme Let it Be pode ser visto como a crônica de uma banda superando suas dificuldades através da força redentora da música.

A primeira parte do filme foi filmada nos estúdios Twickenham, em Londres, a partir de 2 de janeiro de 1969. Frio de assustar pinguim num espaço enorme e vazio com um bocado de gente estranha em volta: fazer música assim, principalmente sem se darem o tempo necessário para superar as sessões conturbadas do “Álbum Branco”, era impossível, como apontou George Harrison. O resultado é um clima estranho, hostil até. Vemos uma banda que está claramente se desintegrando, em que a intolerância mútua não para de aumentar. A presença tóxica de Yoko Ono não ajuda em nada; o vício de John Lennon em heroína, tampouco. Paul McCartney tenta fazer a banda funcionar tomando a frente, o que para os outros soa apenas como uma tentativa de controlá-los e fazer deles sua banda de apoio, uma impressão que talvez não fosse totalmente disparatada.

Quando Harrison finalmente saiu da banda, depois de uma discussão com Lennon, uma de suas condições para voltar era a de que saíssem de Twickenham e fossem para o estúdio da Apple. O estúdio montado por um picareta chamado Alexis Mardas não valia nada, mas ali era sua casa — mais que isso, era um estúdio de gravação, o seu ambiente natural. Foi a decisão mais acertada que poderiam tomar. Os ânimos melhoraram instantaneamente, e certamente para isso contribuiu também a presença de Billy Preston, obrigando-os a se comportar com civilidade. Essa melhora é facilmente perceptível no filme, mas também nas gravações não incluídas no produto final.

Finalmente vem o concerto no telhado da Apple, no penúltimo dia de gravação. Foi outra das condições de Harrison, que não queria fazer o grande show ao vivo que McCartney propôs (pensaram até em Pompéia, antecipando o Pink Floyd em alguns anos). Apesar do frio desolador, a intimidade entre os quatro, o entrosamento musical único, a cumplicidade histórica entre Lennon e McCartney e, paradoxalmente, as semanas desgraçadas que passaram ensaiando fazem daqueles poucos minutos quase um revival da velha banda que havia conquistado e ajudado a mudar o mundo. Naquele momento não existem os problemas financeiros, as diferenças de visão artística e musical, a queda de braço entre McCartney e os Eastman e os outros Beatles ao lado de Allen Klein. O que existe é a música, exatamente o que fez deles a maior, a melhor e a mais influente banda de toda a história.

Se s Beatles tivessem continuado, o Let it Be seria visto assim: a história de uma banda em crise que graças à música supera os seus problemas; essa é a sua estrutura básica. Mas não foi bem isso que aconteceu, e o resultado é um filme que, sendo lançado com um ano de atraso, um mês após o anúncio da separação, soa unicamente como um epitáfio, um pós-escrito, e não dos melhores. Não é mais o crescendo musical e pessoal, a apoteose alegre, os olhares cúmplices entre Lennon e McCartney que sobressaem: é a irritação, a má vontade, o descaso, é Harrison dizendo que tocará como McCartney quer, ou não tocará se ele preferir assim.

Mas não é só isso. O fato é que, além do interesse histórico e musical, o Let it Be é um filme muito ruim.

Eu assisti a ele — ou melhor, vi que estava passando na televisão e aturei alguns momentos — no dia 14 de dezembro de 1980, quando a TV Aratu o exibiu numa tarde quente de domingo, certamente motivada pelo assassinato de Lennon uma semana antes. O pouco que lembro consegue evocar apenas uma palavra em mim: tortura. Mas tarde, já fã da banda, assisti várias e várias vezes. Continuo achando muito, muito ruim.

Os Beatles cometeram um erro gravíssimo ao entregar uma tarefa que se revelaria hercúlea a Michael Lindsay-Hogg. Verdade seja dita, seria muito difícil para qualquer um ter que lidar com uma banda em crise mas perfeitamente consciente do seu tamanho e do seu poder, e certamente com um profundo senso de unidade quando confrontada com qualquer pessoa de fora — o que incluía Brian Epstein e George Martin. Mas além de tudo isso, ele não tinha a experiência necessária, e provavelmente nem o talento.

