Um prato que se come frio

Luiz estava na redação, escrevendo seu primeiro poema. Meu pai chegou e Luiz mostrou para ele.

Quando terminou, meu pai avisou:

— Vou te fazer um favor.

E rasgou o poema.

— Isso vai te poupar muitas desilusões no futuro. Alguém pode dizer que isso é bom e aí você continua fazendo essas coisas.

O tempo passa. 1988, agora; eu levo um texto para Luiz e digo que quero escrever em seu jornal.

Ele lê e faz um comentário:

— Puta que pariu, ele escreve melhor que o pai!

Não era verdade, mas a partir dali, e pelos próximos 3 anos, passo a escrever no jornal.

Ainda não sei se Luiz me fez um favor. Ou se isso foi apenas uma vingança tardia, acalentada obcecadamente durante mais de 20 anos.

A angústia do leitor diante de Handke

Acabei de desistir de um livro de Peter Handke. Tentei, juro que tentei, e tenho orgulho da minha valentia, mas fui expulso na metade.

O livro tem um posfácio de algumas páginas em que uma mulher tece loas a ele. Discordo, porque defino Handke — ou pelo menos o livro em questão — em uma palavra: chato.

E além de chato falta verdade em suas alegorias, também. Percebo isso na miopia do título de um dos seus livros, que naturalmente jamais lerei: “A Angústia do Goleiro na Hora do Pênalti”.

Se Handke realmente soubesse das coisas entenderia que a verdadeira angústia não é a do goleiro, que afinal não tem a obrigação de defender um pênalti. A angústia é de quem cobra. Ele devia ter perguntado isso a Zico, em 1986, e a Roberto Baggio em 1994.

Mas talvez isso seja só implicância minha. Handke é alemão. Alemães não entendem de futebol.

Rock in Tejo

Vida de fã é uma merda.

No sábado fiquei acordado esperando ver McCartney nos trechos do Rock in Rio Lisboa (se eu fosse português boicotava o festival só pelo nome sem noção). Nada, mas pelo menos teve “Faça a Coisa Certa”, do Spike Lee — e eu gosto muito do neguinho.

Hoje anunciaram McCartney e mais uma vez a anta aqui ficou esperando.

Mas esse eu deixo por último.

O sujeito que comentava o programa apresentou Peter Gabriel como um sobrevivente que depois de sair do Genesis fez um sucesso “gigantesco”. Peraí: o Genesis é dos anos 70. Nessa época, quem fez sucesso gigantesco foi o Led Zeppelin e os Wings de Paul McCartney. Nos anos 80, foi a vez de Michael Jackson e Madonna. Aliás, o próprio Genesis só fez mais sucesso quando Gabriel saiu: Phil Collins assumiu os vocais e fez a banda aderir ao pop. Para falar a verdade, do Peter Gabriel eu só lembro é de Sledgehammer, de 86. Depois dessa apresentação vem o sujeito — e eu fico impressionado em ver como ele envelheceu. A música, no entanto, não me impressiona: é a mesma coisinha chata e metida a cool de sempre. Mas agora parece mais com os piores momentos do Pink Floyd.

Depois vem a banda pela qual “todos estavam esperando” mas da qual nunca ouvi falar: Evanescence. Muito prazer. Eu sou então apresentado a um cruzamento chato de Siouxsie (alguém lembra dela?) com Courtney Love, dirigido a adolescentes que acham que sua dor é a primeira e a maior do mundo. Imediatamente, classifico-a na pasta “bandas que são um porre e que eu não faço questão de ouvir novamente”.

Kings of Leon, agora. Aclamada como “a salvação do rock” no ano passado. E eu, sempre atrasado, pensando que esse cargo ainda era dos Strokes. Envergonhado pela minha ignorância, prometo a mim mesmo que vou prestar atenção para não perder a “salvação do rock” do ano que vem. A música é bem melhor que o Evanescence, mas isso não quer dizer muita coisa. O vocalista é uma mistura de Kelso, do That 70’s Show, com Julian Casablancas. Ele tem uma cara de “quer-saber?-eu-montei-esta-merda-pra-ver-se-pego-umas-mulé”. Tá certo, ele.

