Um post sobre Jerry Lewis que provavelmente não será escrito

O pior de tudo é que o tempo vai passar e Jerry Lewis vai morrer e eu não vou ter escrito um post adequado ao seu gênio.

Jerry Lewis foi o maior comediante americano da segunda metade do século XX. Eu não tenho dúvidas. Acho que tinha mesmo todos os defeitos que apontam nele — e eu tenho dificuldade em achar que fez grandes filmes por serem episódicos demais, caminhando numa linha tênue entre a narrativa e o encadeamento puro e simples de gags — mas ao mesmo tempo tinha também todas as qualidades possíveis, uma inventidade absurda e um faro excelente para a grande gag

Jerry passou por um processo semelhante ao de Hitchcock. Foi preciso que os franceses da Cahiers du Cinéma dissessem que ele era um grande comediante para que as pessoas, com aquela cara de bunda que é peculiar a quem não consegue ver adiante do nariz, dissessem “é mesmo”. Os críticos então admitiram o que milhões de pessoas já sabiam: que Jerry Lewis cumpria como ninguém o seu ofício de fazer rir.

Infelizmente, disseram isso quado Jerry já era um comediante decadente. A obra de Jerry foi perdendo qualidade ao longo da segunda metade dos anos 60. Seus filmes foram ficando repetitivos, as piadas foram ficando sem graça, seu tipo físico foi se tornando inadequado ao personagem que continuava interpretando. Jerry protagonizou grandes fiascos nessa época. Mas a sua obra nos anos 50 é indelével — sua parceria com Dean Martin foi antológica, tão grande quanto outras duplas, como Laurel & Hardy e os Três Patetas — assim como a do começo dos 60. Jerry construiu um personagem anárquico, inadequado ao sistema, que encontrava respaldo e ematia em praticamente todo mundo. Há um tanto de subversão quase ingênua em Jerry Lewis; talvez o melhor exemplo seja a cena do grupo de ginástica em “O Meninão” (refilmagem de “The Major and the Minor, de Billy Wilder). A sua incapacidade de seguir o conjunto desarruma tudo, leva à bagunça total, à desordem — e foi isso que os franceses viram nele e mostraram para o resto do mundo, essa selvageria e anarquia ingênuas, mas não tanto.

Ele deve estar fazendo 81 ou 82 anos agora, e essa idade o aproxima da morte. Escreveu um livro há pouco tempo falando de sua parceria com Dean Martin, e ao contrário do que poderiam esperar, foi um livro carinhoso. Lembro do dia em que Dean Martin morreu, e foi uma das duas ou três vezes, em toda a minha vida, em que fiquei triste porque alguém que eu não conhecia tinha morrido.

Mas acima de tudo, Jerry Lewis é um companheiro de infância e um dos meus últimos heróis. Eu e todo mundo que cresceu nos anos 70 assistíamos aos filmes de Jerry Lewis na Sessão Tarde — era um tempo em que a Sessão da Tarde exibia bons filmes, com Errol Flynn e Charlie Chaplin e Johnny Weissmuler e John Wayne mais uns tantos por aí. O primeiro a que assisti foi “O Rei do Laço”, um dos últimos de sua parceria com Dean Martin. Em seguida vi praticamente todos os filmes que importavam. “Errado Pra Cachorro”, “O Bagunceiro Arrumadinho”,”O Otário”, The Caddy, Artists and Models, Hollywood or Bust, Rock-a-Bye Baby — a lista é grande demais para caber aqui. Jerry Lewis tem uma filmografia que não é apenas extensa — tem momentos absolutamente geniais, como a gag final de “O Otário” e tantas outras. Eu tive a honra de ver um de seus últimos filmes no cinema — Hardly Working; era um filme ruim, mas eu vou poder dizer um dia que pude assistir a um filme de Jerry Lewis no cinema.

No fim das contas, acho que poderia escrever um post longo e bom sobre um dos meus heróis, mas não tenho tempo. Depois eu escrevo sobre ele. Um dia. Só espero que esse dia chegue.

Rafael Galvão, redator de conselhos para bobos que acreditam em astrologia e em conselhos dados de graça

A moça dos serviços gerais trouxe uma revista chamada “Guia Astral”, com um astrólogo chamado João Bidu. Bidu para mim é nome de cachorro, mas cada um carrega o nome que pode; eu carrego o de Rafael, por exemplo, e tem gente chamada Onésimo, Praxedes e Roberaldo por aí.