Lindsay-Hogg não soube editar um filme que fosse coerente e inteligente. Ele parece ter tentado costurar uma narrativa linear, mas realmente não sabia o que estava fazendo. O resultado é abaixo do medíocre. Há uma infinidade de conversas registradas que fariam do filme algo surpreendente, sólido, valioso (recomendo uma visita ao A Moral To This Song, que faz um trabalho belíssimo transcrevendo esses diálogos); mesmo obedecendo aos limites estabelecidos pela banda seria possível fazer um grande filme — se ele soubesse como fazer.

Let it Be já foi restaurado digitalmente há muito tempo, mas os Beatles sempre relutaram em relançá-lo. O filme conseguiu a proeza de desagradar a todos, e ainda hoje deve ser um dos pontos de conflito entre os remanescentes e os herdeiros dos já defuntos. Mas o tempo passa, o dinheiro da venda de discos que possibilitou a George Harrison e John Lennon viverem nababescamente sem fazer nada não existe mais, e o Let it Be pode descolar alguns caraminguás tão necessários nestes tempos difíceis.

A oportunidade virá em 2020, quando ele completará 50 anos. No entanto, eu já disse aqui e repito: eu jamais relançaria o Let it Be. Em vez disso, entregaria as 90 horas de material bruto para Martin Scorsese e deixaria que ele fizesse um novo filme, como quisesse, utilizando o que se sabe ser uma experiência e talento muito, muito superiores aos de Lindsay-Hogg e com o benefício de meio século de distância. Acho que ele faria isso até de graça.

Eu daria ao resultado o título original do filme: Get Back.

Mas isso é impossível. Basta ver o que fizeram com Eight Days a Week, dois anos atrás: entregaram o trabalho a um diretor medíocre como Ron Howard, porque eles já consolidaram a sua história e não querem alterá-la, e precisam apenas de um artesão obediente que organize uma narrativa de acordo com as versões que querem deixar para a posteridade.

***

Musicalmente o cenário é melhor, com mais possibilidades, mas também com mais chances de dar tudo errado.

Agora que a Apple Corps. finalmente se rendeu ao modelo utilizado por McCartney há anos para continuar a vender material antigo — remixar um disco velho, incluir outtakes, demos e eventualmente canções inéditas, jogar no balaio livretos e souvenirs e vender tudo isso por dez vezes o preço de um disco comum —, dificilmente deixará de aproveitar as próximas oportunidades para reembalar seus cacarecos e vendê-los a fãs que comprariam qualquer coisa com a chancela dos Beatles. É desonesto: todo esse material é simplesmente inferior, que jamais deveria ver a luz do dia ou, ao menos, ser oficializado. Mas as pessoas querem ser enganadas, como prova Jair Bolsonaro.

Eu posso apostar que as primeiras gravações retiradas das sessões do Let it Be serão lançadas em agosto do ano que vem, numa eventual edição comemorativa do cinquentenário do Abbey Road. Podemos esperar uma nova mixagem, discos e mais discos de outtakes e etc. Várias dessas gravações serão retiradas das sessões de janeiro de 69, quando boa parte delas foi ensaiada. Há cerca de 90 horas de gravações do Let it Be — que, para quem tem pressa e paciência, podem ser encontradas na internet, na série A-B Road, da Purple Chick.

Mas é em 2020 que virá chance de os Beatles finalmente resolverem as questões que envolvem o Let it Be e que estão mal resolvidas há meio século, Curiosamente, essa seria a única remixagem que eu gostaria de ouvir. Realmente não liguei para as do Sgt. Pepper’s e do “Álbum Branco” (as do “Álbum Branco”, por sinal, me pareceram ter retirado um pouco do som distinto do álbum, encaixando-melhor no padrão George Martin dos outros discos dos Beatles, o que não é bom), mas sempre achei o som do Let it Be estranho, abafado. Uma remixagem vai lhe fazer bem.

