É fim de ano e a época em que proliferam textos sobre Jesus Cristo, de todos os tipos. El País publicou um artigo de Juan Arias sobre o Jesus histórico, meu “abominável homem das neves” preferido.
É um texto razoável, embora não muito elaborado, e eu assinaria embaixo de muito do que ele escreve. Mas também tem algo que me deixa incomodado. E não é ele dizer repetidas vezes que, para a Igreja, Jesus nasceu no dia 24 de dezembro.
De modo geral, o que realmente me incomoda nessas avaliações são as convicções absolutas, e Arias é pródigo nelas.
Para mim, a única certeza justificável em se tratando de Jesus é a dos crentes, que veem nos Evangelhos a verdade absoluta. Não deveria ser a de nenhum historiador. A maneira mais sensata de enfrentar a questão do Jesus histórico é, em primeiro lugar, dando-lhe a devida importância: é um assunto fascinante, que interessa muito a mim e a muita gente, mas é irrelevante. Fosse quem fosse Jesus, o que realmente importa é o que Seus seguidores — principalmente Paulo de Tarso — fizeram d’Ele.
Em segundo lugar, é preciso usar uma combinação de bom senso e respeito histórico. A humanidade não mudou tanto de lá para cá: mudaram os costumes, mudaram as circunstâncias, mas a essência humana continua a mesma. É a mesma desde Homero, aliás, e certamente desde muito antes. Por outro lado, os padrões éticos e mesmo parte dos lógicos que utilizamos hoje foram definidos pelo cristianismo; não apenas em concílios e conclaves, mas principalmente no dia a dia, na tentativa abnegada e bem-intencionada de aplicação de seus preceitos à vida cotidiana. É preciso abdicar deles, tentar entender a lógica do seu tempo, mas também não custa muito entender que há um limite para as diferenças. O cristianismo não apenas modificou o mundo, mas se adaptou a ele; e não foi à toa que escolheu o 25 de dezembro, dia do Sol Invictus e solstício de inverno celebrado pelos romanos, como data do nascimento do Senhor, além de modificar a própria natureza do messias aguardado pelos judeus, na base do “não foi bem isso eu queria dizer”.
Para historiadores, devido à total ausência de registros fora da literatura canônica e apócrifa, e levando em conta a força da tradição oral que os precedeu na criação e transformação da narrativa que se tornaria prevalente, absolutamente nada deveria ser tomado por certo. Nem mesmo a existência de Jesus. Eu acho improvável que Ele não tenha existido, ou que não tenha sido crucificado — o que mais podia fazer as pessoas pegarem um símbolo de humilhação como a cruz e fazer dele um ideal de vida, mais ou menos como gays americanos assumiram uma denominação derrogatória como queer e seguiram em frente com ela? —, assim como acho improvável que Ele fosse exatamente como dizem as Escrituras; mas uma coisa é achar, outra é jogar essa certeza nas fuças alheias, dizendo cabalmente que “nada mais falso”, ou “Na verdade, aos 30 anos Jesus se mostra capaz de discutir com os doutores da lei, conhecia os textos sagrados do judaísmo, várias culturas como a grega ou a dos gnósticos, e outras religiões como o budismo”.
A partir da primeira vírgula desse último trecho, sinto discordar, é tudo ilação. Arias diz que Jesus conhecia bem a cultura grega. Baseado em quê? Meu conhecimento dos Evangelhos é pífio, e talvez por isso não lembre de nenhuma referência do De Cujus a Ésquilo, Aristófanes ou Aristóteles. Se Arias supõe todo esse conhecimento a partir dos raciocínios de Jesus expostos naqueles versículos, ou mesmo em outros textos apócrifos, não apenas subestima a cultura hebraica e inconscientemente tenta impor um eurocentrismo que anda meio fora de moda, mas ignora as contribuições dadas seguidamente por milhares de seguidores ao recontar Sua história. Quanto às discussões com os doutores da lei, Arias comete o erro gravíssimo de tomar os Evangelhos como verdade histórica sem questioná-los.