Eu confesso que gosto dessas revistas. A matéria de capa chamava a atenção para “homens proibidos”: casados, chefes, padrastos, padres, filhos de padrastos, primos. Dá bons conselhos, aquele tipo que qualquer vizinha razoavelmente ajuizada pode dar.

Mas eu gosto mesmo é das seções de cartas, porque por melhores que sejam os redatores do João Bidu, eles jamais serão páreo para a vida real, para as pessoas com problemas sérios ainda que esquisitos e que buscam ajuda nos astros ou em conselhos fuleiros.

Então outra confissão, necessária agora: eu tenho inveja desses sujeitos que respondem às cartas. Porque sinto que faria um bom trabalho respondendo a elas. Tenho o talento e a vocação suficientes. Então, apenas como exercício e distração, peguei algumas das cartas e resolvi publicar aqui as minhas próprias respostas.

JÁ ME BATEU, MAS O AMO
Gostaria de saber se o meu signo, Câncer, combina com Virgem. Será que esse homem gosta mesmo de mim? É que ele já me bateu na cara. Não sei o que ele tinha, mas ainda o amo muito. Tenho um filho de cinco anos que também gosta muito dele.
SIMONE

Simone, minha filha, antes de mais nada preciso saber mais sobre as circunstâncias nas quais vocês levou uns tabefes. Por exemplo, você pediu para ele te dar na cara? Assim, entre gemidinhos e tal? Se pediu, minha fofa, por que está reclamando? A não ser que em vez de dar um tapa ele tenha partido para a ignorância e te dado um murro. Nesse caso é apenas inexperiência. Ensine o moço a bater da forma certa e você será feliz para sempre.

Algo me diz, no entanto, que você não pediu nada, só atazanou o juízo do rapaz até ele se irritar e te descer a porrada. Se foi sem que você pedisse, a questão que aparece é: você gostou? Sabe, o Nelson Rodrigues, que era melhor que eu nessas coisas de entender os grotões da mente humana e não acreditava nessas viadagens de astrologia, dizia que toda mulher gosta de apanhar, só não gostam as neuróticas. Vai ver é por isso que você o ama. Porque ele bate em você.

Ele é um bom sujeito, pelo visto. Seu filho gosta dele, então ele não bate nele, bate só em você — provavelmente porque é uma mulherzinha chata, se ele bate sem que você peça, ou porque você gosta de um esquema mais rústico, se ele bate porque você pede. Aceite a vida como ela se apresenta e seja feliz.

AMOR PROIBIDO
Sou casado há 7 anos, sou de Escorpião e minha mulher é de Áries. Descobri que ela está tendo um caso com um rapaz de Câncer, já dura um ano e meio. Ela pode me trocar por ele ou é só sexo?
MARCELO

Antes de qualquer coisa permita-me lhe chamar pelo nome que lhe é mais adequado, Marcelo: corno. Não que haja nada demais em ser corno; pelo menos é o que um amigo meu diz para os maridos de suas namoradas. O fato é que você é a melhor definição de corno que alguém pode achar em qualquer dicionário: seu único medo é que ela lhe dê o pé na bunda que você merece.

Voltando ao seu problema, corno, no seu lugar eu não me preocuparia muito. Você não come a moça direito, seu broxa chorão; que mal há no rapaz canceriano que dá um trato na moça e lhe preenche as tardes? Alguém tem que fazer esse serviço.

Se você não se importa com sua mulher se esfalfando na cama com outro homem, fique quieto e tranqüilo. Ele está lhe fazendo um favor, então cale a boca e apenas cuide de abaixar a cabeça quando entrar em casa, porque os chifres podem bater no umbral da porta. Fique calado porque se você, seu merdinha, resolver chiar ela pode ir embora de uma vez, ficar com o canceriano que a come decentemente, e aí quem vai sustentar você?

Me desculpe pelos meus preconceitos, Marcelo. Eu fico aqui lhe chamado de corno, de broxa, e faço pouco do seu sofrimento. Mas quer saber? Você merece.