Mas a principal questão é: e o resto? Que vai haver uma edição comemorativa do Let it Be eu não tenho dúvidas. O problema é saber como ela vai ser, porque ela poderia ser realmente boa, rica, nova.

Eu tenho a minha ideia de uma edição comemorativa. Para começar, eu relançaria o Get Back, a segunda mixagem de Glyn Johns, com a capa original. (Falo “relançar” porque o álbum chegou a ser distribuído para algumas rádios, mas foi quase imediatamente recolhido.) No entanto, acho difícil. É mais fácil relançarem o livro que acompanhava a primeira prensagem do Let it Be, excluído logo depois porque encarecia muito o disco.

Em vez de incluir o amontoado de outtakes que costumam incluir, eles poderiam fazer um álbum apenas com gravações realmente inéditas da banda. Certo, duvido que eles lancem pequenas pérolas como Negro in Reserve, When You’re Drunk You Think of Me ou What’s the Use of Getting Sober, mas ali há material suficiente para encher três ou quatro discos com qualidade.

Mas tudo isso são apenas desejos. O histórico da Apple nesse sentido é muito ruim, e eles sempre passam a impressão de estarem sempre segurando material, para garantir que possam lançar algo “novo” daqui a alguns anos. A mim isso não importa mais. Quase todo esse material está na internet. Ninguém precisa mais da Apple. Let it be.

Mais um sobre Jerry Lewis

Assisti nos últimos dias a alguns filmes de Jerry Lewis. Fiz isso porque percebi que fazia mais tempo do que eu imaginava desde sua morte. Na minha cabeça ele tinha morrido há três, quatro meses. Tomei um susto quando vi que foi em agosto do ano passado. O tempo está passando rápido demais para mim, e isso é ruim, mas Jerry foi um dos meus ídolos de infância e agora me percebo um fã ingrato, indigno.

Acontece.

Na verdade, fazia alguns anos que eu não assistia a um filme dele, com exceção de “Max Rose”, de 2013. E fazia muito mais tempo que não assistia a algo que já tinha visto várias vezes, como “Bancando a Ama Seca” ou “Errado Pra Cachorro”.

Então no fim de semana assisti a “A Barbada do Biruta”, “Artistas e Modelos” e “Cinderelo Sem Sapato”. Amanhã assisto a “O Terror das Mulheres”.

“A Barbada do Biruta” eu peguei da metade para o final, em 82. Assistindo a ele sem prestar a atenção devida, concluí que era um filme ruim, talvez porque nos últimos tempos vinha vendo apenas suas obras ruins, como “3 em um Sofá” e, antes disso, “O Fofoqueiro” e “Um Biruta em Órbita”. Eu estava enganado: esse é um dos bons filmes de Martin & Lewis, típico dos seus primeiros tempos, com todos os vícios maravilhosos das apresentações da dupla.

“Artistas e Modelos”, que assisti há quase 40 anos, é outro bom filme, e embora eu não lembrasse de muita coisa, há cenas indeléveis que me acompanham há quase 40 anos, como Jerry pegando um bife na janela (na versão dublada, eu lembro, era filé), e Shirley MacLaine cantando Innamorata para ele.

“Cinderelo Sem Sapato” eu vi em 1999 ou 2000. Achei ruim na época. Mas depois vi críticas boas sobre o filme, a cena da dança na escadaria é antológica, e achei que estava errado, que não lhe tinha dado a devida atenção. Não estava: o filme é muito ruim, mesmo. Passa a sensação de que foi severamente cortado, tirando do corte final elementos essenciais para a compreensão da história, como a transformação dele pelo “fado padrinho”. Além disso, a história de amor é completamente absurda, mal construída e inverossímil; deve ter sido outra vítima de cortes.