Um dos eventos que mais me fascinam nos Evangelhos, e que me faz duvidar em princípio de cada fato narrado neles que não tenha sido comprovado historicamente, é o massacre dos recém-nascidos promovido por Herodes. Ele só existe nas Escrituras e nenhum historiador respeitado acredita que tenha possivelmente ocorrido. E no entanto, em apenas algumas décadas milhões de pessoas acreditavam piamente que Herodes tinha passado os bebezinhos no fio da espada. Isso mostra a força dos Evangelhos, sua capacidade de criar pós-verdades, mostra um pouco da lógica por trás do raciocínio que levou milhares de gentios, todos os anos, a se converterem. Por si só já seria um recado importante para historiadores.
É por isso que não sei se dá para negar com absoluta certeza que Jesus era analfabeto, como faz Arias. Todo o ministério de Jesus foi feito de maneira precária, sem recorrer à escrita, como provavelmente era a regra naquele tempo e naquele lugar. É mais lógico supor que Ele fosse analfabeto, mesmo. Mas há espaço para discussão.
Por um lado, não é absurdo acreditar que Ele tinha um domínio teológico acima da média, o suficiente para garantir o respeito de Seus seguidores (embora o público não fosse lá dos mais exigentes), e isso em tese pressupõe um nível de estudo difícil de ser conseguido apenas por via oral — embora eu ache que isso seja perfeitamente possível, ainda mais naqueles tempos; é só imaginar a dimensão do conhecimento revolucionário criado a partir dos diálogos com Sócrates, posto no papel muito tempo depois.
Ao mesmo tempo não há nenhuma referência a algum escrito d’Ele, e isso é incômodo.
É improvável que um evangelizador alfabetizado e com a posição e as responsabilidades sociais de Jesus dentro do seu círculo não tivesse escrito cartas, como Paulo faria algumas décadas depois, ou deixasse algum documento escrito. Eram uma ferramenta importante para a realização da sua missão, e às vezes até mesmo uma providência necessária e corriqueira. Imagine-se um seguidor de Jesus que tem uma carta de próprio punho do Senhor em suas mãos. Você certamente a guardaria com sua vida, como guardaram as epístolas de Paulo. É claro que nenhum documento semelhante precisaria ter sobrevivido, porque aqueles tempos não eram exatamente um passeio nos campos elísios; no entanto, forçosamente haveria alguma referência a ele, em algum lugar, mesmo que num apócrifo, da mesma forma que as palavras de Sócrates sobreviveram através de Platão e Xenofonte. Inventaram uma infância para Jesus, uma filiação divina, um parentesco com o que provavelmente era o mais importante pregador de seu tempo, João Batista, e até mesmo um milagre bem batuta de transformar água em vinho — mas não inventaram uma carta escrita por Ele, e isso é significativo.
Também acho que não há por que afirmar que Jesus era casado só porque, a princípio, todo judeu era casado. Independentemente do fato de sempre existirem exceções, a vida de pregador errante escolhida pelo filho de José (“Meu uma ova!”, grita José) tornava o casamento uma escolha muito difícil, até improvável. Os apóstolos não eram casados (aliás, se não me engano Pedro era, mas disse à patroa que ia comprar mirra e nunca mais voltou). É possível que estivessem seguindo o exemplo de Jesus, ou simplesmente se virando dentro do que era possível, como Ele fez. Não havia uma conversa de abandonar tudo e seguir Seus passos? E a vida difícil que escolheram em nome de sua fé não era exatamente de encher os olhos de pais em busca de um marido para suas filhas.
Além disso, me irrita profundamente a certeza de que Ele era casado com Madalena. Se eu não soubesse que a tese era anterior, diria que quem afirma isso levou “O Código da Vinci” a sério demais. Aqui parece haver a contaminação de uma hipótese histórica pelas convicções de outra era. Assim, Jesus não apenas devia ser casado, mas (numa variação matrimonial e feminista da santidade de Maria) ela era uma senhora douta e importante e houve uma campanha posterior para denegri-la, movida pela conhecida misoginia da Igreja.
Por favor, das duas, uma: ou a gente adequa a vida singular de Jesus aos padrões de Sua época, e Ele então seria casado, mas muito provavelmente com uma mulher comum, que ficava cuidando da casa e lamentando o maluco com quem tinha juntado os trapos, ou O transforma em um revolucionário dos costumes, e então Ele tanto poderia ser casado com uma mulher à frente do seu tempo quanto ser solteiro. É um silogismo estranho: Arias afirma que Jesus apareceu primeiro para Madalena porque era casado com ela, mas esse casamento é inferido porque Ele apareceu primeiro a ela.