MEU MARIDO ME TRAI
Bidu, tenho 16 anos, sou de Capricórnio e meu marido tem 21, ele é de Sagitário. Quero saber o que devo fazer para afastar do meu caminho uma fulana que está atrapalhando meu casamento. Ela tem 13 anos e os dois já ficaram várias vezes, mas não sei o que faço. Antes da gente se casar, ele já tinha fama de galinha. Só que, pra mim, mostra ser fiel e sempre diz que me ama de verdade. O que eu faço com esses dois?
Alana

E aqui eu fico pensando que os leitores vão pensar “porra, lá vem o escroto do Rafael com outra resposta filha da puta para a pobre moça”. É nisso que dá ser um incompreendido. Porque resposta filha da puta mesmo foi a do próprio João Bidu, que lá pelas tantas se saiu com essa:

E, talvez, uma das explicações seja o fato de ele ser bem mais fogoso que você. Aí, mesmo sendo bem servido em casa, não consegue deixar de comer fora.

Viu? O sujeito disse que é tudo culpa dela porque não tem bom remelexo. Se esse sujeito tivesse o meu vocabulário de cais do porto, diria: “Minha filha, quem mandou tu trepar mal? Agora agüente.”

Se debocho da moça é de ousado, de intrometido que sou. Ninguém me pediu ajuda, não sou obrigado a fingir compreensão e solidariedade. Mas o Bidu, não, a moça foi atrás dele em busca de um consolo, uma luz, e em troca recebeu esse conselho canalha, frio e machista.

Então, agora que liberou tudo, agora que posso falar as barbaridades que quiser, em primeiro lugar eu aconselharia essa vagaba aí a denunciar o pedófilo do marido dela, porque 13 anos é sacanagem. Essa imbecil casa com um doente desses e depois vem fazer carinha de santa, de “o que é que eu faço com esses dois?” Ah, tenha paciência. Vai-te catar, minha filha, que o meu tempo e o tempo dos astros são mais preciosos do que isso. Compre uma lata de Nan para o tarado do seu marido e seja feliz para sempre.

Contém vitamina C, frutose, potássio, zinco, vitamina B12 e ainda por cima é diet

Do Aqui Jaz a Minha Verdade, em um bom arrazoado sobre as vantagens e desvantagens de cuspir ou engolir:

O esperma é constituído por:
(…)

  • ácido pirúvico

(Durante a glicólise – a via metabólica mais primitiva – é transformada uma molécula de NAD+ em NADH. Como a quantidade desta molécula é limitada na célula, esta tem que ser regenerada, o que pode ser feito reduzindo o ácido pirúvico)

Ácido pirúvico. Tão óbvio, meu Deus, e tão adequado.

Quem comeu o blog

A Raquel foi a única pessoa a responder certo a pergunta do post passado.

Não foi gato nenhum que comeu o blog, porque nenhum gato é valente o suficiente para enfrentar minha política em relação a felinos, naturalmente refratária a esse tipo de ousadia. (Sabe como você diferencia um gato de um tijolo? Jogue os dois na parede. O que miar é o gato. Chutar é melhor, mas aí você pode machucar o pé ao chutar o tijolo.)

Como acontece de vez em quando, cheguei ao momento em que o mundo perde um blogueiro medíocre e ganha um redator também medíocre. Desde já há algum tempo, meu tempo é dedicado a Edvaldo. (E que ninguém diga que eu não avisei que essa hora ia chegar.)

Normalmente nessas horas eu abandono o blog e republico os melhores posts antigos, ganhando tempo. Desta vez, não. Desde o início de 2007 eu venho escrevendo tão pouco por aqui que não faz sentido reprisar os posts do ano passado.

Por isso, pelos próximos dois meses este blog vai andar neste ritmo, se é que se chama a isso de andar. Aliás, por mais que dois meses, porque eu espero poder finalmente tirar férias quando ganharmos a eleição. Mereço isso há alguns anos, já.

Quando der tempo eu venho aqui escrever alguma bobagem. Se bem que bobagem é o que mais tem neste blog. Não vai fazer falta.

Sobre Marta Suplicy

Dia desses vi no YouTube o primeiro programa da campanha de reeleição de Marta Suplicy para prefeita, em 2004.

O programa abre com um belo comercial. Um goleiro defende pênaltis cobrados por uma fileira de jogadores. Defende quase tudo. Mas deixa uma bola passar, uma só, e então o locutor lembra: “Não é possível vencer todos os desafios ao mesmo tempo. Mas tudo que era possível fazer em quatro anos, Marta fez. E fez bem feito.”

Por alguma razão os estrategistas de Marta acharam que a medida mais importante a ser tomada no início da campanha era defensiva: blindar a candidata contra as críticas acerca do que não tinha sido realizado pela prefeita.