Foi coincidência, mas esses filmes, nessa ordem, acabam ilustrando bem a evolução de sua carreira. E me fizeram pensar em algo que eu nunca tinha pensado de verdade: a causa de sua decadência a partir da metade dos anos 60.

Em Dean and Me, Jerry credita sua derrocada ao divórcio entre ele e o gosto do público. Ele está parcialmente certo, mas as causas são muito maiores do que apenas isso, ou pelo menos mais variadas.

A principal é o fato de que, sem Dean Martin, ele foi forçado a crescer, ou (se levarmos em conta o seu ego monstruoso e a certeza da própria genialidade) aproveitou a oportunidade para isso. Do espiroqueta amalucado e anárquico dos filmes da dupla, ele tentou desenvolver uma persona mais complexa, mais hollywoodiana: se tornou mais “ator”. Seus personagens deixaram de ser tão histriônicos, tão naturalmente engraçados, porque ele se viu obrigado a demonstrar um espectro maior de sentimentos e atuação. Talvez não tivesse escolha: basta assistir a “O Delinquente Delicado”, concebido para Martin & Lewis mas filmado depois do rompimento, para ver que aquele modelo só funcionava com aqueles dois indivíduos. (O filme também mostra que Dean tinha razão em juntar os panos de bunda e ir embora:  é um veículo para Jerry, não para a dupla, embora a mutilação do papel que caberia a Martin possa ter sido feita depois da separação.)

O Jerry Lewis mais velho já não podia se permitir o completo abandono de si mesmo em que aquele garoto, que tinha Dean Martin para o controlar, se esbaldava. Ele não era mais infantil, e embora seus personagens sempre apostassem na ingenuidade e na pureza de coração, era a ingenuidade do adulto comparada à ingenuidade da criança: a atitude que desperta nas pessoas a vontade de dar uns tapas, em vez de rir. Não tinha como dar certo por muito tempo.

A isso se junta algo que eu sempre senti, mas nunca tinha racionalizado: fisicamente ele foi mudando muito à medida que se aproximava dos 40 anos. O rosto antes magro e anguloso, adolescente, ficou mais gordo, mais cansado, e ele perdeu aquela pureza transparente e ansiosa que tinha nos anos 50. Mais que isso, seu rosto oleoso e sua expressão passaram a ter algo cansado, cínico, até ruim — o rosto de um magnata do cinema, gasto, vicioso. Ele deixou de ser alguém de quem você gostaria imediatamente. Talvez eu esteja exagerando, mas o fato é que não dava para um homem de 40 anos se comportar como um menino de 8. E acho que Jerry percebeu isso.

Ao mesmo tempo, rever seus filmes dos anos 50 reavivam a sensação de deslumbramento que eu e o público, torcendo nossos narizes para os críticos, sempre tivemos. Sobre isso eu já escrevi aqui, não faz sentido me alongar. “A Barbada do Biruta” traz um bocado desse esplendor. Mas a verdade é que nada pode se aproximar do que esses dois sujeitos faziam no palco.

Hoje qualquer pessoa pode achar suas apresentações no Colgate Hour. Estão disponíveis no YouTube. Dia desses encontrei uma que não tinha visto ainda. E estou maravilhado até agora.

Por isso faço uma aposta com você. Assista a esse vídeo aí embaixo e não ria. Não acredito que seja necessário entender inglês para cair na gargalhada. Mas se você conseguir, volte aqui e eu te pago uma Heineken. Eu preciso ser honesto e avisar que pago, mas vou pensar em você, por todo o sempre, como o personagem de Kevin Kline ouvindo I Will Survive em “Será Que Ele É?”.

Já vai tarde, Saraiva

O Luiz Schwarcz publicou uma carta aberta em defesa das redes de livrarias Cultura e Saraiva, que pediram concordata dia desses.