E então os Xutos & Pontapés. Eu ouvia falar dos sujeitos há 20 anos, e é a primeira vez que ouço. Os velhinhos, aos quais não mostraram respeito e mandaram abrir o show (mais ou menos o que fizeram com Gilberto Gil no dia anterior, ultraje do qual o ministro se vingou com um show bem vagabundo), mostram felicidade por estarem ali. Mas a música é irremediavelmente anos 80, chatinha como tudo daquela década.

E eu passei por tudo isso para assistir ao meu velhote.

McCartney teve 3 músicas apresentadas nessa colcha de retalhos: Get Back, She’s a Woman e Live and Let Die. Com exceção de She’s a Woman, são músicas que estão em virtualmente todo disco ao vivo. E o set list do show tem algumas preciosidades, como You Won’t See Me, Helter Skelter e I’ve Got a Feeling, que nunca ouvi ao vivo.

Essas três músicas mostram algumas coisas tristes. A primeira é que McCartney não tem mais voz. Ele não consegue mais alcançar as notas mais altas de She’s a Woman. Está velho, coitado. E o show pirotécnico durante Live and Let Die mostra que, há 15 anos, seus shows são sempre a mesma coisa, com pequenas mudanças no repertório para que as pessoas esqueçam que ele é um dinossauro sem remédio. Mas a sua simplicidade e a aura que o ex-beatle ainda traz fazem com que ainda valha a pena.

Agora é esperar que César Maia (diz isso a ele, Quintino!) consiga trazer McCartney para um show no Rio. Se conseguir, eu até encaro a multidão no Aterro. E esse é o maior sacrifício que um sociopata como eu é capaz de fazer.

Da fidalguia atávica dos nordestinos

Cheguei no boteco e pedi uma coca-cola. A mulher demorou para me atender, demorou para pegar a coca, e veio com ela andando sem pressa, sem nenhuma pressa. Sua expressão não prenunciava alguma vontade de se fazer minha amiga.

Pensando na diferença de atendimento entre Aracaju e o Rio, tomei minha coca e saí.

No meio do caminho percebi que tinha esquecido alguns papéis no boteco. Voltei.

E então ela me atendeu com um sorriso, me entregou os papéis e disse algo gentil e simpático.

Agora ela estava me fazendo um favor.

As teorias da banha

Uma pobre senhora excessivamente crédula, leitora assídua deste blog, me falou de uma mulher que fez de bestas algumas pessoas Brasil afora, falando bobagens sobre alimentação.

Normalmente, essas teorias alimentícias me irritam em pouco tempo. Os resultados da maioria das pesquisas dependem de quem pagou por elas. Ovo faz mal, de repente não faz mais — e a gente tem a certeza de que os produtores de ovos dançaram em alguns milhares de dólares ou libras para tentar convencer o povão de que seu produto traz algum benefício desconhecido.

Mas essa mulher de que me falaram extrapolou. Disse que pão faz mal, dizendo a toda a humanidade que o seu principal meio de subsistência na verdade vinha sendo o seu veneno. Só não explica como essa raça conseguiu proliferar dessa forma. Milagre, talvez.

Disse ainda que carne faz mal — e eu fico sem entender por que aqueles sujeitos da pré-história, em vez de se limitar à segurança de suas lavouras, se arriscavam em busca de carne, se seus metabolismos não precisavam dela.

E ultrapassou o limite da loucura pura e simples quando falou que leite faz mal. Implicitamente, disse que todos os filhotes de mamíferos são suicidas instintivos.