É importante lembrar também que o cristianismo paulino que se tornou hegemônico era apenas um entre tantos cristianismos. Isso está bem representado nesse trecho de Arias:
Foi sempre esse fato a grande dor de cabeça de Tomás de Aquino, doutor da Igreja, que faleceu sem entender por que Jesus não apareceu em primeiro lugar para Pedro, que era o chefe do grupo de apóstolos, e sim para uma mulher.
É aí que está a questão. Isso era dor de cabeça para Tomás de Aquino porque ele raciocinava necessariamente dentro da lógica cristã definida pela narrativa oficial.
Para começar, ele parte da certeza de que a ressurreição aconteceu, que não foi uma possível combinação de alucinações individuais, em um momento de choque e dor, e invenções malandras posteriores. Tudo bem. Além disso, desconfio que a ideia de Pedro como “pedra fundamental” da Igreja por indicação de Jesus é uma construção posterior, consolidada paralelamente ao cristianismo paulino a partir do fortalecimento da posição política de Pedro, e tão imaginária quanto o galo que cantou três vezes. Mas abstraia tudo isso, fuja da narração canônica, e tudo pode se encaixar. Jesus apareceu primeiro a Madalena como poderia ter aparecido para Tadeu ou para o bodegueiro da esquina, por um lado. Por outro, não seria cinismo demais supor que a narrativa é verdadeira e Madalena apenas teve uma alucinação primeiro. Obviamente, o importante aqui não é a ressurreição em si, mas a lógica que levou a pessoa que escreveu isso pela primeira vez a criar essa situação específica.
Madalena é o resultado da nossa evolução social. As conquistas feministas levam algumas pessoas, mais radicais e chegadas num revisionismo, a exigirem um lugar para a mulher numa história que sempre foi eminentemente masculina, nem que para isso que seja preciso reescrever a história; são os Kruschevs do Senhor. Ao mesmo tempo, há algo de arraigadamente machista nessa certeza: costumes da época só são válidos se interessam à nossa tese.
Eu consigo imaginar um cenário muito simples para os anos que se sucederam à crucifixão de Jesus, e ele ajuda a explicar o problema de Madalena.
Jesus morre e o seu círculo de seguidores — que pode incluir seu irmão Tiago, sua mãe Maria e sua mulher Madalena — tenta dar prosseguimento ao seu trabalho. É um círculo pequeno, conservador. Eles operam dentro dos limites do judaísmo, e seu sucesso é, na melhor das hipóteses, moderado. Eles estão felizes com o seu pequeno status quo, com o respeito que aquele pequeno grupo lhes presta, com a certeza de que estão honrando a memória e fazendo a vontade de um homem amado e respeitado, e como um bônus de Natal estão construindo o seu caminho para se dar bem no Juízo Final. Mesmo dentro desse pequeno círculo a mensagem cresce, sai de controle, as pessoas que a repetem fazem seus próprios acréscimos, ajudam a criar a lenda de Jesus não mais um homem santo, mas um deus.
E então chega um sujeito de fora, sem compromisso com esse legado. Ele se chama Saulo de Tarso, não conheceu Jesus, e a imagem que faz dele é principalmente uma recriação. Saulo não é apenas judeu, mas é romano também. E o choque de concepções que se segue, assim como a disputa por poder, é vencido pela concepção paulina, cosmopolita e evangelizadora.
Mesmo dentro desse panorama, enxovalhar a reputação de uma veneranda Madalena que tinha dividido a cama e a pregação com Jesus cada vez mais Cristo seria impossível, pelas reações que geraria.
Mas nada disso importa, na verdade. O Jesus histórico não existe, nunca existiu. O verdadeiro Jesus era filho de Deus, nasceu em Belém, foi visitado por três reis magos, aos 13 anos impressionava os doutores do templo com Sua sabedoria, e aos 30 levantava os mortos e foi crucificado mas ressuscitou no Domingo de Páscoa. Foi esse Jesus que, nos últimos 1700 anos, escreveu a história do Ocidente e ajudou a definir os rumos do mundo. O resto é lenda.