É curioso que, quando o sapato aperta no calo de algumas pessoas, elas de repente se arvoram em defensores de todos os calos do mundo, principalmente os pequenos, aqueles de que ninguém parecia se lembrar antes. A carta do Schwarcz parece ser um caso desses. Invoca a devoção aos livros, pede a união amorosa e idealista de editores, autores e livreiros — é, aqueles mesmos que editoras grandes como a Cia. das Letras e a Record, e redes como a Saraiva, sempre asfixiaram.

Se eu fosse um pouco mais cínico enxugaria uma lágrima furtiva pela dor da Saraiva e pela bondade insuspeita da Cia. das Letras. E não riria com incredulidade ao ver empresas — que fizeram suas fortunas investindo em um modelo predatório — pedindo a solidariedade dos antes esquecidos para ajudar essas coitadas altruístas, vitimadas pela concorrência desleal da internet e da Amazon. Felizmente a bondade que mamãe colocou no meu coração tem limite, e tudo o que eu consigo fazer é me perguntar: só agora? Só depois que a Civilização Brasileira, a Distribuidora de Livros Salvador, a Didática, a Modelo, que centenas de livrarias pequenas fecharam é que vocês vêm falar em “união pelos livros”?

Não. Desculpe, mas não. Eu estou pouco me lixando para o destino da Saraiva.

Trinta anos atrás, Aracaju tinha umas cinco, seis livrarias. Provavelmente não eram o suficiente para uma cidade do seu pouco tamanho, mas cada uma delas era o retrato de um modo singular de ver livros e cultura, o estilo do seu dono. A Didática tinha identidade específica, a Modelo tinha um jeito diferente, a Regina tinha cara própria. Salvador, tão maior, tinha muitas mais, tinha inclusive algumas pequenas redes locais como a Civilização Brasileira e a Distribuidora de Livros Salvador, além de uma infinidade de pequenas aqui e ali, algumas especializadas, outras não. Livrarias como a Estante na Alameda Antunes ou a Freitas Kanitz em Ondina, umas tantas na Praça da Sé onde hoje só existem armadilhas para turistas.

Todas elas desapareceram. Hoje, a única livraria local em Aracaju é a Escariz, que nasceu como banca de revistas há mais de 30 anos e aos poucos migrou para o mercado de livros. A Escariz representa uma resistência heróica (desculpe, eu não sei escrever “heroica”) a um sistema em que editoras e grandes redes se uniam para oferecer mais vantagens ao leitor, ao mesmo tempo em que as negavam para as pequenas livrarias.

Mais triste foi o destino de Salvador, que viu a Civilização Brasileira passar pela humilhação de tentar macaquear seu algoz, transformando-se por algum tempo num arremedo de algo que não deveria ser imitado jamais, antes de fechar definitivamente as portas. Há umas poucas décadas a Avenida Sete era repleta de livrarias; hoje as lojas onde funcionavam vendem bugigangas e badulaques e roupas vagabundas.

Isso, claro, não pode ser creditado apenas à ação predatória das grandes redes; é o resultado das mudanças urbanas causadas pelo crescimento das cidades, pelo surgimento dos shopping centers, pela mudança de padrões culturais. Mas as redes foram um instrumento importante na derrocada das livrarias, e com isso, o que a cidade perdeu foi muito mais que alguns lugares onde comprar livros. Não apenas porque todas elas tinham algo em comum, a individualidade. Nem porque eram obras de pessoas mais interessadas em realizar suas próprias ideias de mundo do que em ganhar carroças de dinheiro, e portanto não eram, nem podiam ser, criações de entrepreneurs, de executivos modernos, de gente que quer apenas ficar rica, tanto faz se vendendo ideias, papel ou linguiça. Mas porque a cada livraria que fechou as portas na Avenida Sete ou no Calçadão da João Pessoa, as cidades morreram um pouquinho.

Não quero que fique a impressão de que estou dizendo que “naquele tempo era melhor”, porque não era. O mundo das pequenas livrarias era restrito, limitador. Mas elas tinham uma ligação orgânica com suas cidades, refletiam suas comunidades de uma maneira completamente inversa à de livrarias como a Saraiva, que impõem o seu modelo pasteurizado independentemente de onde se instalem.