Reconheço que é preciso muita coragem — e falta de senso de ridículo — para afirmar uma coisa dessas. Mas malucos e bobos são famosos por não sentirem medo. Deve ser isso que faz essas pessoas irem de encontro a todo o senso comum acumulado em dezenas de milhares de anos.

De qualquer forma, a Harvard Business Review (aqui, via Boing Boing) tem uma boa explicação para o crescimento da obesidade.

Nunca houve um verão

Ouvindo Summer of ‘42, de Michel Legrand, lembrei do filme do qual a música é tema, “Houve Uma Vez Um Verão”, a que assisti quando era adolescente.

(Alguém lembra que nos sábados de 20 anos atrás, depois da novela das oito, vinha a “Primeira Exibição”, e não “Supercine”? E que depois vinha a “Sessão de Gala”, e não aquele maracujá de gaveta e seu programa chatíssimo, o Serginho Groisman?)

É um filme de formação, basicamente. A história de um garoto em férias numa daquelas praias sem graça dos EUA, durante a II Guerra Mundial, e sua educação sentimental através da paixão por uma mulher mais velha. É um bom filme, e muito útil. Recomendável para inícios de namoro e para ajudar a levar para a cama mulheres frescas demais.

Não é o único a tratar do assunto. Tenho a impressão de que eram mais comuns na década de 70, época de conflito grave de gerações, mas de vez em quando ainda aparece algo assim: homens feitos recordando-se de suas paixões e namoros na adolescência com mulheres mais velhas, e do quanto isso os marcou. Quase sempre eram homens; acho que um dos poucos a contar dessa forma a história de uma mulher com um homem mais velho é Breezy, um dos primeiros filmes dirigidos por Clint Eastwood. Mas ainda assim a história era contada do ponto de vista masculino.

Para os meninos, esse foi o principal acontecimento de suas vidas. O fato de namorarem uma mulher mais experiente, de serem iniciados sexualmente dessa forma, faz com que, ao recontar sua história, o narrador se torne Dante e seu objeto de amor e desejo se transforme em uma Beatriz finalmente atingida.

Há uma carga emocional intensa nesses namoros, são acontecimentos definitivos e nunca completamente superados pelo seu protagonista. A concretização do seu complexo de Édipo, talvez. A abordagem é sempre bonita, sensível; a diferença de idade implica um lirismo e um respeito que o cinema raramente consegue ver em namoros “comuns”.

Mas a ótica, na verdade, continua machista. Por trás de todo aquele processo de educação sentimental, há sempre um fato inegável: o que os distingue é o fato de terem sido contemplados com a grande sorte de terem à sua disposição uma mulher sexualmente disponível, suficientemente madura.

Com todo o lirismo desses filmes, o assunto ainda é sexo.

A mais doce profissão que um homem pode ter

Gigolôs estão entre os profissionais que mais admiro.

Jorge Amado dizia que essa era a mais doce profissão do mundo; dizia isso em seu baianês leve, com a ética diversa que faz parte do espírito da Bahia. Uma definição comum, mas mais cínica, é a de que um gigolô é um sujeito pago para fazer o que qualquer idiota faz de graça.

Dizer que a melhor coisa que você faz é sexo não é como dizer que escreve ou elabora e destrincha fórmulas matemáticas complexas. Porque tudo isso é algo restrito, faz parte das habilidades de pequenos grupos, é a própria razão da diversidade humana.

Se alguém diz que pinta melhor do que você, sua resposta pode ser um simples dar de ombros, porque isso lhe importa pouco ou nada. Você nunca pegou em um pincel na vida e isso não significa que ele é melhor que você — você duvida, por exemplo, que ele seja melhor jogador de basquete, e se o Michael Jordan disser que é melhor você pode dizer que entende mais de marcenaria. A vida é um infinito sistema de compensações, e então ficam elas por elas, e os egos de cada um se satisfazem plenamente.