Não sei como estavam as pesquisas da época. Imagino que apontassem uma sensação geral de que Marta tinha feito alguma coisa, mas que isso ainda era pouco. Não sei. Mas a partir desse comercial, escolhido para abrir a campanha inteira e portanto de importância fundamental, fico imaginando as reuniões na produtora de Marta, as discussões sobre a necessidade de blindagem da candidata. “Vão bater na gente. Vão bater muito. Então vamos sair na frente e falar a verdade, dizer que não fizemos tudo, mas que com mais quatro anos poderemos fazer. Vamos ser humildes”.

Parece um raciocínio correto; pelo menos é lógico. A blindagem é uma ação correta e necessária, para qualquer candidato. Mas a abordagem e o momento utilizados pelo programa foram um erro grave.

O problema que o programa de Marta não entendeu e não respondeu é que ninguém se elege pelo que não fez. Esse é um dos pontos positivos da evolução do eleitor brasileiro, em grande parte auxiliada por bons programas eleitorais como, por exemplo, o de Duda Mendonça para Paulo Maluf — o mesmo Duda que fazia aquela campanha de Marta, embora tenha sido defenestrado mais tarde. Hoje o eleitor brasileiro tem melhor noção do que quer e não se deixa levar facilmente por salvadores da pátria como o Collor de 1989. Está mais realista e mais pragmático. Esse fenômeno se consolidou em 1996, quando posturas políticas perderam importância para o pragmatismo administrativo, pelo menos em eleições municipais (e federais também: em 2006 os eleitores votaram em Lula apesar da maior campanha contrária de mídia que já se viu no país, maior até que em 1989). 1996 foi o ano em que o eleitor brasileiro passou a julgar seus administradores pela capacidade de trabalho e pelos resultados apresentados, não por um discurso de princípios Isso quer dizer algo muito simples: que o que o sujeito quer saber é que o administrador nos quatro anos em que esteve à frente do Executivo.

Além disso, programa eleitoral não é para reconhecer defeitos, é para reforçar e lembrar as qualidades. Para os defeitos existe a imprensa. Nenhum programa vai mudar a imagem de um candidato, se ela for muito diferente da que o povo tem dele; mas é seu dever informar ao eleitor as razões pelas quais ele deve votar em alguém. Em seu primeiro programa, em vez de se desculpar pelo que não fez, Marta deveria ter mostrado o que fez. E ela fez bastante. Marta Suplicy pode ser antipática, esnobe, pernóstica (por outro lado eu a vi na ABAV do ano passado, no Rio, e a coroa dá um bom caldo) — mas foi uma excelente prefeita para a cidade de São Paulo. Se eu votasse em São Paulo, votaria em Marta Suplicy.

Aquele comercial era cabível e provavelmente necessário em um outro momento da campanha, não naquele. Ali, passava uma mensagem clara, ruim e falsa: “Desculpe, povo de São Paulo, por ter sido uma prefeita incompetente, mas mesmo assim eu lhe peço uma nova chance”.

As falhas do programa de Marta não pararam por aí. Erraram no enquadramento das falas da moça. Pelo menos naquele primeiro programa, insistiram em um plano aberto, que mostrava Marta praticamente de corpo inteiro se movimentando diante de um cenário bonito, ainda que frio. Visualmente era muito agradável; mas reforçava o distanciamento de uma mulher que, afinal de contas, era ligada a uma família tradicional de São Paulo — e que nunca foi exatamente populista. Marta devia ter sido apresentada de maneira mais próxima, mais íntima.

O discurso dela também era equivocado. Marta usa boa parte de seu tempo — além de se justificar — para agradecer pela honra que lhe foi dada pelo povo de São Paulo ao lhe deixar ser prefeita. Ela confessa que “gostou” de ser prefeita. Diz que não deu para fazer tudo o que pretendia, e que precisa de mais quatro anos para fazer tudo o que “gostaria” de fazer.

Não é por nada, mas se Marta gostou de ser prefeita, é problema dela. Porque Maluf também gostou, Pitta também gostou, Mario Covas também gostou. Qualquer sujeito sabe que ser prefeito é bom, porque se não fosse eles não gastavam milhões em suas campanhas. Ao povo não interessa do que Marta gosta ou não. Interessa é se ela é competente para desempenhar a função de prefeita. Quando ela passa boa parte do seu tempo dizendo que gostou de ser prefeita e está honrada por isso, perde de vista o seu papel de líder e de administradora competente.