Foram essas livrarias, retratos únicos das cidades onde estavam, que redes como a Saraiva e a Siciliano engoliram sem pena e sem cartinhas. Ninguém fez apelo bonitinho quando a livraria da esquina fechou as portas diante da concorrência impossível das grandes redes. E agora, quando o Schwarcz lamenta que “muitas cidades brasileiras ficarão sem livrarias”, só pode estar brincando. Para começar, a maioria das cidades pequenas do país já não têm livrarias há muitos anos, e quando essas cidades precisaram de uma, nunca interessou à Saraiva ou à Cultura abrir uma lojinha nelas. Ele certamente se refere às médias, aquelas onde a Saraiva dizimou a concorrência disponibilizando descontos oferecidos apenas a ela por editoras como a do Schwarcz.

Pior que isso, esse apelo é extemporâneo e inútil. Pequenas ou médias, essas cidades já não precisam da Saraiva, ou de qualquer outra rede.

Dia desses comprei “Os Anos 20”, de Edmund Wilson, livro que quis mas não tive dinheiro para comprar uns 30 anos atrás. Comprei também “Olympia”, de Otto Friederich, livro que quis mas não tive dinheiro para comprar uns 25 anos atrás. Ambos usados, já saíram de catálogo há alguns anos. E não foi na Saraiva, na Cultura ou mesmo num sebo local: foi na Amazon. Foi ela quem mitigou a ausência de livrarias.

Não é só isso que, na carta do Schwarcz, soa falso e até desonesto. “Com a recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, dezenas de lojas foram fechadas, centenas de livreiros foram despedidos, e as editoras ficaram sem 40% ou mais dos seus recebimentos – gerando um rombo que oferece riscos graves para o mercado editorial no Brasil”, diz Schwarcz. Vamos falar a verdade. Dezenas de lojas foram fechadas — confere, embora ele se refira a redes como a Fnac e Saraiva. Editoras ficaram sem 40% ou mais de seus recebimentos depois de apostarem num modelo que prejudicava as pequenas livrarias — confere, e é essa a razão dessa carta. Centenas de livreiros foram despedidos — epa.

Se ele se refere aos vendedores da Saraiva, meninos mal pagos e explorados e sem conhecimento real do mercado editorial, chamá-los de “livreiros” é um desrespeito às centenas de pessoas apaixonadas por livros, que tocavam negócios além do comercialmente viável, e que foram tiradas do mercado pelas Saraivas da vida. Livreiro é outra coisa. Livreiros são aqueles de quem a Saraiva veio ajudando a tirar empregos e ganha-pães há décadas, com a ajuda das grandes editoras. Sempre em silêncio, acompanhados de pequenos choros aqui e ali, mas que ninguém fazia questão de ouvir.

Não, não, eu não vou chorar a morte da Saraiva. Sua eventual falência não me vai me dizer absolutamente nada. A vida é assim mesmo — devem ter sido exatamente essas as palavras ditas quando a Civilização Brasileira fechou. Agora é a minha vez de louvar a lógica fria da consolidação de mercado e do ganho de escala que fez da Saraiva um instrumento de destruição das pequenas livrarias, a mesma que agora faz da Amazon a guilhotina no pescoço das “megastores”. Foi na Amazon, aliás, que aprendi que, procurando, posso comprar livros novos — inclusive livros da própria Companhia das Letras — por preços muito mais baixos, como meu pai me ensinou há quase 40 anos numa Civilização Brasileira da Avenida Sete e que as Saraivas da vida tinham tornado coisa do passado.

Desculpe, mas para mim essas redes de livrarias podem morrer, com seus descontos insuficientes, com seus cafezinhos de dez reais, com seus iPhones e Blu-Rays. Para mim, a Saraiva já vai tarde.