Mas um gigolô, não. Ele faz o que todo mundo faz. E faz melhor. É um conceito absoluto, completo. Se tal sujeito é melhor de cama do que você, ele está se referindo àquilo que você faz com dedicação e abandono, está entrando no seu campo, está lhe vencendo no seu próprio jogo. E você não pode recorrer ao consolo do despeito e da negação, porque as provas estalam em sua cara. É assim que ele ganha a vida. Ele é bom o suficiente para que lhe paguem para fazer, com mais talento, mais sensibilidade, aquilo que você também faz e que constitui uma das partes fundamentais da sua vida. Ele está dizendo que, enquanto você se limita a nascer, crescer, reproduzir e morrer, ele dominou a a técnica do supérfluo e elevou o ato da reprodução ao nível de arte, e superou a mera humanidade.

Você é apenas espasmos, gemidos e suor. Ele é transcendência. Onde você é tosco, irremediavelmente tosco, ele é um artista. E, sim, se alguém pode dizer que é melhor que você, esse alguém é um gigolô.

Anotações para um post que não será escrito

Desde que comecei este blog, venho dizendo que Bush vai perder as eleições.

Só um lembrete.

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A guerra do Vietnã teve oposicionistas desde o começo. Mas demorou alguns anos para que a opinião pública se virasse quase completamente contra ela.

Em contraste, em menos de um ano a Guerra do Iraque caiu em desgraça.

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Nunca é demais lembrar: guerras desastrosas derrubam presidentes nos Estados Unidos.

Conselho para Bush: faça como Reagan e procure uma Granada para invadir.

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Em 1991, eu era contra a guerra do Iraque. Achava que os Estados Unidos estavam errados.

Foram necessários vários anos até perceber que quem estava errado era eu, e que aquela guerra era justa e necessária.

E então Bush Jr. aparece e me faz jogar fora todo o meu longo processo de aprendizado e torcer por Saddam Hussein.

Essa deve ser, provavelmente, a principal razão pela qual detesto aquele genocida. O que ele fez comigo é imperdoável.

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Bush é a maior prova de que cocaína faz mal ao mundo.

Maomé de volta à montanha

Notícia interessante no Christian Science Monitor (a propósito, um grande jornal apesar do nome).

Muçulmanos espanhóis estão querendo que o governo lhes restitua o direito de rezar na Mesquita de Córdoba. É um direito que lhes foi tomado em 1236, durante o processo de reconquista da Espanha pelos cristãos. Agora, a Junta Islâmica está pedindo que o direito seja restaurado.

A questão é mais delicada do que parece.

A discussão que o pedido levanta na Espanha é: a quem pertence a história? O edifício foi construído por muçulmanos, mas a Espanha é um país cristão há vários séculos. Essa consciência da identidade nacional não leva em conta, claro, que lá vivem mais de 500 mil muçulmanos, a maioria vinda do Marrocos. Ou talvez leve até demais.

Os argumentos dos opositores à idéia são simples, e tentam passar ao largo do apelo fácil ao medo que muçulmanos inspiram no primeiro mundo hoje em dia, graças aos malucos de Osama: o país se distanciou, e muito, da tradição islâmica nesses últimos séculos. Como disse o arcebispo Michael Fitzgerald, do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, os “muçulmanos devem aceitar a História”.

É uma questão de coerência que a sociedade civil organizada européia apóie o direito dos muçulmanos de rezarem em seus locais sagrados. As ONGs européias, afinal, são as mesmas que angariam dinheiro e espaço na mídia para defender o direito dos índios brasileiros — como o cacique Pio Cinta-Larga e sua camisa Lacoste — de terem o seu próprio torrão. São as mesmas que se referem à colonização portuguesa do Brasil como “invasão” pura e simples, com o maniqueísmo típico dos ungidos por Deus.

Se os nossos índios não têm a obrigação de aceitar a História, parece lógico e justo que os muçulmanos espanhóis também não.