Se isso foi feito para reforçar uma humildade que Marta não aparenta, foi o remédio errado. Pelo contrário, o resultado é ainda mais personalista do que parece.

O pior é que os erros continuaram. O resto do programa de Marta foi dedicada a um de seus projetos, o CEU. Só ao CEU.

A curva de audiência de programas eleitorais pode ser resumida em uma parábola invertida. São muito assistidos no início do horário eleitoral gratuito, caem significativamente aí pela segunda, terceira semana e sobem novamente durante a reta final de uma campanha. Praticamente ninguém assiste a todos os programas.

Ao desperdiçar seu primeiro programa com um samba de uma nota só, Marta parece ter passado a idéia de que não tinha feito um governo eficiente, passando uma mensagem contraditória e reforçando o aspecto negativo daqueles pedidos de desculpas. Fazia parecer que só tinha aquele projeto para mostrar. É possível que o eleitor que só viu aquele programa tenha ficado sem noção do volume de obras de Marta. E tenha preferido Serra.

Não vi outros programas de Marta. Não sei como se desenrolaram. Não sei o que melhorou ou o que piorou. Mas se o resto da campanha foi parecido com esse primeiro programa, ele foi, com certeza, o primeiro passo de Marta Suplicy em direção à derrota.

(Pequeno update antes de publicar o texto: ouvi um dos novos jingles de Marta, “Viva Marta”. Não gostei. O jingle pede para o paulistano lembrar do tempo em que chegava cedo em casa, em que a cidade era tranqüila, em que nego chegava em casa e via a criançada brincando feliz na rua. O jingle deve estar se referindo ao final do século XIX. Certamente não foram os tempos de Marta como prefeita. “Minha velha São Paulo com nova atitude”? Marta não ficou tanto tempo à frente da Prefeitura para definir uam era, como o jingle pretende. Além disso, nenhum eleitor com QI acima de 15 vai creditar a qualquer candidato — Marta, Alckmin ou Kassab — a responsabilidade imediata pelo caos paulistano. Mas pode achar que Marta está tentando enganá-lo. Sei não, mas já começaram errado.)

Um adeus a Easy Rawlins

Meu escritor policial favorito da atualidade é Walter Mosley — mais precisamente a série com as desventuras de Easy Rawlins, como atestam alguns posts antigos neste blog. Seus outros personagens, Fearless Jones e Socrates Fortlow, nunca chamaram minha atenção e eu não sei dizer se são bons ou ruins.

Mosley não é um sujeito conhecido no Brasil como deveria. Dele foi publicado aqui, até onde sei, “O Diabo Veste Azul”, “Uma Morte em Vermelho” e “Quem Matou Nola Payne?”, título idiota para o original Little Scarlet: acredite, o que menos importa em Little Scarlet é quem matou a pobre Nola. Uma pesquisa rápida no Google mostra, pelo menos a princípio, que as únicas pessoas que falaram de Mosley em português, além de resenhas de lançamentos e de referências ao filme “O Diabo Veste Azul”, foram Filthy McNasty e eu.

É uma pena que tão pouca gente pareça conhecer o sujeito. Ainda mais quando damos uma olhada no panorama desse segmento do mercado editorial. A cada ano as editoras jogam para cima dos leitores uma infinidade de livros policiais fracos, apenas porque são novos. Relegam os clássicos a nada; o melhorzinho deles a ser publicado com razoável constância é Rex Stout — mas apesar dos tantos elogios, aquele gordo viado e seboso do Nero Wolfe não é tudo isso que dizem dele; não passa de Agatha Christie depois de duas semanas de férias no Brooklyn. Fariam melhor se apenas publicassem e republicassem a Santíssima Trindade: o Pai Dashiell Hammett, o Filho Raymond Chandler e o Espírito Santo Ross MacDonald.

(Durante anos achei que tinha inventado esse negócio de “Santíssima Trindade” do roman noir. Me achava genial por isso. Mas há algum tempo descobri que o conceito foi cunhado há décadas por um escritor chamado Michael Avallone, exatamente nessa ordem. É tão triste chegar às portas dos 40 anos e descobrir que não se é gênio coisa nenhuma, nem mesmo um gênio de segunda.)

(A propósito, Dashiell Hammet vem tendo alguns de seus romances — que um dia pertenceram à Brasiliense — republicados pela Companhia das Letras; infelizmente deixam de lado os contos do Continental Op, justamente aqueles que definiram, de uma vez por todas, o noir.)

A inspiração óbvia de Mosley é Chester Himes — o mais bem-sucedido autor a misturar a questão racial a romances policiais. Mas enquanto os policiais strictu sensu de Himes com Coffin Ed e Grave Digger Jones tendem ao caricato, uma espécie de Mickey Spillane com mais melanina e protesto social, a série de Easy Rawlins é um pequeno clássico moderno, porque além de razoável qualidade literária dentro dos limites possíveis da literatura policial, atende perfeitamente aos requisitos convencionais do melhor noir, algo que muitas vezes falta a Himes.

A diferença básica entre o roman noir e a tradição inglesa é a ambigüidade moral, a idéia de que o crime é um produto orgânico da sociedade e não uma anomalia dela, como nos quebra-cabeças de Agatha Christie; alia-se a isso uma percepção acurada dessa mesma sociedade, e então temos os elementos que fazem do noir um gênero superior ao modelo inglês tradicional. Mas a qualidade literária é outro grande diferencial. Da extrema limpeza estilística de Hammett à razoável profundidade psicológica de MacDonald, do ponto de vista literário se vai mais além do que nos romances de, por exemplo, Edgar Wallace. Obviamente, o simples fato de ser literatura policial implica uma série de convenções; mas isso não exclui observações mais profundas acerca da sociedade.

(Outro parêntesis em um texto preguiçoso já cheio deles: literatura policial é clichê e convenção, mas nem sempre fáceis. Bukowski, por exemplo, se deu mal com seu Pulp; Luís Fernando Veríssimo também, com seu “Jardim do Diabo”. Boa literatura policial não é tão fácil como parece.)

Como acontece com qualquer série, a produção é irregular. Obras excelentes como “O Diabo Veste Azul”, Little Scarlet e Cinammon Kiss convivem com livros bons como A Red Death e A Little Yellow Dog, e fracos como White Butterfly, Black Betty, Gone Fishin’ e Bad Boy Brawly Brown. Mas essa divisão entre obras boas e ruins importa pouco, porque no final das contas o que vemos neles é a evolução do personagem e também da questão racial americana. A série acaba oferecendo um painel interessante sobre a evolução das relações raciais nos Estados Unidos, do racismo claro e declarado dos anos 40 às mudanças acontecidas nos anos 60. Nos primeiros livros da série, ambientados no pós-guerra, Easy Rawlins é um homem cheio de ódio e raiva, atento a pequenas e grandes demonstrações de racismo e preconceito; mas à medida que o tempo vai passando e a sociedade americana vai se moldando ao fato de ser uma sociedade multirracial de classes, essas relações vão se tornando menos conflituosas. O quebra-quebra de Watts é um momento decisivo; mas a ascensão do movimento hippie também. É o acompanhamento dessa evolução que coloca Mosley um pouco acima da média dos escritores policiais. E, claro, o excelente personagem que criou: Easy Rawlins é vivo, conturbado, um herói torturado e trágico que ao mesmo tempo em que resolve mistérios policiais, tem que lidar com uma sociedade conflituosa e com os seus próprios problemas.

Mas este não é um post para falar de Easy Rawlins, porque já falei antes. Este é um texto para carpir a sua morte. Uma espécie de eulogia meio sem graça.

Há algumas semanas li Blonde Faith, publicado ano passado, o décimo primeiro da série de Rawlins. No final do livro há um acidente de carro e Rawlins, sentindo que vai morrer, desmaia, “and then the world turned black“. Mosley já tinha avisado que aquele seria o último livro da série. Pelo visto está cansado de Easy Rawlins, como Conan Doyle cansou de Sherlock Holmes. Dono de uma carreira razoavelmente diversificada e bem-sucedida, Easy Rawlins pode parecer a Mosley restritiva — como os Beatles pareceram restritivos a John Lennon.

Mas Mosley sabe como funciona o mercado, e não teve coragem de matar de maneira irrevogável o seu personagem. Além disso, anunciar um livro como o último de uma série bem sucedida é um truque de marketing já velho, desde que se deixe o final em aberto para a possibilidade de eventualmente retomar a série. Assim como Doyle retomou o viciado em ópio, não seria surpresa se daqui a alguns anos Easy Rawlins voltasse, tendo sido resgatado do acidente feio e mancando da perna esquerda.

Para quem gosta de boa literatura policial, como eu, essa é uma última esperança.